Interesse público

Os representantes do povo brasileiro

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

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9 de janeiro de 2020, 11h29

Spacca
Conforme dispõe o parágrafo único, do Art. 1º da CF, “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O problema está nos “representantes eleitos”, que não representam coisa alguma, pois as eleições parlamentares são deliberadamente viciadas, a partir do Art. 17 da CF, que afirma ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Essa fantástica liberdade era reafirmada no §1º desse mesmo artigo, em sua redação original: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias”. Note-se que o único dever é ineficaz, pois não tem sanção alguma.

Esse §1º foi mais detalhado com a redação dada pela EC nº 97/17: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”. Note-se que o dever de fidelidade partidária continua inócuo, e, pior que isso, foi introduzida uma possibilidade de que os partidos (que deveriam ser nacionais – Art. 17, inciso I) possam compor diferentes coligações, nos estados e municípios.

Já salientamos, em dois artigos publicados nesta coluna (“Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva”, em 27/04/17 e “A atual política é incompatível com uma autêntica democracia”, em 16/08/18) que os artigos da CF que cuidam dos partidos políticos foram escritos para atender aos interesse pessoais  dos membros do Congresso Constituinte, que legislaram para si mesmos, numa cumplicidade geral e irrestrita. Tudo foi articulado para favorecer enormemente a reeleição dos então parlamentares. Isso só piorou com o tempo, motivo pelo qual voltamos ao assunto, agora em 2020. O fundo partidário e o escandaloso fundo eleitoral são apenas mais aparentes, mas, na verdade, há outras formas de utilização de recursos públicos em campanhas eleitorais, sempre visando o objetivo absolutamente primordial de qualquer parlamentar: a reeleição.

As normas constitucionais sobre orçamento público foram alteradas, nos últimos anos para favorecer pessoas e campanhas. A CF, no Art. 165, estabelece um elogiável sistema de planejamento orçamentário, que compreende a elaboração do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais. Não obstante cuidadosamente planejadas, as dotações orçamentárias não são de cumprimento obrigatório; não são impositivas. (Parêntesis; em nossa opinião, as dotações orçamentárias são de cumprimento obrigatório, conforme dissemos em “Orçamento Impositivo”, publicado em Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff (coordenadores), Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 309 a 327).  O fato é que, em absoluta contrariedade ao que dispõe a CF, predomina o entendimento firmado durante a vigência do Código de Contabilidade da União, de 1922, no sentido de que dotações orçamentárias são meras autorizações de gastos. Salvo no tocante a dotações de interesse dos paramentares: estas são vinculantes.

Os parágrafos 9º, 10, 11 e 12, do Art. 166 da CF (com a redação dada pelas EC nº 86/15 e EC nº 100/19) declaram a obrigatoriedade da execução, pelo Executivo Federal, das dotações orçamentárias decorrentes de emendas individuais de parlamentares e de emendas de bancadas estaduais. Não é o caso de um exame mais detalhado, mas, pelo menos, essas emendas tinham alguns condicionamentos. Agora piorou muito. Com o advento de EC nº 105, que agregou ao texto da CF o Art. 166-A, aquelas dotações impositivas de parlamentares podem ser diretamente transferidas aos orçamentos dos Estados, Distrito Federal e Municípios. O consagrado José Maurício Conti, em texto publicado no informativo JOTA – Coluna fiscal, de 26/12/19, observou: “Na emenda aprovada, a modalidade de “transferência especial” prevê o repasse “independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere”, e os recursos “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira”. As transferências passam a ser, por conseguinte, da modalidade “incondicionada”, e a titularidade fica para o ente federado beneficiário, o que transfere o controle para o sistema de fiscalização financeira a que está sujeito – estadual, distrital ou municipal”.

Resumindo: os atuais parlamentares, com base em Emendas Constitucionais que eles mesmos fizeram, podem usar recursos da União para favorecer suas bases eleitorais, seja mediante o cumprimento, pela União, das dotações orçamentárias que eles (parlamentares) livremente escolheram, seja para que recursos da União sejam simplesmente transferidos para os cofres estaduais, distritais ou municipais de livre escolha dos mesmos parlamentares. Ninguém é tão ingênuo a ponto de não perceber o enorme efeito político eleitoral do uso desses recursos públicos. Obviamente, essa prática viola diversos princípios constitucionais fundamentais.

