Retrospectiva 2019

No Direito Penal, 2019 foi o ano que não terminou

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8 de janeiro de 2020, 7h00

ConJur
O título deste artigo não poderia ser outro, ainda que “roubado” do famoso livro de Zuenir Ventura.

O ano de 2019 foi marcado pela sensação de que inúmeros movimentos foram gestados, interrompidos, retomados, mas sem conclusão alguma na qual possamos apoiar nosso futuro.

Pelo contrário, todas as promessas, sejam quais forem as linhas ideológicas nas quais se apoiam, ainda permanecem latentes, distantes de qualquer sinal de estabilidade que nos permita entender qual o país em que vivemos e qual o modelo jurídico e político que pretendemos dar ao Direito Penal e Processual Penal. 

Esquerda, direita, garantismo, punitivismo, governador festejando tiro de sniper, crianças mortas em balas perdidas, criminalidade de violência diminuindo nas estatísticas, porte de armas, CPI de Fake News, quem matou Marielle, quem matou Celso Daniel, condenado dando palestra e convocando o povo para revolução, condenado evangélico se arrependendo e só querendo paz, pai que mata filha com saída temporária do dia dos pais, morte em baile funk, liberdade para chefe de facção política, prisão para furto de pequeno valor etc. Como diz o ditado, o Brasil não é – nunca foi – para amadores. 

A verdade é que estamos no meio de uma revolução cultural que se insere em uma sociedade que jamais teve cultura própria. Consequentemente, a revolução institucional que a segue se torna uma verdadeira guerra ideológica, nos cabendo apenas identificar alguns de seus vetores para, com reflexão, tomarmos posição – ainda que precária e em constante mutação.

Não obstante, um esclarecimento ao incauto leitor: as constatações a seguir realizadas à título de “fechamento do ano” não devem ser entendidas como uma crítica positiva ou negativa do panorama atual. Pelo contrário, e exatamente por retratarem uma revolução em andamento, a classificação de suas consequências somente seria possível se tomássemos posição apriorística, pois ainda não temos a menor ideia de onde, quando e como chegaremos. Por esse motivo, o objetivo, mais uma vez declarado, é apenas retratar o fenômeno e seus indicadores para que cada um, no silêncio de seu espírito, tenha elementos aptos à reflexão – em síntese, não é uma guerra de tweets onde alguém deve estar certo ou errado, ou na qual tenhamos que massacrar imediatamente aquele que não pensa como nós.

Iniciemos, pois: para aqueles que, como eu, foram criados sob a égide de uma Constituição Dirigente e do Direito positivado, na qual a força da lei deve prevalecer e condicionar a decisão legislativa, executiva e judicial, o ano de 2019 serviu para demonstrar que “a força normativa da constituição” (Konrad Hesse) cedeu espaço, de vez por todas e em caráter oficial, à “força interpretativa dos Tribunais Superiores e dos movimentos sociais” (Ferdinand Lassale). Há anos, portanto, estava com razão a criminóloga Vera Regina Pereira Andrade, ao denunciar a “ilusão da segurança jurídica” (1997) que mascara o convívio do cidadão com a pseudocientificidade do Direito.

O primeiro ponto a se destacar no ano de 2019, que retrata de maneira ímpar essa movimentação cultural e institucional inacabada, diz respeito ao atual e publicamente festejado Ministro da Justiça, que tomou posse em sua nova função pública já no dia primeiro de janeiro. Obviamente que um cidadão deixar para trás a magistratura para se aventurar no cipoal da política não é, por si só, algo que mereça maiores notas. 

Mas, no caso, não era um magistrado qualquer. Pelo contrário, foi o grande artífice e pedra fundamental da Operação Lava Jato, tendo em seu currículo a estreita vinculação com procedimentos persecutórios e agências norte-americanas, além de um enfrentamento público com o próprio Supremo Tribunal Federal – nas raras vezes em que a posição de ambos era dissonante.

Em outras épocas, um magistrado permitir o vazamento de uma interceptação telefônica envolvendo a Presidência da República poderia ser considerado um ilícito administrativo e penal, mas, pelas mãos do atual ministro e então magistrado, foi um ato recepcionado como um mal menor e necessário.

No passado, um magistrado permitir o vazamento de diálogos de tal jaez, mantendo o julgamento de um ex-presidente da República sob sua batuta para condena-lo tempos depois a uma pena bastante elevada,  e depois abandonar a toga para assumir uma função primordial em governo situado na outra ponta do espectro político, poderia gerar a suspeição das decisões anteriormente adotadas. Mas, em nossa quadra revolucionária atual, foi apenas, e mais uma vez, um mal menor, e necessário.

Também o vazamento de mensagens entre integrantes do MPF e o próprio magistrado, à época, serviriam para demonstrar irregularidades na condução dos feitos. Mas, em época de revolução, nada deve impedir que seus protagonistas se mantenham hígidos em suas funções e intentos.

Este é o retrato do pragmatismo judicial que, em 2019, invadiu oficialmente nosso cotidiano – ao leitor, cumpre lembrar a advertência do início: não se traça juízo de valor sobre os fatos acima. Se tais acontecimentos eram um mal necessário, ou não, cabe a cada um à sua conclusão. Aqui, narro os fatos.

