Ideias do Milênio

"Escolas não devem formar computadores de segunda linha, mas humanos de primeira"

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5 de janeiro de 2020, 17h54

Entrevista concedida pelo estatístico alemão Andreas Schleicher à jornalista Leila Sterenberg para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews.

OCDE
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Programa Internacional de Avaliação de Alunos ou, na abreviação do nome em inglês, Pisa. Assim se chama a prova internacional para estudantes do começo do ensino médio coordenada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. A cada 3 anos, já faz quase duas décadas, jovens de 15 anos de todo o mundo são testados em três áreas: leitura, matemática e ciências. O objetivo não é medir quanto conteúdo a meninada tem na cabeça, e sim, a quantas andam suas habilidades de raciocinar, se expressar, e cada vez mais, lidar com desafios contemporâneos para além dos muros da escola. Quem criou o Pisa foi um estatístico alemão, Andreas Schleicher, que dirige a área de educação da OCDE. Em uma vinda ao Rio de Janeiro, ele conversou com o Milênio.

Leila Sterenberg — Vocês acabam de estabelecer uma nova orientação para o Pisa. Criatividade, empreendedorismo e empatia vão ser testados?
Andreas Schleicher —
Algumas dessas áreas podem hoje ser monitoradas nos testes. Nós medimos, por exemplo, as competências sociais, a resolução de problemas em equipe. Pensamento criativo é atualmente algo que podemos incluir, avaliar, comparar. Avaliar a habilidade dos estudantes de trabalhar de forma original. Com empatia é mais difícil. Junto a crianças pequenas é possível testar empatia, já fizemos isso. E empreendedorismo é algo ainda distante. A habilidade de desenvolver as próprias iniciativas, de mobilizar habilidades sociais e emocionais – isso ainda está além do que hoje podemos testar. Mas acho que o mundo se desenvolve e temos que nos transformar. E melhorar para avaliar as capacidades nas quais o mundo está de olho. O Pisa está trabalhando nisso.

Leila Sterenberg — A maior parte dos sistemas escolares ainda está mais orientada para o passado que para o futuro?
Andreas Schleicher —
É sempre mais fácil educar os estudantes para o nosso passado que para o futuro deles. Educação é um sistema social conservador. E, como pais, somos, de certa forma, mais problema que solução. Ficamos facilmente nervosos quando nossos estudantes não mais aprendem coisas que antigamente para nós pareciam muito importantes. E ficamos nervosos quando nossos estudantes aprendem coisas que nós ainda não aprendemos. Professores ensinam com frequência da forma como foram ensinados, não como deveriam ensinar. Nós temos que reconhecer a realidade, mas acho que é importante o sistema educacional se preparar para um futuro desconhecido, um futuro que será diferente. As coisas que podem ser ensinadas facilmente, testadas facilmente, estão se digitalizando. Não basta que nossos filhos sejam quase tão bons quanto um smartphone. Temos que refletir sobre como desenvolver melhor competências para o futuro.

Leila Sterenberg — E as escolas do futuro devem ensinar menos conteúdo, mas com maior consistência?
Andreas Schleicher —
Quando olhamos hoje para os sistemas de educação bem-sucedidos, eles ensinam atualmente menos matéria, mas com maior profundidade. Não se trata de dar um monte de conteúdo de Biologia ou Química. A questão é: podemos pensar como um cientista? Não se pode decorar um experimento, é preciso conduzi-lo, conceituá-lo. Posso pensar como um matemático? Um filósofo? Um historiador? É isso o que fazem esses países. Numa aula de Matemática no Japão, um único conceito é trabalhado. Diferentes perspectivas são destacadas. E o estudante pode internalizar esse conceito, essa ideia da Matemática.

Leila Sterenberg — Sem excesso de exercícios…
Andreas Schleicher —
Sem excesso de exercícios. Se vamos a uma escola brasileira, os estudantes decoram muitas coisas sem necessariamente entendê-las. Decorar é, para o futuro, menos relevante. Nisso o computador vai ser sempre melhor. O importante é que os sistemas educacionais não formem computadores de segunda linha e sim seres humanos de primeira.

