Ideias do Milênio

"Qualquer forma de apresentar a Matemática tem que focar na individualidade"

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13 de janeiro de 2020, 9h02

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Entrevista concedida pelo matemático Artur Ávila à jornalista Lara Sterenberg para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews.

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Se você está no ensino médio ou fez carreira em Exatas sabe muito bem que essa é a fórmula de Bhaskara, caminho mais curto para resolver uma equação de segundo grau. Mas se você é um dos muitos brasileiros que têm medo de Matemática, talvez essa sopa de letrinhas, algarismos e sinais lhe provoque arrepios. Se de modo geral não somos muito bons com os cálculos, pontos fora da curva existem, e um dos mais honrosos é Artur Ávila. Único brasileiro, mais que isso, único latino-americano e lusófono a ter recebido a Medalha Fields, considerada o prêmio Nobel da Matemática.

Fascinado por números desde pequeno, Ávila entrou para o mestrado do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, um centro de excelência mundial no Rio de Janeiro, com apenas 16 anos, antes mesmo de começar a graduação na UFRJ. Aos 21, terminou o doutorado e meses depois partiu para o pós-doc na França. Hoje Ávila se divide entre o Brasil e a Suíça, onde dá aulas na Universidade de Zurique. Sobre o ensino da Matemática no mundo contemporâneo, ele acha que deve se ensinar menos conteúdo com mais profundidade e que é importante algum grau de individualização.

Leila Sterenberg — O Artur Ávila é uma espécie de pop-star da Matemática, a gente pode dizer isso. Você para pra pensar que você é uma espécie de ídolo ou de modelo para aqueles milhões de meninos e meninas que todo ano fazem a Olimpíada Brasileira de Matemática, depois aquele um milhão de meninos e meninas que vão para a segunda fase e aquele grupo menorzinho que chega na Olimpíada Mundial pensando “Ah, talvez um dia eu consiga uma medalha de ouro como o Artur conseguiu”?
Artur Ávila — Eu não gosto de ter essa responsabilidade, mas eu já tive interações com esses meninos nas celebrações quando eles ganharam medalhas e etc., e é positivo ver essa resposta deles, imagino que num universo onde eles não vejam muitos modelos de Matemática por aí, ter pelo menos alguém que eles podem imaginar já pode dar alguma ajuda ou motivação extra, então, mesmo sem querer acaba sendo algo que pode ser importante.

Leila Sterenberg — Muita gente no Brasil tem medo de Matemática, a pessoa começa bem, achando divertido, até que chega uma hora que dá um baque. Por que isso acontece?
Artur Ávila — Olha, pode ter várias razões. As pessoas tentam achar um responsável único como um professor, ou como a responsabilidade do governo, etc. Todos têm essa responsabilidade, mas muito vem da família e do círculo social, e diria mesmo os meios de comunicação, de como apresentam a Matemática. Pais que chegam em casa e dizem que “tudo bem você não ir bem em Matemática, eu também não vou bem em Matemática”, amigos que chegam no restaurante e dizem “ah, eu não sei, não vou fazer a divisão, isso aí tem que ir para o engenheiro do grupo”. Isso cria uma situação onde a criança vê que você não precisa saber Matemática, imagina, quando na verdade é uma coisa necessária para vários níveis. Então, já criar uma exclusão nesse momento, seja de ambiente, de amigos ou pais, bem antes de chegar a questão de como os professores estão ensinando, tudo isso tem um papel em afetar que algumas pessoas não vão chegar a ponto nenhum de Matemática.

Leila Sterenberg — A gente pensa nesses meninos que fazem a Olimpíada de Matemática que eu citei, e são realmente milhões, acho que 19 milhões de alunos que participam todos os anos, é uma coisa absurda, de municípios do interior do Brasil. A Olimpíada, na verdade, não demanda conhecimento de fórmula, esse tipo de coisa, é muito mais raciocínio, é um espaço para que sejam pinçados talentos que a gente às vezes nem imagina que existam?
Artur Ávila — O sistema de Olimpíada de Matemática como tem sido implantado no Brasil, com essa amplitude, é uma coisa que data de menos de 20 anos. Essa amplitude eu considero bastante importante, pois ela cumpre uma função que acompanha a da escola. Ela não substitui outras iniciativas de ensino, mas cumpre uma função muito importante de motivação dessa garotada tão grande com um projeto que, na verdade, é muito barato. É um projeto que não sobrecarrega o sistema e cumpre uma função realmente muito eficiente de identificar pessoas que poderiam estar perdidas em algum lugar sem acesso a estruturas que permitissem levar a cabo o seu talento, seja por não ter uma universidade perto, ou por não ter professores com uma formação matemática suficiente para atender onde o aluno está chegando. Então a gente tem a possibilidade de atingir muito mais dos talentos que estão espalhados.

