Tribuna da Defensoria

A lei "anticrime" e seu paralelo com a reforma Bonafede na Itália

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7 de janeiro de 2020, 8h00

Iniciado o período de vacatio legis da denominada Lei Anticrime, cujo objetivo declarado é o de aperfeiçoamento das normas penais e processuais penais sancionadas na Lei n. 13.964/2019, verifica-se a alteração nas regras atinentes à prescrição, especialmente as novas disposições do art. 116 do Código Penal.

Houve a introdução de duas novas causas impeditivas do fluxo do prazo prescricional, a saber: a pendência de Embargos de Declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores; e o fluxo temporal enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução:

“Artigo 116. …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………….

II – enquanto o agente cumpre pena no exterior;

III – na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis; e

IV – enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal.

Uma das principais bandeiras do projeto anticrime desenhado por Sergio Moro era exatamente a demonização do instituto da prescrição, principalmente com o manejo dos recursos nos tribunais superiores.  Não é nenhuma novidade a visão desconstrutiva do instituto, vide Lei n. 12.234/2010 que extinguiu a modalidade retroativa da prescrição em marcos anteriores à denúncia ou queixa.

A impunidade no sistema jurídico brasileiro tem sido fortemente associada à prescrição, especialmente em virtude da grande dificuldade na condução das investigações preliminares pelos órgãos de Polícia Judiciária (primeira fonte de prescrição) e pela morosidade do percurso recursal após ou inclusive no segundo grau de jurisdição (variedades de recursos no sistema processual penal).

No entanto, a alteração legislativa merece críticas. Se o seu propósito era o de evitar a impunidade e desestimular o uso de recursos protelatórios, o intento do legislador não foi alcançado.

A nova regra do artigo 116, III do Código Penal inviabiliza a denominada prescrição intercorrente em grau recursal. Ou ao menos cria um ônus dispendioso ao órgão jurisdicional. Explico.

O dispositivo alterado não trata das causas de interrupção da prescrição, mas das causas impeditivas de seu curso. Ou seja, uma vez interpostos os Embargos de Declaração ou manejados os recursos para as instâncias superiores a prescrição não correrá, conquanto que uma condição não se verifique, o acolhimento da impugnação recursal.

Temos aqui uma verdadeira causa impeditiva condicional. Isto porque, não se pode se desconsiderar a hipótese de a prescrição ocorrer enquanto pendente de julgamento o recurso manejado ao tribunal superior. Todavia, o seu reconhecimento estará condicionado à apreciação e provimento da impugnação, já que a redação do dispositivo condiciona a inocorrência do fluxo prescricional ao não acolhimento do recurso, como forma de desestimulo ao recurso protelatório.

Em outras palavras, obrigam-se os tribunais superiores, já assoberbados de processos, a apreciarem um recurso em processo potencialmente prescrito, cuja extinção da punibilidade estará condicionada ao acolhimento do apelo manejado pela defesa. O tribunal então, se acolher o recurso, na sequência declarará a prescrição já existente, tornando inútil o julgamento anterior de mérito.

A reforma contribui justamente para afogar ainda mais os tribunais superiores ou, em uma visão mais cética, incentivar o desprovimento de recursos com o fito de evitar o reconhecimento da prescrição.

Outra engenhosidade decorrente da alteração, essa de maior perversão, é a de não afastar a regra impeditiva de prescrição nos casos de recursos manejados pela acusação, especialmente quando não se pretenda o aumento de pena.

Basta pensar nas hipóteses em que o réu é condenado em primeiro e segundo graus de jurisdição por tráfico de drogas. O MP não se satisfaz com parte da sentença e impugna o regime de pena ou a substituição por restritiva de direitos, situação cotidiana. A partir do momento do manejo dos Embargos de Declaração e dos recursos excepcionais pelo Ministério Público, automaticamente também não correrá a prescrição, diante da literalidade do artigo 116, III do CP?

Aqui, é verdade, abra-se um parêntesis, já que o artigo 110 do CP condiciona a prescrição intercorrente à inexistência de recurso da acusação. Todavia, predomina o entendimento de que se o recurso não visar a majoração da pena, torna-se possível reconhecer essa modalidade de prescrição, o que tornaria o exemplo aqui indicado uma situação potencial no dia a dia dos tribunais.

Nessa ótica, é razoável ao acusado ter que aguardar anos o julgamento da impugnação recursal acusatória para ter certeza do término do processo, não podendo se valer da prescrição porventura existente, em virtude do problema apontado linhas acima a respeito da cognoscibilidade da prescrição em instância extraordinária.

A lei subverte a ordem da razoável duração dos processos e impõe um ônus excessivo ao acusado, em detrimento da legitimidade recursal do órgão acusatório. Melhor teria sido um parágrafo ressalvando que a causa impeditiva do fluxo da prescrição não se aplicaria em casos de recursos exclusivamente acusatórios, em uma redação aperfeiçoada à do artigo 110, §1º do Código Penal.

Sabemos que a prescrição está indevidamente associada ao uso de recursos por parte da defesa, mas da forma como o tema foi tratado pelo legislador, a interposição de recurso pelo Ministério Público e o seu consequente desprovimento também evitarão o reconhecimento da prescrição.

Pensamos, então, que quando a acusação recorre sem postular a majoração da pena, deve o prazo prescricional correr normalmente, independentemente do resultado do julgamento de seu recurso, já que o Estado não poderia se beneficiar quando ele próprio contribui para a morosidade do trânsito em julgado da sentença.

