Opinião

União responde por filhos que militares brasileiros geraram no Haiti

Autor

  • Felipe Dalenogare Alves

    é professor de Direito Administrativo e Constitucional doutorando em Direito (com tese admitida e depositada aguardando defesa) pela Universidade de Santa Cruz do Sul mestre em Direito especialista em Direito Administrativo e em Direito Militar e Autor de obras jurídicas pelas editoras Rideel e Lumen Juris entre outras.

13 de janeiro de 2020, 7h02

No dia 18 de dezembro de 2019, foi publicado no jornal The New York Times notícia que aponta o resultado de uma preocupante pesquisa. Intitulada “U.N. Peacekeepers in Haiti Said to Have Fathered Hundreds of Children” (leia aqui), a publicação retrata uma investigação feita pelas pesquisadoras Sabine Lee (University of Birmingham) e Susan Bartels (Queen's University, Ontario), a qual denuncia que membros das Forças de Paz da ONU no Haiti, integradas em sua grande maioria por brasileiros, deixaram centenas de filhos naquele país (leia aqui).

A pesquisa traz importantes reflexões ao Direito Administrativo, que envolvem situações peculiares com reflexos nos campos do Direito de Família e Processual Civil, que devem ser analisadas à luz da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, as quais passo a expor, principalmente ao que tange à responsabilização do Estado brasileiro (na esfera interna e internacional), bem como à eventual responsabilização regressiva da União em face dos supostos pais.

Um dos pontos juridicamente mais importantes da pesquisa trata da dificuldade da busca individual, por parte das mães haitianas, pela identificação e responsabilização dos pais, agravada pela inércia da ONU. Em janeiro de 2018, conforme a pesquisa, a Bureau des Avocats Internationaux havia ajuizado ações de investigação de paternidade em nome de dez crianças haitianas no judiciário daquele país, as quais não obtiveram sucesso pela recusa das Nações Unidas em apresentar resultados de exames de DNA, cruciais, obviamente, para o sucesso das demandas.

Pois bem, entendo que, neste caso, embora seja a ONU pessoa jurídica de Direito Público externo, com personalidade jurídica própria, respondendo, portanto, pelos danos de seus agentes (como um todo), não se afasta a responsabilidade solidária objetiva do Estado brasileiro (no caso, a União) aos filhos desamparados pelos seus agentes que lá estavam em seu nome. Isso porque o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, prevê que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ainda que este parágrafo, a meu ver, não deixasse qualquer dúvida quanto à legitimidade passiva da União pelos danos de agentes públicos em virtude do exercício funcional (ainda que reflexos), por mim sempre defendida, principalmente diante da teoria da dupla garantia cunhada pelo Supremo Tribunal Federal, a pacificação da matéria ocorreu com a tese de repercussão geral fixada em 14 de agosto de 2019, por este tribunal, no sentido de que “a teor do disposto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de Direito Privado, prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Obviamente que, para esta responsabilização civil, os elementos a serem demonstrados seriam a conduta estatal (a paternidade de agente brasileiro que lá estava no exercício de suas funções e só em razão disso), dano (a constatação do desamparo da criança gerado por um agente estatal) e o nexo de causalidade entre a paternidade/desamparo do agente estatal. Neste caso sui generis na contemporaneidade brasileira (outros poderiam ter surgido após a atuação brasileira na 2ª Guerra Mundial), diante da dificuldade fática de promoção individual da responsabilização, penso ser possível a tutela dessas crianças (vulneráveis) tanto pelo Estado haitiano, quanto pelo Ministério Público Federal, como autores da ação de responsabilização do Estado.

Ante a vulnerabilidade infantil, somadas à manutenção da moralidade estatal internacional e ao próprio interesse público indisponível, não se pode desconsiderar a legitimidade ativa dessas instituições. A primeira como tutor de seus nacionais gravemente lesados (Estado haitiano) e a segunda como garante de pessoas em situação de vulnerabilidade, supostamente lesadas por membros do Estado brasileiro, fator que lhe impõe a tutela não apenas desta coletividade, mas do próprio interesse público em abstrato.

O leitor, neste momento, deve estar se perguntando: como fazer a prova da conduta? Entendo, neste primeiro momento (de responsabilização do Estado), que a produção probatória seja menos complexa, uma vez que se cinge à demonstração da autoria (da paternidade) de agente estatal (que só estava lá em virtude do exercício de suas atribuições funcionais). Existe a possibilidade de conformação entre o marco cronológico do período gestacional e o levantamento dos agentes que compunham o contingente brasileiro naquele país (com atuação geralmente semestral). O número de integrantes deste contingente é significativamente pequeno, tendo a União o dever de fornecer subsídios que possibilitem a identificação dos supostos pais (um “carômetro”, por exemplo) por parte das mães.

Essa identificação pessoal da mãe, nesta fase de responsabilização do Estado, complementada por outros elementos de prova, como a testemunhal e até a própria confissão de eventual relação sexual por parte do agente apontado, a meu ver, por se tratar de responsabilidade objetiva, já é suficiente à responsabilização da União, independente de exame de DNA, até por previsão do próprio artigo 1.605, inciso II, do Código Civil.

