Direito Civil Atual

Uma reflexão sobre a autocomposição e indisponibilidade dos direitos do Estado

Autores

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é doutor em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) professor adjunto da Faculdade de Direito da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UniFafire membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e advogado.

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

  • Ana Beatriz Ferreira de Lima Flumignan

    é mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e advogada.

13 de janeiro de 2020, 8h10

ConJur
A eficiência e a duração razoável do processo são dois objetivos centrais do Código de Processo Civil de 2015. Contudo, ao se observar que o Poder Público está presente em mais da metade de todos os processos que tramitam no Brasil, conclui-se que, sem a sua participação e uma mudança de postura, os objetivos nunca serão alcançados[1].

Para alcançar esses escopos, o CPC estabeleceu um sistema multiportas, em que se reconhece a existência de métodos adequados de solução de controvérsias pautados na consensualidade. Isso fica evidente no artigo 3º ao estabelecer que o acesso à justiça é alcançado pela busca de instrumentos consensuais de solução de controvérsias[2]. A consensualidade é buscada de pelo menos três maneiras: escolha do método consensual; resolução dos conflitos e prática de atos e negócios no sistema tradicional.

A mediação e a conciliação são métodos consensuais que alcançam a própria resolução de conflitos. A arbitragem é um método consensual pela escolha do procedimento[3]. O reconhecimento jurídico de pedido e o negócio jurídico processual buscam, respectivamente, solucionar o conflito rapidamente pelo reconhecimento da pretensão pelo réu em face do autor e a adaptação do procedimento ou de atos, poderes, faculdades ou deveres processuais às peculiaridades do caso concreto. Em todas essas medidas consensuais, é possível a participação do poder público.

A falsa compreensão da indisponibilidade do direito, no entanto, é um empecilho à aplicação desses institutos e procedimentos a esses atores. Tanto isso é verdade que poucas procuradorias regulamentaram os negócios jurídicos processuais e em um número menor ainda de unidades federativas houve a instalação de câmaras privadas de conciliação e mediação.

Direitos indisponíveis são aqueles inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis ou não transacionáveis[4]. Como se vê, o caráter indisponível do direito admite vários conceitos e facetas. Não é definido por apenas um critério. O direito é inalienável quando não pode ser transferido por ato entre vivos ou mortis causa. Em regra, os direitos patrimoniais são transmissíveis. No entanto, a patrimonialidade, por si só, não é capaz de atribuir a disponibilidade do direito. Basta observar que, em regra, os bens públicos são inalienáveis, sendo somente alienáveis os dominicais ou dominiais[5].

O direito intransmissível é aquele que não pode ter a titularidade transferida. É o que ocorre, por exemplo, com os direitos da personalidade em geral[6]. O direito irrenunciável é aquele que o titular não pode eliminar[7]. Os direitos não transacionáveis são aqueles que impedem concessões mútuas entre as partes de uma relação jurídica[8].

O poder público tem como uma de suas características cruciais a indisponibilidade, por ter sua atuação pautada no interesse público. A indisponibilidade do interesse público tem origem no princípio republicano de que os bens públicos pertencem a toda a população e não aos particulares[9].

Contudo, a indisponibilidade do direito não significa impossibilidade de composição. A autocomposição significa uma possibilidade de voluntariedade relacionada a algum dos elementos de uma relação jurídica[10]. As relações jurídicas são compostas por cinco elementos: sujeito, objeto, fato jurídico, vínculo jurídico e garantia[11]. Isso fica claro em relação a direitos indisponíveis ligados ao Direito Civil, como ocorre com a relação de alimentos em que existe indisponibilidade, mas é possível a composição em relação ao valor da prestação.

No caso do poder público, em grande parte das situações, é possível a composição em relação ao objeto, seja pela sua identidade, seja pela sua quantidade, garantia e, até mesmo, em aspectos relacionados ao vínculo jurídico. É justamente por isso que se afirma ser possível a composição em relação ao valor, à forma de satisfação, ao vencimento e ao modo de cumprimento[12]. Basta, para tanto, que haja autorização normativa.

