Opinião

Subordinação de agências ao TCU compromete imparcialidade regulatória

Autores

  • Mauricio Portugal Ribeiro

    é sócio do Portugal Ribeiro Advogados especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura autor de vários livros e artigos sobre esse tema mestre em Direito pela Harvard Law School ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ.

  • Eduardo Jordão

    é professor da FGV-RJ e doutor em Direito.

10 de janeiro de 2020, 6h31

Com a exceção dos membros do próprio TCU, já não há quem discuta que o tribunal assumiu, espontaneamente, o papel de entidade suprarreguladora nacional, revisando e interferindo nas decisões mais substanciais das diferentes agências reguladoras. Deixando de lado a ausência de base constitucional para esta atuação, há uma questão adicional, de que cuida este artigo: o TCU, afinal, possui as características institucionais adequadas para cumprir esta função que se autoatribuiu?

No desenho original do Estado regulador brasileiro, uma das preocupações mais salientes era a da criação de uma entidade institucionalmente neutra, uma espécie de árbitro, que pairasse de forma razoavelmente equidistante dos atores relevantes no setor regulado (o poder público, os usuários, as empresas atuantes no setor etc.), sem pender para nenhum deles.

A existência deste “poder neutral” era dos traços essenciais do novo sistema, e peça fundamental para viabilizar a retração da atuação direta do Estado e a atração de investidores privados, em geral concessionários. É que contratos de concessão preveem em regra a obrigação do concessionário de realizar investimentos relevantes na melhoria ou implantação de uma infraestrutura — investimentos esses que são amortizados por meio da operação da infraestrutura, cobrança dos usuários e/ou do poder concedente e receitas alternativas.

Em regra a maior parte dos investimentos é realizada nos primeiros cinco anos de contrato. Por outro lado, o seu pay back (o retorno ao concessionário do valor que investiu, sem remuneração adicional) se dá geralmente após o décimo ano da concessão; e sua remuneração efetiva (a obtenção de taxa interna de retorno positiva) geralmente ocorre nos 15 anos finais do contrato.

As agências reguladoras foram criadas para garantir o cumprimento dos contratos, particularmente durante os anos em que o concessionário precisa continuar operando a concessão para obter as receitas necessárias à amortização e remuneração do seu investimento. É essa segurança que gera o incentivo aos concessionários para realizar adequadamente os investimentos nos primeiros anos dos contratos.

Para que as agências reguladoras exerçam adequadamente esse papel, é preciso que decidam eventuais conflitos entre concessionários, poderes concedentes e usuários de maneira imparcial, preservando a incolumidade do contrato. Por exemplo, particularmente quando os principais investimentos já foram realizados, é comum haver pressão política da comunidade de usuários e do poder concedente para reduzir tarifas. Essa pressão se manifesta seja na intenção de evitar o reajuste dos seus valores contra a inflação, seja por meio da tentativa de evitar a compensação ao concessionário por aumentos de custo ou reduções de receitas consequentes de eventos cujo risco foi assumido pelo poder concedente nos contratos. A regulação imparcial do contrato, contudo, deve garantir tanto uma coisa, quanto a outra.

De forma contrastante com este modelo de neutralidade regulatória, o TCU foi criado como um órgão parcial para defesa do erário, no sentido de conjunto de recursos arrecadados dos contribuintes, haveres e bens do estado. É essa a sua função originária enquanto corte de contas: controlar, contabilizar e promover, por meio do controle de contas, o uso adequado desses recursos.

Nesse sentido, é uma instituição vocacionada para a parcialidade. Na relação jurídica criada pelos contratos de concessão, o desenho institucional do TCU o leva a se alinhar com a proteção do cofre público — com a redução dos custos para o poder concedente e para o usuário. Tanto é assim que é comum que o tribunal se jacte todos os anos, em seus relatórios de atividades, dos bilhões de economia que gerou para os cofres públicos com a sua atividade.

Naturalmente, esta sua vocação não é negativa quando o TCU está controlando o gasto de órgãos ou entes estatais em geral — ao contrário, ela é mesmo desejada. Mas quando ela se projeta sobre decisões finalísticas das agências reguladoras, essa característica do TCU atinge o ideal de imparcialidade das agências reguladoras e, com isso, pode criar um cenário de insegurança jurídica para os investidores — comprometendo o cenário adequado para a atração de investimentos futuros.

Isso significa que a assunção, pelo TCU, da função de entidade suprarreguladora desequilibra o sistema e compromete a efetividade da imparcialidade regulatória, característica essencial do desenho institucional do Estado regulador brasileiro.

Num exemplo do desequilíbrio gerado, pleitos realizados pelo concessionário perante a agência reguladora para compensação pelos impactos de eventos cujo risco foi assumido pelo poder concedente, ao invés de serem decididos buscando manter o concessionário indene, serão decididos buscando reduzir ao máximo o valor a ser pago por usuários e pelo poder concedente. A consequência disso será criar incerteza sobre se o sistema de aplicação do contrato efetivamente protege o concessionário de riscos que estão alocados ao poder concedente, o que pode ser enquadrado como insegurança jurídica.

Na prática, o espaço de discricionariedade administrativa atribuído à agência reguladora passará a ser usado para maximizar a proteção ao poder concedente e ao usuário e não para manter a integridade das regras que preservam os incentivos para o investimento e operação adequada do projeto no longo prazo.

A pergunta feita no primeiro parágrafo deste texto é bastante relevante. É verdade: já é suficientemente grave que uma instituição se arvore em competências e poderes que não lhe foram conferidos pela ordem jurídica, para impor as suas preferências, sobre aquelas das entidades legitimamente competentes.

Mas o problema é ainda maior quando a instituição em questão nem mesmo possui as características institucionais adequadas para desempenhar este papel. De um problema de usurpação de competências, passa-se para um problema mais substancial, de inadequação do sistema efetivamente vigente.

Autores

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    é advogado especializado em contratos de concessões e PPPs, sócio de Portugal Ribeiro Advogados e autor do livro Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos (Editora Atlas, São Paulo, 2011) e Comentários à Lei de PPP – Fundamentos econômico-jurídicos (em coautoria com Lucas Navarro Prado; Malheiros Editores, São Paulo, 2011).

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    é sócio do Portugal Ribeiro Advogados, professor da FGV Direito Rio, Doutor pelas Universidades de Paris e de Roma e mestre pela USP e pela LSE. Foi pesquisador visitante em Harvard, Yale, MIT e Institutos Max Planck.

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