Opinião

A inconstitucionalidade do artigo 24 da Medida Provisória 905/2019

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12 de janeiro de 2020, 6h31

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço é, indubitavelmente, um verdadeiro patrimônio dos trabalhadores, uma conquista da classe e, tem por umas de suas finalidades, valorizar o tempo de serviço em que o empregado laborou em determinada empresa, constituindo-se dever de cada trabalhador zelar por sua poupança.

Assim, inúmeros trabalhadores ingressaram ações judiciais em face da Caixa Econômica Federal e da União alegando, em síntese, que os saldos das contas vinculadas ao FGTS de que são titulares foram corrigidos a menor à época dos Planos Bresser, Verão, Collor I e Collor II. Os planos citados constituíram um conjunto de medidas econômicas destinadas a controlar a inflação.

Eis que a demanda chegou ao Supremo Tribunal Federal, principalmente através dos Recursos Extraordinários — RE 248.188 e RE 226.855 — buscando os autores provimento judicial que lhes assegurassem o cômputo dos índices inflacionários expurgados da correção monetária aplicada aos saldos das contas vinculadas ao FGTS de que são titulares.

E assim, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que os saldos das contas vinculadas ao FGTS foram corrigidos a menor à época dos Planos Verão e Collor I.

Não somente os autores das ações judiciais, mas todos os outros trabalhadores que tiveram de forma injusta a correção monetária a menor em suas contas nos períodos indicados, também foram beneficiados por esta, em virtude da decisão do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, de estender de forma automática a correção do saldo de todos os trabalhadores.

Desta forma, o julgado teve o efeito de aumentar o passivo do FGTS sem o correspondente aumento do ativo necessário para evitar um desequilíbrio patrimonial no fundo. Isto criou uma necessidade de geração de patrimônio do FGTS da ordem de 42 bilhões de reais (valores estimados à época). Fazendo-se necessário que a União, de alguma forma, tomasse providências no sentido de cobrir o iminente rombo nas contas públicas.

Optou-se então pela instituição de uma contribuição social para fazer frente à estas despesas, e assim, através do Projeto de Lei Complementar 195/2001 tramitou no Congresso Nacional a criação desta nova contribuição, e discutiu-se, principalmente, quanto à sua incidência, alíquota, base de cálculo, etc.

Denota-se da justificação do referido PLC que a União buscou meios alternativos a criação de uma nova exação ao contribuinte, como podemos observar trecho extraído deste:

A cobertura de um passivo de tamanha magnitude, correspondente a quase 4% do total do produto gerado no país, não é uma tarefa fácil. Uma possibilidade seria que o Tesouro Nacional o assumisse e repassasse ao FGTS o montante de recursos necessários. O problema é que, para tanto, seria necessário que o Tesouro Nacional aumentasse a dívida pública no montante dos recursos necessários (4% do PIB) ou aumentasse a oferta monetária neste mesmo montante. No primeiro caso, o efeito seria um aumento das taxas de juros que, muito provavelmente, abortaria o recém retomado crescimento da economia brasileira, com menor geração de empregos e aumento da taxa de desemprego. No segundo caso, teríamos um aumento da taxa de inflação. Em ambas as situações, o efeito final atingiria principalmente os trabalhadores mais pobres e menos qualificados.

Discutido o projeto, e aprovado pelos parlamentares de ambas as casas do Congresso Nacional, Fernando Henrique Cardoso sanciona o PLP 195/2001 e a promulga, fazendo nascer a Lei Complementar 110/2001.

A União então, institui a famosa contribuição social mais conhecida como “multa dos 10% sobre o FGTS”, que não deve ser confundida com a multa dos 40% sobre os saldos das contas vinculadas ao FGTS pois, estas, são pagas ao trabalhador, e possui previsão na CLT, além de serem verbas rescisórias de caráter indenizatório, natureza jurídica totalmente diferente da “multa dos 10% sobre o FGTS” que tem natureza tributária, é recolhida ao Fisco, e tem finalidade de custeio da previdência social.

O artigo 1º da LC 110/2001 dispõe: “Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem justa causa, à alíquota de dez por cento sobre o montante de todos os depósitos devidos, referentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, durante a vigência do contrato de trabalho, acrescido das remunerações aplicáveis às contas vinculadas”. Deste modo, o empregador que rescindir o contrato de trabalho do empregado, sem justa causa, deverá recolher aos cofres públicos contribuição social que incidirá sobre o saldo das contas vinculadas ao FGTS do empregado, à alíquota de 10%.