Seria aqui uma interpretação conforme do novo dispositivo à luz da garantia da razoável duração dos processos prevista no artigo 5º, LXXVIII da CRFB.

Não se pode olvidar que a prescrição é causa de extinção da punibilidade e não um benefício da parte. Eventual retardamento nas instâncias recursais ocasionado por impugnações manejadas pelo Ministério Público ou demais acusadores (querelante e Assistente de Acusação)  e porventura não acolhidas não devem obstar o reconhecimento da prescrição em favor do acusado, ainda que a literalidade do dispositivo nos indique o contrário.

A reforma é mais uma das típicas engenharias legislativas que, a pretexto de otimizar e racionalizar a prestação jurisdicional, fazem exatamente o oposto. Não me espanta, se desse imbróglio normativo surja uma nova forma de prescrição ao arrepio da lei, tal como a prescrição virtual, negada pela jurisprudência (Enunciado n. 438 da Súmula do STJ), mas aplicada na praxe forense.

Ainda é importante destacar que o recrudescimento das regras de prescrição não é uma tendência do direito brasileiro, mas pode também ser identificada no sistema jurídico italiano, objeto de muito apreço pelo nosso atual Ministro da Justiça.

A Lei n. 3, de 9 de janeiro de 2019 aprovada pelo Legislativo italiano trouxe inovações no campo da prescrição disciplina pelo Código Penal italiano, diante das propostas do Ministro da Justiça Alfonso Bonafede. Cabe aqui, então, um breve apontamento às alterações trazidas ao artigo 159 do diploma repressivo da Itália.

Com a introdução de novo parágrafo ao artigo 159, o Código Penal Italiano dispõe que: “O curso da prescrição permanece também suspenso desde a prolação da sentença de primeiro grau ou do decreto de condenação até a data de execução da sentença transitada em julgado ou do julgamento que torna irrevogável o decreto de condenação” (Tradução livre):

Il  corso  della  prescrizione  rimane  altresi'   sospeso   dalla pronunzia della sentenza di primo grado o  del  decreto  di  condanna fino alla data  di  esecutivita'  della  sentenza  che  definisce  il giudizio o dell'irrevocabilita' del decreto di condanna»;

Apesar de a lei ter sido sancionada em janeiro de 2019, houve determinação de vacatio legis em relação ao referido dispositivo, sendo determinada a sua entrada em vigor apenas em 1º de janeiro de 2020.

Com a reforma penal italiana, uma vez proferida a sentença de primeiro grau, fica automaticamente suspensa a prescrição até o trânsito em julgado da sentença, uma forma de evitar que o fluxo recursal conduza a extinção da punibilidade em virtude do manejo de recursos à Corte di Appello, Corte di Cassazione e Corte Costituzionale do sistema jurídico italiano.

A alteração legislativa italiana é declaradamente a favor do fim da impunidade, diante da grande quantidade de delitos que tinham sua punibilidade extinta em virtude da prescrição[1] e busca, ao mesmo tempo, minorar os efeitos da longa duração dos processos criminais.

No entanto, ambos os problemas são tratados com a terapia inadequada. Ao reduzir a hipótese de prescrição, tanto o sistema brasileiro como o sistema italiano não solucionam a problemática da razoável duração dos processos. O que a lei faz é trazer tranquilidade ao Judiciário que, agora, estará despreocupado com possível prescrição de processos criminais, em virtude da demora de seus julgamentos.

Várias são as críticas também à nova lei italiana, não só por parte de advogados, mas também da própria magistratura (fenômeno oposto do que ocorre no Brasil, em virtude da crescente politização e polarização da carreira).

A magistratura italiana em recente congresso promovido por sua Associação Nacional, declinou fortes críticas ao projeto, argumentando que a reforma da prescrição soa como uma reação à lentidão da atividade jurisdicional quando na realidade, o problema é mais profundo e reside na estrutura dos procedimentos do sistema italiano[2].

Sem a “pressão” da prescrição sobre os ombros do julgador, não resta dúvida de que a duração do processo criminal em instâncias superiores não será acelerada. A possibilidade de julgamentos infindáveis será uma realidade, bastando uma breve análise das pautas de julgamento do Supremo Tribunal Federal.

Temos mais uma “bola fora” do legislador que utilizou o péssimo projeto de lei anticrime para criar uma cizânia com o Poder Executivo e seu Ministério da Justiça.

[1] Para maior aprofundamento, confiram-se as ponderações de Gian Luigi Gatta: https://sistemapenale.it/it/opinioni/prescrizione-del-reato-e-lentezza-del-processo-proposte-per-uscire-dallimpasse-della-riforma-bonafede

[2]Naturalmente, la riforma della prescrizione – svincolata dall’insieme di riforme strutturali necessarie, come infatti da noi contestualmente richieste, ed inserita incidentalmente nel testo di una Legge (cd. Spazzacorrotti) che disciplina materia affatto diversa rischia di produrre squilibri complessivi, che sarebbe però errato, secondo noi, attribuire alla riforma in sé ed alla sua ratio ispiratricePONIZ, Luca. Estratto della relazione del Presidente della A.N.M. al XXXIV Congresso nazionale. Disponível em: https://www.sistemapenale.it/it/documenti/relazione-presidente-anm-poniz-congresso-nazionale-genova-riforma-prescrizione-reato acesso em 04 jan 2020.

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    é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor da Universidade Candido Mendes, da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública.

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