Leila Sterenberg — De modo geral os nossos alunos saem do ensino médio sabendo muito pouca Matemática, uma simples regra de 3 é um bicho de sete cabeças para muitos dos nossos alunos. Por que essa esquizofrenia? O fato de a gente ter um centro de excelência e ter gente muito boa, não poderia haver uma troca maior de alguma forma?
Artur Ávila — Bom, primeiro, as coisas funcionam diferente no Brasil e na França, nossos problemas são diferentes, as dificuldades daqui são muito maiores, mas essa mesma pergunta já me foi colocada na França. Eles também se preocupam lá com os resultados no Pisa e observam que a elite matemática lá tem excelentes resultados. Eles acham que existe esse desnível, talvez em medida menor do que você mencionou, mas ainda assim eles têm essa preocupação.

Na verdade, são problemas muitas vezes distintos: a primeira é a questão de criar uma formação básica para a população e resolver a questão de alcançar todo mundo, principalmente em um país de grande tamanho. A outra é você desenvolver a Matemática na ponta. Às vezes você pode resolver um problema sem resolver o outro, e pode ser em qualquer direção. O Brasil, na pesquisa de alto nível, pode estar mais avançado que a Coreia do Sul, que vai ter resolvido muito melhor a questão do ensino de base.

Claro que, se você tem um universo maior de alunos que tenham preparação básica para Matemática, a gente vai ter uma chance maior de colher possíveis pesquisadores. Mas, na verdade, é preciso uma preparação tão especial que não é esse o fator mais limitante desse processo.

Agora, é preciso haver uma interação e tentar aproveitar a existência do IMPA para tentar dar um impulso e ajudar nas soluções dos problemas de educação de base do país. O IMPA, inclusive, tem pego para si já há algum tempo essa responsabilidade em vários níveis, tanto com a aproximação, por exemplo, no caso da Olimpíada, como questões de formação de professores, tentando imaginar iniciativas de criar uma formação melhor. 

Leila Sterenberg — Você, entre outras coisas, estuda um negócio chamado sistemas dinâmicos. Eu já tinha pedido um exemplo bem simples, e você falou dos planetas. Eu vou pedir para você explicar tentando traduzir o conceito, assim bem feijão com arroz, para quem está em casa.
Artur Ávila — Esse é o sistema mais clássico para exemplificar, o das fundações dos sistemas dinâmicos, porque todos foram apresentados à existência de planetas. As regras mais simples que temos para gravitação, o modelo de Newton, já descreve de uma maneira muito simples a interação de um planeta em torno do Sol, no sistema mais simplificado possível. Isso se aprende na escola, as órbitas em torno do Sol e coisas desse gênero.

Agora, o que as pessoas não imaginam é que se você imaginar a interação de dois planetas em torno do Sol é extremamente mais complicada. E desde Newton há vários problemas não compreendidos sobre esse tipo de sistema. A interação em um prazo muito longo entre esses astros levanta questões sobre estabilidade e instabilidade que não foram resolvidas. Não se sabe, em princípio, qual vai ser a chance de que um dos planetas seja perturbado pelo outro, até que, digamos, ele escapa do centro solar ou coisa do gênero.

E é exatamente essa questão de estudar um fenômeno aparentemente simples no curto prazo. Não há muita dúvida, não tem nenhum planeta escapando do Sol de hoje para amanhã e a gente tem muita confiança que não vai acontecer nos próximos cem mil anos ou coisa parecida, mas se imaginar que o processo se repete em um tempo muito, muito, muito longo, a questão se torna uma questão de sistemas dinâmicos, muda o nível de dificuldade e outras possibilidades aparecem.

Isso é uma coisa que a gente estuda, nesse modelo, por exemplo, e inspirado por esses modelos e em muitos outros modelos, alguns mais aplicados a problemas concretos e outros que têm uma relevância maior simplesmente na Matemática mesmo.

Leila Sterenberg — Muita coisa na Matemática é igual desde os gregos. Se a Matemática em boa parte é a mesma desde os gregos, o jeito de ensinar Matemática tem que mudar ou pode ser o mesmo desde os gregos?
Artur Ávila — A Matemática tem esse aspecto de permanência que é uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que o que foi feito pelos gregos de fato continua válido até hoje. O que a gente está fazendo agora, a gente tem a confiança de que continuará sendo válido daqui a mil anos, isso dá um certo prazer.

Mas também vejo que cria uma percepção errada das coisas, porque a gente faz uma Matemática que os gregos não poderiam imaginar. E dentro dessa continuidade há muita inovação, não pára, é um processo contínuo. E para uma pessoa que não está tendo esse contato é muito difícil imaginar, porque na escola as pessoas vão aprender a base, vão ser expostos à Matemática dos gregos, nada muito moderno, criando uma percepção de que talvez a Matemática tenha parado.

