Embargos culturais

O tema da justiça e a parábola dos trabalhadores da vinha

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12 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca
O tema da justiça é o ponto de partida e o referencial de chegada de qualquer reflexão séria sobre o direito. A relatividade do conceito, cuja fragilidade transita da metafísica para as alegorias, de lugares-comuns para promessas não cumpridas, permite todas as formas de exploração de uma ideia. Assim como se sugeriu a liberdade, inclusive para matar a liberdade, suspeita-se que se sugere a justiça como forma de extinção da própria justiça. Tomemos cuidado.

Na tradição ocidental a ideia de justiça predica no dualismo entre o bem e o mal, no absolutismo da virtude, na teoria platónica da verdade, nos problemas aristotélicos de distribuição e de correção, no bem e, essencialmente, no amor. Principalmente no amor. Há versões mais contemporâneas de ideais de justiça, que radicam na liberdade (Rawls) ou auto-interesse, na simpatia e no compromisso (Amartya Sen). No limite oposto, a justiça é uma ilusão (Kelsen). Há uma dimensão prática, isto é, a quem deve se associar uma ideia de justiça, à democracia ou à autocracia ou, ainda, à economia livre ou à economia planejada? Há, substancialmente, o tema da desigualdade, que se resolveria na igualdade real (e não formal) de chances e de oportunidades. No sentido escolástico (São Tomás) a justiça é a principal das virtudes morais.

A tradição das Sagradas Escrituras oferece um interminável campo de reflexões sobre a justiça. Para um autor insuspeito no assunto (Kelsen), “a justiça é um mistério – um dos muitos mistérios – da fé”. A ideia de justiça no apóstolo Paulo, por exemplo, sintetiza-se no amor ao próximo, devido na mesma medida do amor que se tenha por si mesmo. Pode-se cogitar que o tema da justiça, porque um tema essencial da existência, é um dos temas centrais das Sagradas Escrituras. Ainda que tratados de um modo simbolicamente distintos no Antigo e no Novo Testamentos, há pontos em comum que provocam muita reflexão.

Nesse sentido, e em relação ao Novo Testamento, chamo a atenção para uma dificílima passagem contida em Mateus (20:1-16) que trata da parábola dos trabalhadores da vinha. Se o leitor espera uma reflexão teológica feita por autor competente no assunto, pare por aqui. Não sou teólogo, e não tenho competência para tratar de assuntos dessa magnitude. O esforço que segue resulta de uma exploração hermenêutica de uma narrativa literária. Os textos canônicos também são literatura (de primeiríssima qualidade). Não há nada que interpretar me impeça. Para os interessados em teologia é indispensável a leitura de Klyne Snodgrass, “Compreendendo todas as parábolas de Jesus”.

Enquanto Platão valia-se de alegorias e Paulo de cartas, os Evangelistas recorrentemente apresentavam parábolas. São pequenos textos de interpolação, que aproximam narrativas e metáforas, de advertência, de exemplo e de revelação, como referências ficcionais ilustrativas da vida. Há assuntos que se ensinam e há assuntos que não se ensinam nas parábolas.

Na parábola dos trabalhadores da vinha o enredo parece simples. Compara-se o Reino dos Céus a um proprietário que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou o preço e enviou-os para o trabalho. Ao longo do dia reuniu desocupados, até a hora undécima, e os enviou também. Pediu, no fim do dia, que o administrador chamasse a todos os trabalhadores, e que os pagasse pelo trabalho. A todos eles, tanto os que trabalharam o dia todo, quanto os que trabalharam por pouquíssimo tempo, os remunerou da mesma forma.

Os que trabalharam o dia todo se insurgiram. O proprietário argumentou que pagava exatamente como havia combinado. Pediu que tomassem o que fora ajustado e que se fossem então. Lembrou que era lícito que fizesse o que quisesse com o que fosse seu. O excerto se encerra de modo proverbial: “(…) os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos [porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos]”.

Na literatura especializada essa parábola é interpretada sistematicamente de vários modos, que não são excludentes. Há ênfase na importância da conversão tardia; isto é, os últimos eram os gentios, e os primeiros seriam os judeus. Na tradição protestante enfatiza-se também a plena, absoluta e indiscutível liberdade de escolha, por parte do proprietário, o que significa a preponderância da salvação pela graça, em oposição à salvação pelas obras. Pode ser uma interpretação calvinista. Chama-se também a atenção para a generosidade do proprietário. Percebe-se que a parábola também adverte dos perigos da avareza e da inveja. Explica-se o excerto também como uma referência à necessária solidariedade humana. Todos esses argumentos são explorados com competência no livro acima indicado.

Numa percepção não teológica há muitos problemas no ar. E há muitas soluções também. O proprietário cumpriu integralmente o que compactou com os primeiros trabalhadores, e por isso não pode ser censurado. O proprietário tem plena disposição sobre a remuneração que oferece, a opção é própria, e não pode ser reprimido, especialmente, se cumpriu o que contratou. Há um direito de disponibilidade dos próprios bens, especialmente porque não prejudicou a ninguém. No contrato com os primeiros trabalhadores não havia cláusula estipulando que se alguém trabalhasse menos, e recebesse igualmente, a remuneração seria elevada.

Também fora do campo teológico há quem possa argumentar que houve injustiça no pagamento, isto é, remunerou-se da mesma maneira a trabalhadores que fizeram trabalhos idênticos, em quantidade distinta de horas. Haveria (muito em tese) uma incompatibilidade da forma de pagamento com o disposto no inciso XXX do art. 7º da Constituição, com todo o horror que o anacronismo suscita. Argumento imprestável.

O problema central está no fato de que, distanciando-se do problema teológico, essa parábola pode sugerir a constatação da impossibilidade de se fixar um critério único e indiscutível de justiça. O conceito é volátil. No sentido aristotélico a justiça distributiva tem como parâmetros necessidades e proporções, em contexto no qual o Estado atua como preponderância. Por outro lado, a justiça comutativa operaria entre particulares, pautando transações, nas quais a cada um tocasse o que lhe pertencesse.

Nenhum desses critérios, o distributivo ou o comutativo, penso, resolveriam o problema, fora do contexto teológico, bem entendido. Ainda segundo Kelsen, talvez nunca encontraremos uma resposta satisfatória e definitiva para o problema da justiça. Melhor, assim, tentarmos perguntar melhor.

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