Dito isso, partimos então para a análise de todos os aspectos fundamentais da LC 110/2001. A constitucionalidade de uma proposição legislativa deve ser verificada tanto em seu aspecto formal, em relação às regras do processo legislativo e às competências para dispor sobre a matéria; quanto em sua face material, tendo em vista o conteúdo da proposição.

Assim, disciplina a Lei Maior de nosso país em seu artigo 195 que: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais…”.

Dentre as contribuições sociais elencadas nos incisos do artigo supramencionado, não consta previsão sobre a contribuição social a que se trata a LC 110/2001, entretanto, isso não obsta a criação de novas fontes de custeio para a seguridade social, conforme dispõe o parágrafo 4º do art. 195: “A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no artigo 154, I”. Denota-se que o dispositivo incumbe a lei a criação de nova contribuição social, desde que observado o inciso I do artigo 154.

Pois bem, o artigo 154, I, da Constituição Federal, aduz:

Art. 154. A União poderá instituir:

I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.

Podemos observar que a União no exercício de sua competência residual para instituir novas contribuições sociais, está condicionada a fazê-la por meio de lei complementar, além disso, deverá a nova contribuição ser não-cumulativa e, não possuir fato gerador ou ter base de cálculo de impostos já existentes.

Dito isso, e a fim de entender por que o artigo 24 da MP 905/2019, editada pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro para extinguir a contribuição social a que se refere à LC 110/2001, é inconstitucional, devemos tecer algumas considerações importantes sobre os requisitos de validade de uma medida provisória.

O artigo 62 da Constituição Federal expõe: “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”. Depois de editada a MP, o texto segue à apreciação do Congresso Nacional, iniciando-se sua votação na Câmara dos Deputados, lembrando que, a deliberação sobre o mérito da medida provisória dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais, sendo um deles, acerca da matéria em que a medida provisória poderá disciplinar.

Neste diapasão, o inciso III do parágrafo 1º do artigo 62 da Constituição Federal, deixa claro que é vedado a edição de medidas provisórias sobre matérias reservadas a lei complementar, isso porque, após regular processo legislativo, a medida provisória é convertida de lei ordinária, que possui um quórum e procedimentos legislativos diferenciados da lei complementar, ditos mais rígidos, quanto à lei ordinária.

Por esta razão, não pode o presidente da República transgredir a Constituição Federal a seu bel prazer, e extinguir uma contribuição social criada por lei complementar por meio de uma medida provisória.

Neste momento, devemos nos abstrair de outras inconstitucionalidades acerca da contribuição social a que se refere a LC 110/2001, quais sejam a tredestinação ilícita dos recursos provenientes da contribuição social, ou até mesmo a insubsistência dos motivos que ensejaram a sua criação, aqui, explanamos tão somente quanto aos fundamentos que ensejaram a inconstitucionalidade da MP 905/2019 por vício formal, quando da extinção desta contribuição social.

Nessa linha, o senador Renato Casagrande apresentou em 2012 projeto de lei complementar (PLP 200/2012) para extinguir, a partir de 1º de junho do ano de 2013, a contribuição social referente à “multa dos 10% do FGTS”, após regular trâmite no Congresso Nacional, o projeto de lei fora aprovado, e encaminhado à Presidência da República, à época chefiado por Dilma Rousseff, para sanção ou veto. O projeto de lei foi integralmente vetado, de acordo com a presidente, o mesmo contraria o interesse público, e traria grandes impactos ao programa Minha Casa, Minha Vida, além disso, a extinção da cobrança da contribuição social geraria um impacto superior a R$ 3 bilhões por ano nas contas do FGTS. O Poder Legislativo aceitou o veto presidencial.

Atualmente, está em trâmite no Senado, o Projeto de Lei Complementar 550/2015, de autoria do senador Cássio Cunha Lima, também para extinguir a contribuição social referente à “multa dos 10% do FGTS”.

Por todo o exposto, é nítido que o artigo 24 da MP 905/2019 viola gravemente preceitos constitucionais, um deles, a separação de poderes, usurpando a competência legislativa para disciplinar sobre matéria reservada à lei complementar.

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