Ainda na magistratura de primeira instância, pululam prisões preventivas por fatos antigos, mas em nome da ordem pública. Quando o alvo é um outro ex-presidente da República, o movimento persecutório encontra, no Superior Tribunal de Justiça, a voz de quem ainda acredita na função declarada do Poder Judiciário, onde as palavras de um ministro relembram a todos os cidadãos e, principalmente, a seus pares, que – pelo menos em acordo com a regra ainda posta – não se pode prender preventivamente “como resposta de desejos sociais” (Ministro Néfi Cordeiro). Seria, outrora, uma lição básica do papel do Poder Judiciário, mas estamos em uma revolução cultural e, nestes casos, o óbvio é esquecido e, muitas vezes, ultrapassado.

E, no afastamento do óbvio e assunção do “novo paradigma”, o Supremo Tribunal Federal torna-se “a própria Constituição” através de um ativismo judicial jamais visto. Novos ministros assumem declaradamente a função de resguardo do interesse público, do combate à corrupção e da proteção das minorias. Nesta linha, demonstrando clara e abertamente que o papel da magistratura em uma sociedade disruptiva deve ser repensado, esclarecem estarmos diante de uma “refundação do país” na medida em que a sociedade civil que, finalmente, “deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo” (Ministro Barroso).

Enfim, a Toga torna-se mais um instrumento de poder político pelo qual os fins passam a justificar novas interpretações da norma constitucional.

Isso para não se falar da aberta divisão que houve na Corte Superior, com claras acusações de ministros contra pares que, por divergirem de opinião nos limites da função e, consequentemente, nos poderes decisórios, são etiquetados como favoráveis à manutenção do quadro de corrupção endêmica de nosso país.

Obviamente que respeitamos a distinção entre “lei” e “norma”, cabendo ao intérprete da primeira buscar o significado da segunda, mas, como sempre repete Lênio Streck, limites semânticos devem ser respeitados. A questão que hoje se coloca, é: será?  

Não tem sido o caso. Típico das revoluções iniciadas, tais limites serão readequados à necessidade daquilo que se pretende defender.

O combate à corrupção, ao tornar-se a “bandeira da vez”, deixa, na esfera penal, profundas marcas e alterações. O delito de corrupção passiva, por exemplo, deixa de exigir vínculo do comportamento praticado com o ato de ofício típico da função exercida pelo funcionário público, e passa a abranger qualquer ação por este praticada dentro de seus poderes “de fato”. Na mesma esteira, o delito de sonegação fiscal passa a ser praticado por aqueles que declaram o imposto, ainda que sem recolhê-lo. O acórdão que confirma sentença condenatória passa a ser marco interruptivo de prescrição, as agências reguladoras podem informar dados de movimentação financeira aos órgãos de repressão mesmo sem autorização judicial, e a prisão para cumprimento de pena privativa de liberdade pode — e não pode mais, mas poderá de novo, em breve — ser executada antes do trânsito em julgado.

Debate-se ainda o pacote anticrime, a adoção de um discurso político que libera a força policial para o enfrentamento de guerra declarada ao crime (com suas balas perdidas e jamais responsabilizadas), o recrudescimento do sistema penal e a adoção do modelo negocial.

Quanto a este último, do qual sou fervoroso defensor – e que veio a lume graças o mesmo ministro que iniciou boa parte desta revolução ainda em trâmite -, temos doutrinadores que se dizem liberais, mas afirmando que os cidadãos não podem ter o direito de decidir suas vidas. Eles, os jurisconsultos, sabem o que é o melhor para o próximo, e ai de quem duvidar!

Temos esses mesmos doutrinadores “esclarecendo” que tal sistema irá gerar inúmeras injustiças, principalmente com os hipossuficientes e inocentes, motivo pelo qual o bom mesmo é insistirmos no processo penal e na sua crise – que já dura século e que, somente por isso, denuncia que está em crise quem não consegue perceber a distinção entre modelo teórico e a realidade posta. 

O melhor mesmo é quando tais doutrinadores resolvem advogar e, sem problema algum, decidem para seus constituintes que a transação, suspensão ou delação (formas negociais de resolução de conflitos) é o melhor caminho.

No Brasil é assim: faça o que eu digo, e não o que eu faço. 

Também em relação ao modelo, temos boa parte da Defensoria Pública bradando ser inviável na medida em que a instituição não está preparada para negociar, atividade esta que, por sua própria essência, é mais barata, simples e efetiva do que a defesa técnica em um longo processo judicial. 

Fica a questão: se não estão preparados para uma conversa e um acordo, o que sobra para o processo (observação: eu, pessoalmente, vejo a Defensoria Pública bastante preparada para essa missão)?

Enfim, ainda que o ano esteja perto de seu término em nosso calendário, está longe de terminar. Não temos a menor ideia do que vem pela frente, e a análise dos fatos acima serve apenas para demonstrar a complexidade daquilo que enfrentamos e enfrentaremos nos próximos anos. Como diriam os romanos, alea jacta est. 

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