Opinião

A ação mais antiga do Supremo Tribunal Federal e o dano temporal

Autor

  • Solano de Camargo

    é pós-doutorando pela Faculdade de Direito de Coimbra doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP bacharel em Direito francês pela Faculdade de Direito da Universidade de Lyon 3 e advogado sócio da Lee Brock Camargo Advogados.

14 de janeiro de 2020, 7h02

Um episódio acontecido no tempo do Império vem marcando a vida de quase 5 mil pessoas em bairros populares na cidade de Iperó, interior do estado de São Paulo: a disputa de terras onde moram pela União e pelo estado de São Paulo, que se transformou na Ação Civil Originária 158. Atualmente, é o feito mais antigo em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

A longevidade da disputa teve origem na visita que Dom Pedro II fez à Fábrica de Ferro da Fazenda Ipanema, em 1840, quando pediu para a província de São Paulo anexar toda a área — chamada de Campos Realengos — à Coroa, para que pudesse ser utilizada na expansão das atividades da Fazenda Ipanema. Nas instalações daquela que foi a primeira siderúrgica brasileira, se produziram arados, enxadas, cruzes, máquinas e até material bélico usado na Guerra do Paraguai.

A exploração do ferro na área começou no século XVI, com o bandeirante Affonso Sardinha, e foi se consolidar com a vinda de Dom João VI para o Brasil, que modernizou a fábrica e trouxe em 1810 uma equipe de metalúrgicos suecos, especialistas na construção e manejo de altos-fornos. A questão era economicamente tão relevante para o Brasil que envolveu até José Bonifácio, patriarca da Independência, geólogo de formação, sendo nomeado intendente de Minas do Império.

Quando as atividades da fábrica foram encerradas em 1895, a gleba de terras foi revertida para a Coroa portuguesa. Um século depois, o estado paulista considerou aquelas terras devolutas — sem destinação de uso especial — reconhecendo os moradores como proprietários e outorgando-os as respectivas matrículas durante a República Velha. A União, sucessora do Império, contestou a validade das matrículas e ingressou com uma medida judicial em 1958, durante o governo Juscelino Kubitschek, tentando anular os títulos de propriedade e demolir todas as construções que já formam um pequeno povoado, junto ao Supremo Tribunal Federal, ainda localizado no Rio de Janeiro. Passados mais de 60 anos, a indefinição sobre a posse dura até hoje, pois o STF simplesmente não conclui o julgamento do processo.

O tempo é um dado inquietante quando falamos de uma população de cidadãos vulneráveis, que aguardam há várias décadas por uma solução para um impasse que norteia seu dia a dia.

No local, atualmente, encontram-se mais de 1.200 famílias de baixa renda, sendo aproximadamente 30% de crianças e adolescentes. Como os moradores não podem ser considerados os proprietários de suas casas, a Prefeitura de Iperó precisou pedir judicialmente que a Sabesp instalasse o serviço de água nas casas, além de ter construído escolas e um posto de saúde no local.

O processo de Iperó é o mais antigo em tramitação no STF e me remete à exposição de cascas de árvores da artista plástica Ludmilla Alves, porque envolve a ação deletéria do tempo. Embora seja exposta em museu, a mostra é perecível, porque o material é recolhido da natureza e está em processo de decomposição, exigindo um novo olhar dos observadores à medida que o tempo passa. A ACO 158 também envolve vidas e exige uma análise além da letra fria da lei.

O princípio da duração razoável de processo em nosso ordenamento jurídico é uma garantia constitucional, que não é seguido a risca. A Prefeitura de Iperó, que ingressou como amicus curiae na ACO 158, defende a tese de que a área, em qualquer situação, deva ser mantida com os atuais ocupantes, em consonância com os valores dos direitos humanos, presentes nas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, principalmente a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Somente a ação proposta pela família real brasileira reivindicando da União a posse do Palácio Guanabara levou mais tempo em tramitação: 120 anos. A questão da morosidade do Judiciário brasileiro é um dado recorrente, devido a vários fatores: crescimento exponencial das demandas, falta de estrutura do Poder Judiciário e a infinidade de recursos processuais que atrasam os julgamentos, dentre outros. No entanto, essas agruras atingem mais o primeiro e segundo graus de jurisdição do que o STF, que no primeiro semestre de 2019 divulgou um saldo positivo de produtividades: 57,4 mil decisões, entre monocráticas e colegiadas.

A ACO 158 chegou a ser pautada pelo Supremo no ano passado, mas não foi analisada, agora tem nova inserção na pauta no próximo mês de março.

O grande temor da população carente dos bairros afetados pela ação judicial é que se repita o caso Pinheirinho, acontecido em 2012, na cidade de São José dos Campos, também no interior de São Paulo, onde uma reintegração de posse removeu mais de 5 mil pessoas carentes de um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados e causou um grande impacto social.

Referendar a permanência dos moradores na área em disputa em Iperó é reconhecer que aos direitos sociais se aplica o mesmo regime jurídico dos direitos civis e políticos no Brasil, pontuando um avanço na prestação jurisprudencial. É isso o que se espera do voto da ministra Rosa Weber, relatora da ACO 158, um caso com tanta complexidade e multiplicidade de partes, para que o tempo volte a contar a favor da população e encerre sua ação deletéria.

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    é sócio do Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA), doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Direito Francês pela Faculdade de Direito de Lyon.

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