Opinião

O novo modelo de arquivamento de inquéritos e o princípio da oportunidade da ação

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

12 de janeiro de 2020, 6h02

Contribuindo para a consolidação do modelo acusatório, o pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019) alterou a redação do artigo 28 do Código de Processo Penal para excluir a participação do juiz criminal do controle da decisão de arquivamento de inquéritos policiais. Ao mesmo tempo, a lei instituiu um controle substituto, uma espécie de remessa necessária à instância superior do Ministério Público, conjugada com a possibilidade de recurso voluntário da vítima.

Para assegurar o funcionamento desse novo regime de aferição da suficiência das razões para arquivar, a lei prevê que, ao decidir pelo arquivamento do inquérito policial, seja por que motivo for, o promotor de Justiça ou o procurador da República deverá dar ciência à vítima (ou a seu representante legal), ao investigado e à autoridade policial. Após esgotado o prazo de 30 dias da notificação, com ou sem recurso voluntário da vítima, os autos devem subir para reexame pela Procuradoria-Geral de Justiça, nos crimes de competência estadual, e pelas Câmaras de Coordenação e Revisão (CCR) que existem nos três ramos criminais do Ministério Público da União. No Ministério Público do Distrito Federal e no Ministério Público Militar, a decisão final é dos procuradores-gerais, ao passo que no Ministério Público Federal a homologação cabe a uma das câmaras com competência criminal.

Embora a lei não o diga, o Ministério Público também deverá dar ciência ao juiz das garantias, para eventual baixa de distribuição ou de registros e a revogação de medidas cautelares, se for o caso. Na instância superior do MP, o órgão revisor poderá manter a decisão de arquivamento ou determinar o prosseguimento das investigações ou já designar outro promotor ou procurador para proceder à ação penal.

O novo modelo do artigo 28 do CPP aumentará muito o fluxo de inquéritos entre os “promotores naturais”, sobretudo os da primeira instância, e os órgãos de revisão, que se situam nas capitais dos Estados e em Brasília. O processo eletrônico, tanto para a tramitação dos inquéritos quanto para as intimações e os recursos, será ferramenta essencial para reduzir os custos com a nova tramitação que o artigo 28 do CPP determina.

Com o sistema de revisão interna obrigatória, o espaço de discricionariedade do Ministério Público aumentou. Esta é uma das consequências da entronização do princípio acusatório no artigo 3º-A do CPP. A novidade exigirá o aperfeiçoamento da Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que cuida do procedimento de investigação criminal (PIC) e também trata do arquivamento de inquéritos policiais, em seu artigo 19. Seja por meio da alteração desse ato ou da aprovação de uma nova regulamentação, cabe ao CNMP, sem criar direito novo, sistematizar o novo procedimento de revisão interna cogente e recomendar boas práticas de gestão de casos criminais que podem ser hauridas em diversos MPs do país.

Doravante, a instituição e seu órgão de controle terão à disposição dados qualitativos e quantitativos, gerais por estado ou no âmbito da Justiça Federal, sobre inquéritos policiais concluídos e submetidos a arquivamento. Como consequência, o Ministério Publico, como instituição, terá mais controle sobre a decisão de não acusar. A centralização da decisão final sobre a deflagração ou não da persecução criminal nas procuradorias-gerais de Justiça ou nas câmaras criminais do MPU, permitirá a uniformização de posições que serão as institucionais — e não as individuais deste ou daquele órgão na comarca X ou na subseção Y — sobre a viabilidade de adoção do princípio da oportunidade da ação penal neste ou naquele caso.

Em função do artigo 62, inciso IV, da Lei Complementar 75/1993, já há algo similar no MPF, com seus enunciados e orientações aos membros sobre o arquivamento de inquéritos policiais. Diversamente do que pode parecer, para quem entoa a cantilena do “punitivismo”, estatísticas do CNMP mostram que o Ministério Público no Brasil arquiva muito. No ano de 2017, houve 983.049 denúncias em todo o país, contra 1.152.933 pedidos de arquivamento. Em 2018, a instituição promoveu o arquivamento de 1.201.191 de inquéritos e termos circunstanciados de ocorrência (TCOs), o que representa um significativo filtro no sistema penal. Para comparação, o mesmo estudo do CNMP indica que naquele ano o MP ofereceu 1.026.383 denúncias. Pode-se afirmar, portanto, que o Ministério Público não só arquiva muito como arquiva mais do que denuncia.

Uma das acepções da expressão “levar um 28”, usada pelos membros do MP brasileiro, revelava um certo dissabor de ver um pedido de arquivamento de um inquérito ser indeferido pelo juiz. Esta ingerência judicial em detrimento do investigado, que era um dos tantos resquícios do processo penal inquisitorial, não será mais possível.

O adensamento do princípio da oportunidade no processo penal brasileiro com a Lei "Anticrime", que corresponde ao enfraquecimento do princípio da obrigatoriedade, ampliará as cifras de arquivamentos, que, como vimos, já são altas. Some-se a isto o fato de que a Lei 13.964/2019 também trouxe ao plano legislativo o acordo de não persecução penal (ANPP), que se integra ao leque de decisões de não acusar que o MP pode tomar: a) arquivar um inquérito policial ou um TCO, se não houver justa causa para a ação ou se houver razões de oportunidade aferidas pela instituição conforme sua visão da política criminal do Estado; ou b) firmar acordos penais, como a transação penal e o ANPP.

