Contas à Vista

O uso de precatórios na transação tributária

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

7 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca
Nesta primeira coluna de 2020 interrompo a série de textos com a análise das PECs do Guedes, que retomarei mais a frente, para tratar de um tema fronteiriço ao direito financeiro e tributário. Precatórios, como é sabido, são créditos contra o Poder Público, decorrentes de uma decisão judicial transitada em julgado consubstanciada em uma obrigação de pagar. Em bom português, é uma despesa do Poder Público com o titular daquele crédito judicial. Tributação implica em créditos do Poder Público contra quem tiver adotado uma conduta prevista em lei que o obrigue a pagar tributo. Logo, de um lado temos despesas do Poder Público e de outro temos créditos do Poder Público.

Existe uma tecnicalidade que precisa ser explicada. Precatórios só se tornam dívida quando não pagos no correr da execução do orçamento em que foram incluídos, conforme art. 30, §7º, da Lei de Responsabilidade Fiscal; antes disso, são despesas. Usualmente, até onde a vista alcança, a União tem pago seus precatórios de forma regular, o que é completamente diferente de Estados e Municípios.

A novidade neste âmbito foi trazida pela Portaria PGFN 11.956/19 que regulamentou a Medida Provisória da transação tributária (MP 899), batizada de contribuinte legal. Já teci comentários acerca da referida MP, considerando que se trata de uma espécie de Refis Permanente, pois sua redação afasta o Poder Legislativo sobre a determinação de quem serão os beneficiários da transação. É muito poder nas mãos do Executivo, sem os freios do Legislativo.

O fato é que a referida Portaria regulamentadora traz um aspecto muito interessante acerca do tema sob análise, pois permite que sejam utilizados precatórios para pagamento das dívidas tributárias que forem inseridas nos editais. Curiosamente, o primeiro edital de oferta de transação não traz uma palavra sobre esta possibilidade. Todavia, isso não impede a análise a ser feita, com base na Portaria, esperando que tal aspecto positivo possa ser inserido nos futuros editais.

O inciso VI, art. 8º da Portaria prevê que, a exclusivo critério da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, poderão ser utilizados precatórios federais próprios ou de terceiros para amortização ou liquidação de saldo devedor transacionado.

O Capítulo VI da Portaria, art. 57 e seguintes, estabelece os requisitos para tal aceitação, quando e se ocorrer. Dentre eles consta a obrigação de ceder fiduciariamente o direito creditório à União, através de escritura pública lavrada no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, contendo o valor integral do precatório; peticionar nos autos anexando o referido documento e apresentar cópia da petição informando sua cessão fiduciária à União, com pedido para o juiz comunicar a cessão ao Tribunal para que, quando do depósito, coloque os valores à sua disposição, com o objetivo de liberar o crédito diretamente em favor da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional; e apresentar certidão de objeto e pé do processo originário do precatório atestando, nos casos de precatórios próprios, que não houve cessão do crédito a terceiros e, no caso de precatórios de terceiros, que o devedor é o único beneficiário.

Tal cessão fiduciária de precatórios próprios ou de terceiros deverá ocorrer em sua totalidade, ainda que em valor superior aos débitos inscritos em dívida ativa da União, sendo vedada a aceitação de cessão parcial. Caso haja saldo do precatório depositado, os valores poderão ser devolvidos ao devedor-cedente, desde que não existam outras inscrições ativas do devedor, quando então serão utilizadas para seu pagamento ou quitação.

Em síntese, trata-se de uma boa providência visando reduzir uma iniquidade de nosso sistema jurídico, que é a inadimplência do pagamento de precatórios, uma desmoralização que o Poder Executivo aplica desde tempos imemoriais aos Poderes Judiciário e Legislativo. Parte de uma ideia positiva, de encontro de créditos e débitos da União. É bem verdade que o maior problema com a inadimplência de precatórios não está na União, mas nos Estados e Municípios, que, espera-se, venham a seguir o exemplo federal.

Trata-se de uma oportunidade para os devedores, pois poderão adquirir precatórios no mercado pagando muito menos que seu valor de face. Aliás, o mercado de compra e venda de precatórios certamente será aquecido quando esta norma vier a ser efetivamente implementada – grandes ganhos à vista. Titulares de fundos de precatórios certamente ficarão alegres; também os titulares de precatórios, vítimas dessa iniquidade de atraso nos pagamentos, pois os preços devem subir.

Uma estranheza me ocorre em todo esse procedimento. O art. 60 da Portaria estabelece que o processo só seja liquidado quando for depositado o precatório em conta, à disposição do juízo. Ora, se o devedor do precatório é a União, e o credor do montante de tributo cobrado também é a União, e houve a cessão fiduciária através de escritura pública, por qual motivo se deve esperar para liberar o devedor e desde logo reconhecer a extinção daquele débito? Será que a União-credora não acredita que a União-devedora vá pagar? Trata-se de uma dúvida procedimental, que implica na obtenção da famigerada CND – Certidão Negativa de Débitos, pois esse processo poderá perdurar por anos e anos no limbo, até ser efetivamente quitado. Sei que isso pode ser contornado com uma CPEN – Certidão Positiva com Efeito de Negativa, mas isso só erige como permanente algo que deveria ser eventual.

Esse delay pode acarretar outro problema: o descasamento entre o valor do precatório e a correção dos créditos fiscais, fruto de diferentes critérios de correção monetária. É sabido que os precatórios decorrentes de créditos fiscais são corrigidos pela SELIC, igual aos débitos fiscais, porém a aceitação dos precatórios, para ser feita com justiça, não pode se restringir apenas a estes. E sabe-se ainda que, olhando em retrospectiva, a variação do IPCA (inflação) é inferior à da SELIC, sendo esta estabelecida pelo COPON/Banco Central para controlar aquela. Tal fato levou o STF a afastar o uso da TR para a indexação/remuneração dos precatórios, conforme comentei em outra coluna. Havendo quitação imediata esse risco é afastado.

A despeito da estranheza mencionada, o uso de precatórios estabelecido pela Portaria é uma bola dentro da PGFN, liderada hoje pelo professor José Levi. Espera-se que seja usada nos próximos editais.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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