O grande problema é que a ausência de compreensão sobre a possibilidade e utilidade de soluções consensuais para o poder público faz com que se criem empecilhos para a sua utilização nos próprios atos normativos que o autorizam. Isso decorre da ausência de conhecimento ou má compreensão entre os conceitos “indisponibilidade do interesse público” e “autocomposição”.

Um exemplo de texto normativo que cria embaraços é o artigo 3º da Lei 13.140/15. Ele tem o mérito de reconhecer a possibilidade de mediação para direitos indisponíveis. Contudo, confunde indisponibilidade, autocomposição e transação. Esse receio decorrente da não percepção precisa dos conceitos faz com que se exija a homologação judicial e a oitiva do Ministério Público para a mediação que envolva direitos indisponíveis[13].

A exigência de homologação judicial de forma indiscriminada pode gerar empecilhos para a aplicação da consensualidade para o Poder Público. Esse entendimento não se coaduna com a necessidade prática dos negócios jurídicos processuais, que somente exigem homologação em casos expressos[14] e nem mesmo com as câmaras administrativas de conciliação e mediação, que têm como objeto direitos indisponíveis que admitem autocomposição em aspectos específicos.

Como se vê, a indisponibilidade do direito não significa a impossibilidade de autocomposição, mas pode gerar obstáculos à sua implementação concreta por falta de precisão conceitual e barreiras injustificadas criadas pela própria legislação. Não se quer afirmar que atos de controle não possam ser empregados. Evidentemente, eles deverão estar presentes, mas a adoção indiscriminada da homologação judicial e da oitiva do Ministério Público para todos os casos é um elemento de dificuldade que não se coaduna com o objetivo da legislação processual civil.

O recurso aos meios de autocomposição pelo Poder Público parece evidenciar um renovado movimento de “fuga para o direito privado” (Flucht ins Privatrecht)[15], que reconhece a interpenetração e complementaridade entre Direito Público e Direito Privado, posto que não são separados por um abismo intransponível.[16] Fala-se até mesmo em uma “fuga do direito”, dada a utilização de mecanismos contratuais que neutralizam a via judicial, com o recurso a garantias e não a ações judiciais em face do inadimplemento, de modo a estabelecer certas condições ou até mesmo impedir a ação judicial.[17]

É o caso por exemplo da estipulação da chamada cláusula de garantia à primeira demanda (clause on first demand guarantee), utilizada inicialmente nos contratos de obras públicas. Trata-se de uma obrigação assumida por uma instituição financeira (o garantidor) a pedido de um cliente seu que necessita da garantia quanto ao pagamento de certa quantia, de modo a assegurar ao credor-beneficiário a transferência da soma acordada, mas sem a possibilidade de invocação de meios de defesa ou exceções, a partir do contrato que originou a operação.[18] Denominados de garantieverträge no Direito alemão, tais contratos constituem garantias autônomas, “com uma função semelhante a da fiança, porém desvinculada da obrigação principal. (…). A garantia vale por si mesma, independentemente da justificação de sua causa, pelo credor”.[19]

Diante do risco de descontinuidade dos projetos públicos em fase de implantação, o que forçaria os agentes públicos a assumir tais projetos caso as garantias ofertadas sejam insuficientes, vem se adotando a prática da pactuação de tal cláusula a fim de eximir “os bancos comerciais de responsabilidades processuais e riscos de perdas significativas no caso de inadimplemento na fase pré-completion de cada projeto”.[20]

Percebe-se, por fim, que a adoção de tais esquemas típicos do Direito Privado, a exemplo dos instrumentos consensuais de solução de controvérsias ou das cláusulas autônomas de garantia, permitem uma resolução mais eficiente das controvérsias que envolvam o Poder Público, resultando na redução de custos e na solução mais rápida dos conflitos, bem como na continuidade das obras e serviços públicos necessários ao desenvolvimento do país.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] Confrontar também com FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Os negócios jurídicos processuais e a fazenda Pública. In: Revista de Processo, vol. 280, p. 353-375, Jun./2018.