A práxis do MPF de arquivamento perante as câmaras criminais — que antes da Lei 13.964/2019 convivia com o arquivamento em juízo — mostra que a gestão centralizada dos arquivamentos melhora a governança da persecução criminal, à luz dos princípios da oportunidade e da utilidade, que, em última análise, dizem respeito ao interesse público. Neste particular, a experiência de Ministérios Públicos com forte discricionariedade (prosecutorial discretion), como o Crown Prosecution Service (CPS), também pode ser muito instrutiva para que nos vejamos finalmente livres do impraticável princípio da obrigatoriedade da ação penal, tão próximo da intervenção penal máxima e tão utópico com o seu mote nec delicta maneant impunita.

A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, coordenada pela subprocuradora-geral Luiza Cristina Frischeisen, avançou muito neste desiderato. A CCR tem vários enunciados e orientações que, embora não sejam cogentes e respeitem a independência funcional, acabam se impondo, graças ao mesmo mecanismo de que se vale o direito sumular para influenciar julgadores, operando por razoabilidade e mais por persuasão que por imposição.

Tais diretrizes das câmaras criminais do MPF norteiam o trabalho dos procuradores da República em vários temas de suas atribuições, desde a negociação de acordos de colaboração premiada até a fixação de critérios para arquivamento de inquéritos policiais, segundo o interesse público e conforme as prioridades e possibilidades institucionais. É fácil perceber que esse rearranjo orgânico, agora materializado no novo artigo 28 do CPP, favorece o princípio da unidade institucional (artigo 127, parágrafo 1º, da Constituição), reduzindo a atomização das posturas do Ministério Público em temas de elevado interesse público.

Não tenho dúvidas de que o novo artigo 28 do CPP e outros mecanismos de inspiração acusatória trazidos pelo pacote "anticrime", se bem administrados, podem dar lugar a acusações mais precisas e responsáveis, com a troca do ver “ter de denunciar” pelo verbo “pode denunciar”.

Ademais, o redesenho do modelo de arquivamento favorece a segurança na tomada da decisão de não acusar, que continua a cargo do “promotor natural”, mas sujeita a revisão obrigatória, num sistema de controle que confere accountability horizontal e vertical à sua deliberação, na medida em que a vítima poderá apresentar objeções ao arquivamento e o investigado, também ele, poderá arrazoar em favor da manutenção da decisão homologada, na qual se optou por não denunciá-lo.

O aumento de trabalho nas instâncias de revisão é inevitável. Mas o sistema de enunciados pode dispensar a remessa obrigatória quando não houver recurso da vítima e o fundamento do arquivamento estiver em conformidade com a jurisprudência do órgão revisor. Algumas diretrizes das câmaras criminais do MPF já permitem que o membro do MPF deixe de enviar o caso para homologação quando a decisão de arquivar é conforme a posição institucional afirmada naquela matéria ou em razão de absoluta falta de justa causa.

Cito como exemplo a Orientação Conjunta 1, de 16 de dezembro de 2015, aprovada pela 2ª, 5ª e 7ª CCRs, que faculta “o arquivamento interno, devidamente fundamentado, independentemente de instauração formal de procedimento e de homologação das 2, 5ª e 7ª Câmaras de Coordenação e Revisão, dos expedientes recebidos pelas Salas de Atendimento ao Cidadão, quando do seu conteúdo não se vislumbre, sequer em tese, a ocorrência de crime ou improbidade administrativa, passível de ensejar a atuação institucional do Ministério Público, sem prejuízo de comunicação ao noticiante.”

Por sua vez, a Orientação 26 da 2ª CCR/MPF diz que “a antiguidade do fato investigado, o esgotamento das diligências investigatórias razoavelmente exigíveis ou a inexistência de linha investigatória potencialmente idônea, adequadamente sopesados no caso concreto, justificam o arquivamento da investigação, sem prejuízo do disposto no artigo 18 do CPP.” Este posicionamento institucional firme serve de indicativo também para os delegados de Polícia Federal, na interlocução com o promotor natural, a fim de que recursos humanos e materiais escassos sejam empregados em apurações relevantes ou com boas chances de êxito persecutório.

Já o Enunciado 36 determina que, quando o arquivamento da notícia de fato, do procedimento investigatório criminal ou do inquérito policial for promovido com fundamento nas hipóteses previstas na Resolução CNMP 174/2017, ou tiver por base entendimento já expresso em enunciado ou orientação da 2ª Câmara, os autos não deverão ser remetidos à 2ª CCR, “salvo nos casos de recurso ou quando o membro oficiante julgar necessário, registrando-se apenas no Sistema Único e cientificando-se o interessado por correio eletrônico.”.

Com a nova redação do artigo 28 do CPP, o manejo do princípio da oportunidade aumentará. Os números de arquivamentos podem gerar uma série de reflexões sobre a eficiência da investigação criminal, a qualidade da prova pericial ou a falta dela, e sobre os critérios que o MP adota para não denunciar.

No final das contas, a nova redação do artigo 28 do CPP libera parte do grande potencial do princípio da oportunidade que estava reprimido pelo sistema original do CPP, vigente desde 1º de janeiro de 1942. Esta é sem dúvida uma das mais importantes novidades do pacote "anticrime", em prol de um processo penal mais eficiente e mais racional, que atenda ao interesse público e não menospreze os direitos das vítimas nem as garantias dos investigados.

Em suma, associado ao artigo 3º-A e ao artigo 28-A do CPP, o renovado artigo 28 representa a alforria do principio da oportunidade da ação penal. Estou certo de que o Ministério Público perceberá a dimensão e a importância deste novo desafio.

Autores

  • é procurador regional da República em Brasília, ex-promotor de Justiça na Bahia, professor de Ciências Criminais e de Direito Internacional e mestre e doutorando em Direito.

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