Também penso que não há de se afastar o nexo causal, ao se pensar prima facie, que no ato da conjunção que ocasionou a gravidez, o agente não estaria no exercício funcional. Obviamente que, neste caso, trata-se de dano reflexo, pois os agentes brasileiros só estavam em solo haitiano em decorrência de imposição estatal, diferentemente, se estivessem, esporadicamente, a passeio, em qualquer outra ocasião de suas vidas. A partir do momento em que desembarcaram em solo estrangeiro, para o cumprimento de suas funções, todo e qualquer dano direito ou reflexo ocasionado por qualquer um de seus representantes importará conduta do Estado brasileiro.

A União, por sua vez, reparando o dano ocasionado por seus agentes, possuirá o poder/dever regressivo contra estes. Há um interesse público que impõe a responsabilidade regressiva em face do agente causador do dano. Nesta situação, ocorrida em um segundo momento, a responsabilidade é subjetiva. Significa que, além dos elementos objetivos já apontados acima (conduta, dano e nexo causal), há a necessidade de demonstração de culpa ou dolo por parte do sujeito, que pressupõe a individualização com a prova inequívoca da autoria.

Significa dizer que, para a responsabilização da União, basta a demonstração de que o pai era um agente brasileiro (pouco importando a identificação de quem, entre eles, efetivamente causou o dano, ou seja, se dispensa a individualização subjetiva da conduta). Por outro lado, para a responsabilização regressiva de um agente estatal, é indispensável a prova inequívoca da conduta, de modo individualizada (a paternidade do agente A ou B). Para tanto, vislumbramos duas possibilidades. A primeira, poderá ocorrer através de uma sindicância (administrativa) de investigação de paternidade; a segunda, através da ação judicial de investigação de paternidade, o que deve ser analisado sob a perspectiva do direito público.

No primeiro caso, a sindicância é o elemento processual administrativo adequado, ante seu cunho investigatório. Na via administrativa, a prova da paternidade poderia resultar de exame de DNA realizado voluntariamente pelo agente(s) investigado(s) como suposto pai. Não entendo ser possível, nesta via, a imputação da paternidade presumida, conforme o artigo 2º-A, parágrafo único, da Lei 8.560/92, e Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça. Não havendo sucesso administrativamente, ao menos, este instrumento auxiliará a União nos subsídios para ajuizamento da ação de investigação de paternidade, principalmente para a necessária individualização da conduta, pois “afunilará” o(s) agente(s) do contingente sobre os quais recairá esta ação judicial.

Na segunda hipótese, a ação de investigação de paternidade torna-se pressuposto incidental à produção probatória para a responsabilização regressiva subjetiva, devendo ser intentada pela União, diante da indisponibilidade desse interesse na situação concreta. Dito de outro modo, a sociedade não pode arcar com os custos da reparação, quando há possibilidade de identificação do agente causador do dano e a possibilidade de imputação pessoal, a fim de que haja a recomposição do montante retirado dos cofres públicos a título de indenização.

Veja-se que, nessa situação concreta, embora o artigo 1.606 do Código Civil preveja que “a ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz”, este dispositivo deve ser interpretado à luz do artigo 2º, parágrafo 6º, da Lei 8.560/92, inserido pela Lei 12.010/09, o qual prevê que “a iniciativa conferida ao Ministério Público não impede a quem tenha legítimo interesse de intentar investigação, visando a obter o pretendido reconhecimento da paternidade”, previsão que nos leva a defender a legitimidade ativa da União. Esses dispositivos, aqui de modo peculiar, devem ser interpretados sob os preceitos de direito público, que são calcados na supremacia e na indisponibilidade do interesse público.

Na ação de investigação de paternidade, diferentemente da via administrativa, há a incidência da presunção juris tantum da paternidade, no caso de recusa em realização do exame de DNA, por força do artigo 2º-A, parágrafo único, da Lei 8.560/92, e da Súmula 301 do STJ, elemento que possibilitará, caso haja oposição do agente, sua responsabilização pessoal.

A falta e/ou ineficiência dessas medidas poderá levar à responsabilização internacional do Estado brasileiro, a ser buscada na Organização dos Estados Americanos (OEA), utilizando-se do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), tanto pelo Estado haitiano (signatário da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos [CADH] e submisso à competência consultiva e contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos [Corte IDH]), bem como pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), após a admissibilidade e processamento de representações individuais remetidas por pessoas ou grupos de pessoas, uma vez que se está, conforme o noticiado pela pesquisa, inequivocamente, diante de grave violação aos direitos humanos.

Diante do que foi exposto, conclui-se, portanto, não apenas pela possibilidade de responsabilidade objetiva da União pelos danos causados pelos seus agentes, que, diante das circunstâncias peculiares, poderá ser promovida tanto pelo Estado haitiano quanto pelo Ministério Público brasileiro, mas também pela possibilidade de responsabilidade regressiva subjetiva da União contra o agente causador do dano, sob pena, inclusive, de responsabilidade internacional do Estado brasileiro ante à Corte Interamericana de Direitos Humanos, tema que será objeto de artigo que virá na sequência.

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  • é professor de Direito Administrativo e Constitucional, doutorando em Direito (com tese admitida e depositada, aguardando defesa) pela Universidade de Santa Cruz do Sul, mestre em Direito, especialista em Direito Administrativo e em Direito Militar e Autor de obras jurídicas pelas editoras Rideel e Lumen Juris, entre outras.

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