Opinião

Deputado leu três juristas e creu: "Fica Proibida a Coisa Julgada"

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13 de janeiro de 2020, 15h24

Spacca
Spacca
Alexandre foi à Dacha de São José do Herval. Tomando um vinho, olhávamos ravina abaixo a formação de nuvens ao sul, ameaçando chuva, que, logo, logo, alcançaria a montanha em que estávamos.

Antes da chuva, perguntou Alexandre, acendendo o seu cachimbo enquanto eu cortava a ponta de um robusto Cohiba: “— O que achou da repercussão daquele nosso texto que fizemos juntos em Ipanema?” Respondi: “— Rendeu. A questão do conceito de coisa julgada da LINDB pegou muita gente de surpresa”.

Recapitulando, disse Alexandre, “escrevemos esses dias, Lenio e eu, sobre como a LINDB resolve o problema do conceito de coisa julgada (aqui). Antes disso, Marcelo Cattoni e você haviam escrito texto criticando a posição de Luiz Flávio Gomes — ler aqui — no sentido de que o jurista (hoje deputado) pretendeu — para nossa surpresa — mudar o conceito de coisa julgada para permitir a antecipação da prisão após julgamento em 2ª instância, apropriando-se da linguagem publicamente construída e contrariando, nesse contexto, a doutrina, a legislação e, inclusive, a conceitualização desenvolvida por Enrico Tulio Liebman”.

E continuou: “— Depois vieram dois articulistas, Marco Antônio Reis e Felinto Alves Martins Filho (ler aqui), dizer que é possível, por via Legislativa, mudar o momento do trânsito em julgado, pois o seu conceito não é estabelecido pelo Constituição Federal e, não sendo uma cláusula pétrea ou uma garantia constitucional, trata-se apenas do resultado de uma determinada sistemática recursal adotada por um ordenamento — sic. Nesse sentido, para os articulistas, bastaria que uma PEC retirasse o exaurimento dos recursos especiais e extraordinários do conceito de trânsito em julgado que a questão estaria resolvida e estaria permitido a antecipação da pena após julgamento em segunda instância. Os autores fundamentam esse entendimento com base no artigo 60, §4º da Constituição, que não fala em restrição de direito fundamental, mas, sim em abolição. Por isso, não seria caso de violação à presunção de inocência, apenas de restrição. Já falaremos disso”.

Alexandre, depois da publicação do texto, telefonou, dizendo: “— Não nos surpreendamos se alguém tentar mudar a LINDB”. Bingo. Pois não é que o deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) propôs um Projeto de Lei arrasando com o conceito de coisa julgada, acrescentando o artigo 6-A à LINDB, no seguinte sentido? Eis:

Art. 6-A: Para fins de execução da pena, transita em julgado a decisão judicial de mérito proferida em segundo grau de jurisdição. (NR)

Veja-se que tudo aquilo que havíamos dito no artigo feito na praia de Ipanema (de novo, aqui) sobre a conceitualização de coisa julgada pela LINDB está ocorrendo: os juristas citados acima, em conjunto com parcela do Legislativo, pretendem mudar o nome das coisas (literalmente) e dar o sentido que querem! Dizem que mudar o “lugar e momento” da coisa julgada seria apenas uma restrição e não uma tentativa de abolição. Só que restringir direitos também, na especificidade do conceito de coisa julgada, igualmente é vedado. Cláusula pétrea quer dizer: só pode aumentar a garantia. Restringir, diminuir ou abolir, jamais.

Observando a elevação da fumaça do Cohiba em pequenos rolos, veio o diálogo:

Lenio: “— O deputado Subtenente Gonzaga sozinho acaba com Carnelutti, Liebman e a tradição sobre coisa julgada”.

E Alexandre: “— E o deputado-subtenente dá razão aos articulistas acima citados: afinal, eles sustentam que é possível trocar o nome das coisas assim, de uma tacada. Mais ou menos como defender o Estado de Coisas Inconstitucional ou como fez o prefeito de Biritiba Mirrim que, por lei, proibia moradores de morrer (aqui)”.

