Opinião

O juiz das garantias na Justiça eleitoral

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11 de janeiro de 2020, 6h30

O juízo das garantias foi um enxerto, de viés garantista, feito num projeto de lei (o pacote "anticrime”, do Ministério da Justiça) de marcada intenção de defesa social. Isso colabora para explicar a polêmica que cerca a inovação e, talvez, as inúmeras lacunas da Lei 13.964/2019.

Ela não diz se a medida vale para os processos atuais — obrigando a uma grande dança de cadeiras nos foros criminais — e se alcança os julgamentos feitos originalmente por tribunais.

A lei previu um prazo muito curto para o início de sua vigência, apenas 30 dias, claramente insuficiente para que a comunidade jurídica conheça e estude os novos dispositivos.

Tomando lado na polêmica, entendemos que a inovação aproxima o processo penal brasileiro do princípio acusatório, no qual são bem distintas as tarefas de investigar, assegurar direitos dos investigados, processar e julgar. Somos favoráveis, assim, ao instituto.

Lamentamos que a lei não tenha vedado de forma clara e direta a possibilidade de que órgãos do Judiciário requisitem inquéritos policiais (tarefa que, a nosso ver, é do Ministério Público ou da própria polícia). O que fez, e admite a interpretação acima, é dizer que “é vedada a iniciativa do juiz na fase da investigação”, artigo 3º-A incluído no Código de Processo Penal.

Pela mesma razão — o princípio acusatório — achamos estranho que o juiz das garantias tenha a função de receber a denúncia ou queixa-crime (artigo 3º-B, inciso XIV). Essa opção tem defensores[1] mas, para nós, estorva o papel de garantidor de direitos a ser exercido pelo magistrado, pois ele dará início ao processo penal de uma investigação que ele mesmo acompanhou.

O artigo 3º-C introduzido no Código de Processo Penal diz que o juízo das garantias será aplicado a todas as infrações penais, com exceção das de menor potencial ofensivo. A inovação, portanto, regerá também o processo penal eleitoral. Isso não destoa da previsão do Código Eleitoral de que o CPP tem aplicação supletiva e subsidiária nos processos-crime eleitorais, artigo 364. Além do mais, é jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que inovações processuais penais que ampliem o direito de defesa prevaleçam sobre as antigas disposições do Código Eleitoral (HC 107.795, relator ministro Celso de Mello).

No ambiente eleitoral, o juízo das garantias vai enfrentar dificuldades específicas. Só podem atuar no processo eleitoral, cível ou criminal, indistintamente, juízes de direito que recebam específica designação pelo Tribunal Regional Eleitoral. São, relativamente, poucos. Num estado como o de São Paulo, no qual há mais de 2 mil juízes de direito, apenas cerca de quatrocentos são eleitorais. Mesmo em cidades nas quais o número de juízes é plural, os designados para a função eleitoral são uma pequena parte, quando não um único, acompanhando o número de zonas eleitorais.

Cabe lembrar que, por razões orçamentárias, o Tribunal Superior Eleitoral determinou (Resolução 23.520/2017), a redução do número de zonas eleitorais país afora. Cada zona eleitoral precisa de um juiz e este perceberá um valor mensal de aproximadamente, R$ 5 mil[2]. Assim, as dúvidas sobre como será implantada a inovação em cidades com reduzido número de juízes ganha maiores dimensões quando se trata dos juízes de garantia eleitorais. Eles terão que ser designados pelos TREs e, ao sê-lo, terão idêntico direito à verba eleitoral.

A hipótese de que, nesses casos, será o juiz da zona eleitoral seguinte, pode levar a uma indesejável atuação “cruzada”: juízes que serão, reciprocamente, das garantias e de instrução processual uns dos outros. Isso sem falar na dificuldade das próprias pessoas investigadas e dos operadores do sistema de Justiça Criminal (delegados de polícia, advogados, defensores, promotores) que terão que acorrer a um juiz de garantias que pode estar longe.

A solução da Lei 13.964, que fala em “rodízio de magistrados”, artigo 3º-D, é ruim e, no caso eleitoral, vai exigir malabarismos para a indicação dos magistrados. Eles são designados por um período de dois anos, a recondução sendo permitida apenas quando não houver outro juiz no local. Essa regra há de se aplicar por igual aos juízes eleitorais garantidores. Ao menos para o processo eleitoral, não é possível criar um corpo estável de juízes de garantia, nos moldes do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tememos que se torne comum feitos criminais eleitorais tramitarem, a depender da fase em que se encontram, em cidades diferentes. Numa zona eleitoral, faz-se o inquérito e recebe-se a denúncia; noutra, leva-se o processo em frente.