Leila Sterenberg — Quão importante é a individualização e como o sistema educacional consegue fazer essa individualização sem reduzir o nível de cobrança?
Andreas Schleicher —
As pessoas aprendem de formas bem diferentes. A habilidade do sistema educacional está em reconhecer essas diferenças no aprendizado. O que esperamos de bons professores é – e os alunos percebem isso de cara – é que ensinem suas matérias com paixão. Em segundo lugar, é que eles entendam bem como os alunos aprendem a matéria. Mas o terceiro elemento também é importante: será que os professores reconhecem seus alunos como pessoas? Eles sabem quão diferentemente os estudantes aprendem e dão conta disso? E isso significa encorajar o potencial de cada estudante. Quando ensinamos do mesmo jeito a todos, baixamos o nível para atingir o menor denominador comum. Individualizar significa estimular o potencial de cada aluno na matéria – e isso acontece no bom ensino. E não é questão de ter turmas pequenas: há sistemas educacionais de alto desempenho também com turmas grandes, em que em vez de o professor ensinar a todos os alunos, cada aluno trabalha por si de forma independente, com a força de desenvolver novas ideias.

Os países mais bem colocados no último Pisa foram Singapura, Japão e Estônia, consideradas as habilidades em Ciências, que foram o foco principal da última edição da prova.

Leila Sterenberg — Como o senhor vê Singapura e Japão, os países mais bem colocados do último Pisa?
Andreas Schleicher —
São países que se desenvolveram muito. Hoje, por exemplo, quando olhamos para Singapura: no passado era um país em que a reprodução de conteúdo era priorizada. Hoje é valorizada a criatividade e também o empreendedorismo. Os estudantes aprendem de forma autônoma ou trabalham com colegas. Funciona. E também em Singapura a profissão de professor mudou profundamente: hoje não é apenas atraente do ponto de vista financeiro, mas intelectual. Quer dizer que os professores encontram um ambiente de trabalho em que eles não são apenas transmissores de conhecimento, mas em que a cada dia trabalham com os colegas para desenvolver novos conceitos. Eles criam junto o sistema, não são apenas repetidores, isso é muito forte lá. No Japão, que já é um país com uma tradição de educação, lá também os professores trabalham a cada dia desenvolvendo novos conceitos. Não são apenas transmissores do que aprenderam. E isso é bem impressionante.

Leila Sterenberg — Antes do Pisa, era difícil comparar a qualidade da educação em diferentes países. Nos últimos 20 anos, os responsáveis por políticas educacionais aprenderam com a experiência de outros países e a partir daí introduziram inovações?
Andreas Schleicher —
Com certeza o sucesso vira exemplo. Antes do Pisa, pode-se dizer, quando os ministros da Educação se encontravam, falavam de quem tinha o melhor sistema, que reformas estavam promovendo para melhorar as coisas. Hoje os ministros da Educação olham para fora. Um exemplo na Grã-Bretanha: a então ministra da Educação Elizabeth Truss. Depois que Xangai mostrou seu desempenho em Matemática, 50 professores de lá foram convidados a ir à Grã-Bretanha para trabalhar com o corpo docente do país. E a partir daí se estabeleceu muita colaboração. O Pisa mostrou qual é a persperctiva, o que é possível. Mostrou que existem outros sistemas que usam outros métodos e outros tipos de trabalho com os quais podemos aprender. Não quer dizer que vamos simplesmente copiar, mas podemos refletir: o que torna esse sistema bem-sucedido? Podemos aprender com esses sucessos? Acho que muita coisa mudou, em todo o mundo.

Leila Sterenberg — Na Europa, Finlândia, Estônia e Holanda seriam modelos?
Andreas Schleicher —
Sim, se destacam na performance cognitiva, mas também pelo fato de que os estudantes demonstram bem-estar. Os alunos não são apenas bons na escola, mas eles gostam da escola. As escolas são lugares que frequentam com prazer. E acho que isso é um aspecto importante. Lá há sistemas educacionais interessantes.