Mas quem faz Matemática, faz umas contas um pouco mais complicadas do que aquelas que a gente estava aprendendo na escola. Enquanto em outras disciplinas, por exemplo, na Química do ensino médio, vai haver coisas que são descobertas bastante recentes. Qualquer coisa do século XX em termos de Matemática seria extremamente recente e você só aprenderia bem mais tarde, talvez no mestrado, enquanto estão falando disso no ensino médio, da Biologia, na Física, etc.

O resultado é criar essa impressão negativa de que a Matemática já foi compreendida e agora é só utilizada para outras coisas. Então, é uma dificuldade que aparece. Eu acho que realmente não se pode atropelar a base, a Matemática é muito cumulativa, você não ir para o fim sem ter passado pela parte inicial. Essa é uma característica bastante particular quando você compara com outros campos. Quando você imagina como ensinar Matemática, tem que ter atenção a essa especificidade.

Leila Sterenberg — Eu entrevistei o Andreas Schleicher que é um alemão que criou o Pisa, e ele disse que “o Pisa vai mudando, e agora a gente vai começar a medir coisas como resiliência, criatividade, capacidade empreendedora”. Uma coisa que ele defende muito é que os currículos sejam mais enxutos, quer dizer, tenham menos matérias e possa haver uma profundidade maior no aprendizado. Você acha isso desejável para a Matemática também? Se a gente na escola tivesse mais tempo para mergulhar mais fundo na Matemática na verdade ela seria mais prazerosa? Que Matemática você gostaria, por exemplo, que estivesse sendo ensinada para o seu filho pequeno?
Artur Ávila — Olha, eu acho que qualquer maneira de apresentar Matemática tem que focar na individualidade dos estudantes. As pessoas vão ter características diferentes, não tem uma fórmula que se vá se adequar. Acho que o sistema de ensino deve conter, em si, uma diversidade, a possibilidade de o estudante buscar a coisa que mais se adeque a ele.

Mas certamente eu acho que é negativo você ter uma quantidade muito grande de material que vai ser visto muito superficialmente, porque isso impede o estudante de se aprofundar, ele fica tão disperso que, mesmo que tenha vontade, não vai ter tempo para se concentrar naquilo depois. Então, coloca-se essa questão de currículo, e depois a questão de profundidade.

Isso se aplica até na universidade. Eu vejo currículo universitário, a quantidade das coisas que os estudantes precisam aprender e imagino se você realmente quiser se dedicar a cada uma dessas você não vai estar aprendendo realmente bem nada, você vai estar só correndo para cumprir as funções básicas e satisfazer para você tirar nota para passar.

Isso quando uma pessoa deveria buscar o que vai inspirar, ter o tempo para se dedicar mais a algum dos temas. Então, talvez, deveria se permitir uma quantidade menor de conteúdos, com mais tempo para olhar e tentar interpretar o que cada estudante vai se interessar mais. Mas claro que tem que ser criada a oportunidade para eles terem tempo de descobrir o que interessa a eles, então nisso passa uma parte de estar o universo a ser ensinado um pouquinho mais enxuto.

Leila Sterenberg — A Matemática tem alguns problemas clássicos, famosos, entre vocês matemáticos, alguns estão por ser resolvidos há dezenas, às vezes centenas de anos. Você tem algum problema fetiche, que você gostaria muito de resolver e no qual você fica pensando de vez em quando?
Artur Ávila — Olha, tem problemas que interessam a todos os matemáticos. No meu campo, por exemplo, um dos problemas é o problema da conectividade local do conjunto de Mandelbrot, que vai ser difícil de explicar. Basicamente, existe um conjunto fractal muito bonito, as pessoas podem buscar conjunto de Mandelbrot no Google, e depois vocês podem fazer ampliações desse conjunto e ver pedacinhos muito interessantes.

Tem um problema matemático que simplesmente diz a estrutura desse conjunto em escalas muito pequenas. Esse conjunto, quando se olha em escalas muito pequenas, ele não se quebra em pedacinhos. Então isso que é a conectividade local, e esse problema parece simplesmente ser uma questão sobre um pequeno desenho, como é que ele vai ser.

Parece muito esotérico, mas ele tem a ver com questões muito profundas da estrutura dos sistemas dinâmicos de um certo tipo, que se relaciona também com geometria e outras coisas, são várias áreas ligadas ao mesmo tempo. A Matemática tem disso, às vezes tem uma questão que pode ser formulada como uma curiosidade, mas na verdade essa questão em particular tem uma grande profundidade, e, se você conhecer suficientemente da teoria, você pode identificá-la.

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