Lenio: “ — Ora, está certo que direito seja imputação. Mas há coisas que têm limites. Coisa julgada é uma delas, porque é o cerne do Rule of Law. Aliás, fragilizar a coisa julgada é um forte predador da autonomia do Direito, como defendido em Verdade e Consenso e como defende Nelson Nery Jr. e como defendia, com unhas dentes, um autor da cepa como Ovídio Baptista da Silva. Fragilizar coisa julgada é ovo da serpente de ditadura”.

E complementa Alexandre, baforando: “— O deputado Subtenente deveria patentear a ideia. Sempre que se quiser alterar um estado de coisas, faça-se uma mudança na lei”.

Lenio: “— Isso. Igualzinho ao que propunha o personagem sofista Humpty Dumpty, de Alice Atrás do Espelho: em vez de se fazer aniversário uma vez por ano, por que não fazer 364 (em 2020 seriam 365) desaniversários? Eis aí a imputação ilimitada do Direito. Inventada-incentivada por juristas e institucionalizada pelo deputado Subtenente”.

Mientras, Alexandre, pegando a escada que pendia da biblioteca, foi buscar o volume de Shakespeare, Romeu e Julieta. E, sem descer, abrindo o livro, recitou o ato II, cena 1: Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome”.

Lenio complementa, citando de cabeça: “— Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação
teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo,
fica comigo inteira
”.

Epílogo: palavras e coisas — pode-se sair por aí cambiando significados, ad hoc?

A noite caía. E seguiram os dois amigos charlando. “Passe-me aquela água…”, pedia Alexandre, apontando para o vinho. “Afinal, podemos dar às palavras o sentido que queremos…”. E riram. Muito.

E começou a chover. Entre goles de vinho e baforadas, os dois amigos falaram sobre os sentidos do Direito. Os limites do sentido e o sentido dos limites, como a repetir o mestre Warat.

E se indagavam: O que levaria juristas lato sensu a pensarem que é possível trocar o nome das coisas, como se palavras fossem apenas flatus vocis (referimo-nos ao nominalismo)? Está certo que os sentidos são plurívocos, mas, por favor, coisa julgada continua sendo “coisa julgada”. No Direito, há limites de “trocas”. Tortura é tortura. Democracia é democracia. Trocar o seu nome ou trocar o momento em que ocorre a coisa julgada terá o condão de fazer perder a sua força normativa? Perderia a rosa o seu perfume se determinássemos que seu nome passasse a ser cravo?

Não, os dois, Lenio e Alexandre, não são essencialistas. Mas, por favor, não são, tampouco, relativistas ou emotivistas. Leram bastante acerca dos nomes das coisas, por assim dizer. Por isso, de novo se perguntavam: será que, para prender já em segundo grau, vale até mesmo trocar o nome das coisas e enterrar milhares de anos de filosofia? Mais fácil seria, inspirados no agora famoso prefeito de Biritiba, determinar, por lei: “Fica proibida a coisa julgada”. Ou: “coisa julgada continua existindo, menos para o direito criminal”.

Chuva forte. Muito forte, mas nem por isso calharam de, por lei, proibir a chuva. E foram chamados para o churrasco. Sob a supervisão de Rosane, o churrasqueiro já cortara os salsichões. Afinal, no princípio era a fome![1]


1 Depois a conversa seguiu com o Crátilo, no capítulo “Como se dão nome às coisas”. E partiu para a literatura. Falaram sobre Vidas Secas, que reencena uma espécie de No Princípio era o Verbo, assim como Cem Anos de Solidão: naquela pequena Macondo, as coisas ainda eram tão recentes, que, para nos dirigirmo-nos a elas, ainda tínhamos que apontar com o dedo. Pois tudo indica que, no Brasil, a Constituição ainda necessita que se a aponte com o dedo: parece que ainda não sabemos o seu nome e seu significado.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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