Opinião

A batalha: o velho inquisitivismo não quer morrer — mas o novo nascerá

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

6 de janeiro de 2020, 10h06

Spacca
Todos já sabemos (De Aury Lopes Jr. a Alexandre Morais da Rosa, passando pelo decano do Supremo Tribunal Federal, por Jacinto Coutinho, Juarez Tavares, Geraldo Prado, Zacharias Toron e por todos os processualistas e constitucionalistas da cepa do Brasil) que a Constituição Federal adotou o sistema acusatório — agora institucionalizado no artigo 3º-A, pela Lei 13.964/19:

“O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Isso porque a (ainda não desidratada) Constituição do Brasil assegura, em seu artigo 5º, direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos que não devem ser mitigados sem o devido processo legal advindo especialmente do respeito às regras do jogo e da oportunidade de os jogadores explanarem seus pontos de vista amplamente e de se contraporem aos demais argumentos apresentados (ver coluna Senso Incomum com defesa da constitucionalidade do juiz de garantias).

E isso serve, no processo penal, para acusação e defesa, ou seja, já se teve oportunidade de questionar[1] por que, — depois de uma intensa luta pela democracia e pelos direitos fundamentais e inclusão das conquistas civilizatórias nos textos legais-constitucionais — deveríamos continuar a delegar ao juiz um papel que não lhe cabe?

A Constituição é clara ao firmar o sistema acusatório, como “porta de entrada da democracia”, de forma a garantir que o Estado exerça de modo (i) igualitário a aplicação da lei e (ii) limitado e equalizado o poder persecutório. Enfim, faz um giro linguístico-ontológico, em que os sentidos não mais se dão pela consciência do sujeito (juiz), mas, sim, pela intersubjetividade (partes). E isto deveria ser compreendido pela comunidade jurídica. Poxa, não é tão difícil assim.

A vivência da democracia está entrelaçada à necessária limitação dos poderes e à exclusão (utópica, ideal) ou mitigação (fática, real) das discricionariedades, arbitrariedades e inquisitorialidades.

A decretação de prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar sem requerimento do Ministério Público (parte acusadora/investigadora) ou mesmo sem representação da autoridade policial (parte investigadora) é atentatória a este Sistema Acusatório, pois traz ínsita a ideia da aposta na “boa escolha” do magistrado, maior e melhor e melhor que as partes.

É nítido que a Constituição firma a separação das funções de investigar e acusar, de julgar, e também de defender, com previsão clara e precisa de existência de órgãos específicos incumbidos dos respectivos múnus: investigativo — artigo 144, § 1º, I e § 4º, CRFB; acusação — artigo 129, I, CRFB; defesa — artigos 133 e 134, CRFB.

O Estado-Juiz deve se conter (e ser contido!) e agir provocado pelas partes, e não as substituir. Por que o juiz, agindo de ofício, saberia mais do que o Ministério Público (que, aliás, sem se dar conta, dá um grande tiro no pé quando apoia o agir de ofício do juiz — mas, enfim, fazer o quê?).

As instituições responsáveis pela acusação e defesa (Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia Privada e Defensoria Pública) devem valorizar suas funções e não permitir, mesmo quando se lhe agrade a decisão, que o juiz lhes substitua.

Um esclarecimento.

O óbvio precisa ser dito: é função do magistrado proteger os direitos e garantias fundamentais, agindo, inclusive, de ofício em prol do investigado/acusado, por isso, nestes casos, não viola a separação de poderes ou sistema acusatório. É função inerente ao magistrado. Daí porque discutimos sobre o “juiz das garantias”, e nunca sobre “o juiz das violações” ou “juiz das acusações”. Simples assim. O processo penal tem natureza política de contra poder[2].

Ao proferir decisão que decreta prisão preventiva, o juiz restringe os direitos fundamentais de alguém, age como Poder, e, se o faz sem que haja provocação, está se comportando como delegado ou promotor, decai de sua parcialidade e praticando função que não é sua. Usurpa, até.

O Supremo Tribunal Federal compreendeu já que “A Constituição Brasileira de 1988 consagrou, em matéria de processo penal, o sistema acusatório, atribuindo a órgãos diferentes as funções de acusação e julgamento.” pois inclusive que não haveria possibilidade de “arquivamento ex officio de investigações criminais pela autoridade judicial [3].

É um agir anti Waldron — anticoerência, anti-integridade, anti-dignidade da legislação — não aceitar o arquivamento de ofício, mas aceitar, por exemplo, a “conversão” de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva ou mesmo sua decretação, também de ofício, durante o curso do processo.

Explica-se.

Na primeira situação — arquivar ex officio — não há ameaça ao sistema acusatório porque é função do juiz garantir, proteger, cuidar, promover os direitos fundamentais, entre eles “essa tal liberdade”.

Na segunda situação, — decretar prisão ex officio — é ululante a subversão das funções, o escanteamento do Ministério Público (será que a Instituição continuará dando tiro no pé ao criticar o juiz de garantias?), sua substituição pelo órgão (que sabe mais? Mais preparado? Que não falha mesmo quando o MP falha? Predestinado ao combate à criminalidade?) jurisdicional que deveria… julgar.

A novel Lei 13.964/2019 também cuidou de deixar essa questão em termos bem claros: pois seu artigo 311 determina que

“Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

Permitimo-nos dizer: Bingo.

Qualquer prisão, seja durante a investigação, seja durante a ação penal, dependerá de pedido de órgão/pessoas/instituições a que a lei processual devidamente atribui essa função (Ministério Público, vítima, autoridade policial).

Agora, mais do que nunca, deixa de fazer sentido qualquer distinção entre decretar e converter a prisão em flagrante em preventiva, pois são atividades decisórias rigorosamente iguais que verificam rigorosamente as mesmas questões (necessidade/adequação das medidas cautelares diversas, pressupostos e requisitos ensejadores da prisão preventiva etc.). Distinguir decretar e converter é um mero jogo de linguagem, pelo qual se busca esconder o velho inquisitivismo, que teima em sobreviver. Na verdade, usando um velho chavão — até um pouco piegas — podemos dizer que o velho inquisitivismo não quer morrer e, com isso, não quer deixar nascer o novo — o sistema acusatório.


1 STRECK, Lenio Luiz. Novo Código de Processo Penal: O problema dos sincretismos de sistemas (inquisitorial e acusatório). Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009.

2 http://www.justificando.com/2016/09/28/importancia-de-moro-e-da-lava-jato-para-democracia-e-para-as-garantias-do-processo-penal-no-brasil/

3 STF, Min. Alexandre de Moraes, ADI 4693/BA MC, d. em 10.2017

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional. Membro Consultor da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do CFOAB.

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