[2] Art. 3º do CPC. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

[3] Art. 359 do CPC. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem.

[4] MATTOS NETO, Antônio José de. Direitos patrimoniais disponíveis e indisponíveis à luz da lei da arbitragem. In: Revista de Processo, vol. 122, p. 151-166 (acesso online p. 1-13), Abr./2005, p. 4.

[5] Art. 101 do Código Civil. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.

[6] Art. 11 do Código Civil. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

[7] CUPIS, Adriano de. I diritti della personalità. Trad. portuguesa de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p. 52.

[8] Art. 840 do Código Civil. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.

[9] TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: conseqüências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem e ação monitória). In: Revista de Processo, vol. 128, p. 59-78 (acesso online p. 1-15), Out./2005, p. 1-2. “Primeiro, cabe examinar o tema sob o prisma do direito material. A indisponibilidade do interesse público é decorrência direta do princípio constitucional republicano: se os bens públicos pertencem a todos e a cada um dos cidadãos, a nenhum agente público é dado desfazer-se deles a seu bel-prazer, como se estivesse dispondo de um bem seu particular. Mais ainda: existem valores, atividades e bens públicos que, por sua imprescindibilidade para que o Estado exista e atue, são irrenunciáveis e inalienáveis. Vale dizer, no que tange ao núcleo fundamental das tarefas, funções e bens essencialmente públicos, não há espaço para atos de disposição. Mas essa afirmação comporta gradações. Existem atividades e bens que, em vista de sua absoluta essência pública, não podem ser abdicados ou alienados, ainda que mediante alguma contrapartida e nem mesmo com expressa autorização legal”.

[10] O enunciado 135 do FPPC foi categórico nesse sentido ao prever que “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.

[11] PENTEADO, Luciano de Camargo. Família, criança e sujeito de direitos vulneráveis – breves notas à luz do pensamento tomista. In: Revista de Direito Privado, vol. 51, p. 433-461 (acesso online p.1-20), Jul.-Set./2012, p. 10-11. “As relações jurídicas apresentam cinco elementos, os sujeitos, os objetos, o fato jurídico que as gera, o vínculo do sujeito com os demais sujeitos, que sempre deve ser analisado em aspecto quantitativo e qualitativo para diferenciar as relações e situações jurídicas, que nada mais são do que feixes de relações jurídicas com grupos de sujeitos de direito heterogêneos e a garantia”.

[12] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Comentários ao enunciado 135. In. PEIXOTO, Ravi (coord.). Enunciados FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civil, organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodvm, 2018, p. 199-200. “Direitos teoricamente indisponíveis, posto que irrenunciáveis (por exemplo, direito subjetivo a alimentos) podem comportar transação quanto ao valor, vencimento e forma de satisfação”.

[13] Art. 3º da Lei n. 13.140/15. Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação.

§ 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.

§ 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público.

[14] AVELINO, Murilo. Comentário ao enunciado 115. In: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Enunciados CJF: Conselho da Justiça Federal, Jornadas de Direito Processual Civil, organizados por assunto, anotados e comentados, Salvador: Juspodivm, 2019, p. 94-96.

[15] Trata-se de expressão atribuída a: FLEINER, Fritz. Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts. 8 ed. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1928, p. 326.

[16] No original: “Offentliches Recht und Privatrecht sind durch keine Kluft getrennt. Im Rechtsleben durchdringen und ergänzen sie sich gegenseitig” (FLEINER, Fritz, op. cit., p. 59).

[17] LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. 2 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 52.

[18] FRADERA, Vera Maria Jacob de. Os contratos autônomos de garantia. Revista Ajuris, n. 53 (nov./1991), p. 170.

[19] FRADERA, Vera Maria Jacob de, op. cit., p. 176.

[20] FLEURY, Fernando. O financiamento de concessões e parcerias público-privadas no Brasil. In: MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, DESENVOLVIMENTO E GESTÃO. Infraestrutura e Parcerias para o desenvolvimento: as alianças público-privadas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Planejamento e Gestão, 2016, p. 110.

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