Mas os parlamentares recebem (além da remuneração pelo exercício do mandato) dotações que podem ser utilizadas livremente, conforme informou o jornal O Estado de São Paulo, de 03/12/19, em editorial  com o sugestivo título de “A farra das notas fiscais”: “Cada um dos 513 deputados têm à disposição uma verba mensal que varia entre R$ 39 mil e R$ 44 mil, a depender do Estado pelo qual o deputado foi eleito. A chamada Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap) destina-se, como o nome indica, ao custeio dos gastos de gabinete inerentes à atividade parlamentar, entre os quais passagens aéreas, serviços postais, manutenção de escritórios de apoio, locação de veículos, contratação de consultores técnicos”.

São muitos os desvios tolerados com o uso dessa verba. O mais simples é a manutenção de escritórios de apoio em suas bases políticas, verdadeiros comitês eleitorais permanentes, desequilibrando claramente a disputas com outros candidatos. Outro fator de desequilíbrio é a contratação de gráficas, para a impressão de folhetos e informativos, por valores fantasticamente elevados e, muitas vezes, “comprovados” por notas fiscais emitidas por gráficas inexistentes nos endereços indicados nos documentos.

Muito mais escandalosos são os gastos com a contratação de escritórios de advogados, que podem funcionar até como lavanderias. O mais comum, porém, é o pagamento de honorários a advogados que, “coincidentemente”, trabalham também em causas particulares de parlamentares e, até mesmo, para empresas dos mesmos parlamentares, inclusive na Justiça do Trabalho (confira-se reportagem de Patrik Camporez, publicada em O Estado de São Paulo, de 04/11/19,   com o título “Câmara paga advogados do PSL”). A justificativa, evidentemente falsa, é a necessidade de contratar advogados para subsidiar o exercício da atividade parlamentar. Como se sabe, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, são providos de competentíssimas Consultorias Legislativas, cujos integrantes são efetivamente dotados de larga experiência nas diversas áreas de atuação parlamentar. Não é demais lembrar que muitos renomados juristas colaboram “pro bono”, tanto na elaboração de projetos, quanto no exame de projetos em andamento, além de prestar assistência às comissões técnicas e de inquérito.

Ninguém ignora que os gabinetes parlamentares contam com verdadeiros exércitos de servidores, que podem ser titulares de cargos de assistentes parlamentares, de provimento em comissão, muitos dos quais são simplesmente fantasmas. Além disso, podem ter funcionários de carreira em afastamento junto aos gabinetes (nos termos do Art. 93, da Lei nº 8.112, de 11/12/90), ou, ainda, podem ter servidores de órgãos e entidades públicas, inclusive de empresas estatais, simplesmente postos à disposição do parlamentar. Uma significativa parte desse pessoal exerce, pura e simplesmente, as funções de cabos eleitorais.

Até aqui falamos de vantagens havidas como lícitas, mas não é possível deixar de dizer alguma coisa sobre a prática conhecida como rachid ou rachadinha, consistente na contratação de pessoal que recebe a remuneração pela função exercida no gabinete parlamentar, mas repassa o valor recebido, no todo ou em parte, ao próprio parlamentar. Nos últimos tempos, esse assunto rendeu quilômetros de linhas nos jornais, mas com o foco exclusivamente na atuação do filho do Presidente da República, Flávio Bolsonaro, quando exercia o mandato de Deputado Estadual no Rio de Janeiro. Com a franqueza e a coragem que a caracterizam, a ilustre Professora de Direito Penal e Deputada paulista, Janaína Paschoal, declarou em entrevista a João Ker, no jornal O Estado de São Paulo, em 26/12/19: “Ao que tudo indica, infelizmente o Flávio cometeu peculato e utilizou funcionários para desviar dinheiro público”. “Ele tem que responder. O meu desejo é que o Ministério Público Federal faça com os outros naquela lista da ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) o que está fazendo com o Flávio”. Fica a pergunta: e o resto? e os outros parlamentares em todos os níveis de governo?

Diante de tudo quanto foi exposto, cabe voltar ao título deste artigo e perguntar: Quem são os representantes do povo? será que são representantes do povo ou de si mesmos? Já questionamos a representação popular em outro artigo publicado neste informativo (“Renovação na composição do Congresso Nacional nas eleições de 2018”, publicado em 25/01/18). Naquela ocasião havia uma expectativa de renovação dos quadros parlamentares, que acabou ocorrendo em parte, mas não pela melhoria do sistema eleitoral e partidário, mas, sim, graças ao fenômeno Bolsonaro, que transformou o nanico PSL na segunda maior bancada da Câmara dos Deputados. É altamente questionável (para dizer o mínimo) a representatividade dos deputados eleitos nessa onda, por impulso e sem convicção.

Em síntese, há um longo caminho a percorrer para que o disposto no parágrafo único, do Art. 1º da CF se transforme em uma realidade concreta; para que tenhamos verdadeiros representantes do povo.

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