A situação será equivalente quando chegarmos ao Ministério Público Eleitoral: os promotores eleitorais só podem atuar por designação do procurador regional eleitoral (igualmente por dois anos) e fazem igualmente jus à verba eleitoral. A propósito, o promotor eleitoral que acompanhará uma investigação e requererá medidas do alcance do juiz de garantias será o mesmo que vai, perante o juiz de instrução, acompanhar o processo? Que tibieza da lei! Se o juízo de instrução tiver que ser de outra zona eleitoral, qual promotor eleitoral atuará perante ele? O da zona de origem ou o designado para aquela zona específica?

Os tribunais eleitorais deverão divulgar periodicamente os “critérios objetivos” utilizados para a designação dos juízes de garantia, a teor do artigo 3º-E do CPP. As procuradorias regionais eleitorais precisarão fazer o mesmo, divisando-se, por igual, dificuldades a transpor.

A dupla função exercida pelos juízes eleitorais — que são juízes cíveis ou criminais, na Justiça Estadual Comum — certamente gerará situações de perplexidade. O artigo 3º-D impede o juiz que exercer as competências de garantia de atuar no processo a elas referido. Se, portanto, alguém for juiz garantidor numa investigação de competência comum estadual, não poderá atuar no processo crime, ainda que este venha a ser entendido como de competência eleitoral. E vice-versa.

Fica em aberto a questão de saber se o juiz comum que determinou a adoção de providências de investigação cíveis — como uma quebra de sigilo de dados bancários ou fiscais numa ação de improbidade administrativa — poderá depois atuar em processo-crime eleitoral que derivar da análise destes dados. Ou, no âmbito das próprias competências eleitorais: um juiz eleitoral que determinou uma quebra de sigilo numa investigação judicial eleitoral — que tem natureza cível – poderá atuar, depois, num processo-crime eleitoral que se valer destes dados? Milhares de representações por doação acima do limite legal foram ajuizadas, com a consequente determinação de acesso a dados bancários e fiscais: todos estes juízes ficarão impedidos de atuar nos processos por crime eleitoral que daí derivarem?

A inovação dos juízes das garantias chega a um processo penal eleitoral que ainda não terminou de se adaptar a duas decisões do Supremo Tribunal Federal. A primeira, Questão de Ordem na Ação Penal 937, reduziu a competência dos tribunais em razão das prerrogativas de função, enviando para os juízes eleitorais dezenas de feitos que, até então, tramitavam nos tribunais locais ou regionais e nos tribunais superiores. A segunda, Inquérito 4.435, reconheceu a vigência e aplicabilidade do artigo 35 do Código Eleitoral, que fixa a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes comuns conexos com crimes eleitorais. A expectativa é que o número de processos criminais levados à Justiça Eleitoral cresça significativamente.

É preciso superar a falsa impressão de que a investigação, processo e julgamento de crimes é de importância secundária para a Justiça Eleitoral. Mesmo antes dessas decisões do STF, a pauta dos juízes eleitorais já incluía compra de votos, boca de urna, transporte de eleitores, fraudes variadas (até na inscrição dos eleitores), crimes contra a honra e crimes contra a fé pública. O legislador tem certo gosto por ampliar o rol dos crimes eleitorais, tendo trazido, em 2017, a apropriação indébita eleitoral, artigo 354-A do Código Eleitoral e, em 2019, a denunciação caluniosa eleitoral (artigo 326-A). Sem falar que esperamos para breve a correta tipificação do crime de “caixa 2” eleitoral.

Estas primeiras impressões não tem o escopo de indicar a inaplicabilidade da Lei 13.964/2019, nem nos animam a concordar com uma suposta inconstitucionalidade da previsão do juiz das garantias. As estruturas administrativas do Poder Judiciário, do Ministério Público, da polícia, das advocacias e defensorias terão que se abalançar para implementar e zelar pela atenção devida às garantias trazidas pela lei. Haverá custos, porém, incidindo sobre instituições que já despendem elevado volume de recursos da sociedade. Foi a opção do legislador ao prever e do presidente da República, ao não vetar a inovação. Cabe a eles, também, a tarefa de prover os meios financeiros necessários.

[1] Por todos, Aury Lopes Jr. e Alexandre Moraes da Rosa, ConJur, 27 de dezembro de 2018, https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal

[2] R$ 5.390, como aponta Vladimir Passos de Freitas, ao chamar a atenção para este custo adicional que recairá sobre a União Federal, ConJur, 29 de dezembro de 2019: https://www.conjur.com.br/2019-dez-29/segunda-leitura-reflexos-reflexoes-juiz-garantias-justica

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