O Brasil ficou no último Pisa bem atrás de países que têm PIB e Índice de Desenvolvimento Humano mais baixos que os nossos. Caso, por exemplo, do Vietnã, que tirou nota 525 em Ciências, contra 401 do Brasil. A média dos países da OCDE foi 493.

Leila Sterenberg — No Brasil, o analfabetismo ainda é muito alto. E aqui as notas do Pisa dos nossos melhores estudantes são piores que as notas dos mais fracos do Vietnã, por exemplo. Como o senhor vê o Brasil?
Andreas Schleicher —
Pode-se perguntar se há um copo meio cheio ou meio vazio. Acho que houve um desenvolvimento. Há 20 anos, quando estive aqui pela primeira vez, havia a discussão sobre como aumentar o número de vagas para as crianças. Hoje o conceito da qualidade está no centro. Acho isso muito positivo. Houve investimento na qualificação dos profissionais. Há muitas ideias boas no Brasil. Quem quiser descobrir empreendedorismo, deve vir ao Brasil. Há professores excelentes, escolas excelentes. O que o sistema educacional ainda não conseguiu foi dar escala a esses sucessos. O sistema está disposto a implantar essas ideias nas escolas. Mas faz pouco no sentido de levar as boas ideias que já existem para a sala de aula em larga escala. Há professores no Brasil que fazem um trabalho excelente, mas poucos usufruem. É nisso que se deve trabalhar. Mas há um desenvolvimento muito positivo.

Leila Sterenberg — Desigualdades são ainda muito grandes – entre os estados brasileiros, entre o sistema público e o privado. Isso é um problema, não?
Andreas Schleicher —
Considero a diferença de rendimento entre escolas públicas e privadas menos relevante, quando se leva em conta o contexto social. A diferença não é tão grande. A diferença decisiva é entre as várias regiões, os diferentes estados e as diferentes escolas. Nessas disparidades é preciso trabalhar. As boas ideias têm que se espalhar melhor. Vamos tomar o exemplo do Vietnã. O Vietnã consegue colocar os melhores professores nas escolas mais problemáticas. Se você é o substituto de um diretor de escola de sucesso no Vietnã e quer ser promovido, te dizem: é boa essa ambição, vamos te ajudar, mas você nos ajuda antes a botar nos trilhos uma das escolas mais difíceis. Então conseguem as melhores pessoas para as situações mais complicadas. E no Brasil é o contrário. Os professores mais qualificados trabalham em escolas onde é relativamente fácil trabalhar. Acho que pode fazer muito mais pelo sistema, aplicar os recursos onde eles podem gerar mais resultado. O Brasil investe muito pouco em educação, é fato, mas pode aplicar melhor os meios de que dispõe.

Leila Sterenberg — Portugal, por exemplo, se desenvolveu muito…
Andreas Schleicher —
Portugal tem também um sistema fantástico na Europa. Ainda não está bem colocado entre os melhores desempenhos, mas o avanço é significativo. Portugal estava há 15 anos muito atrás de onde está hoje. Se desenvolveu muito. As escolas têm mais liberdade. O sistema era muito antiquado, quanto a programas e currículo. Hoje se modernizou muito. Portugal mostra também como um sistema educacional muito cristalizado e rígido pode ser transformado.

Leila Sterenberg — O senhor é da Alemanha. O que o senhor acha da Alemanha atualmente? Não está tão bem, talvez?
Andreas Schleicher —
Na Alemanha muita coisa melhorou. O primeiro resultado do Pisa mostrou uma grande disparidade social. E quando se olha hoje, a diferença de resultado entre estudantes com e sem origem estrangeira caiu pela metade. Mas a Alemanha também deve prestar atenção ao seu sistema educacional. Por exemplo, quando os alunos chegam aos dez anos de idade são divididos em diferentes escolas. Aqueles que são bem avaliados vão para o ginásio, para o meio acadêmico e vão ter nível superior. E há outros estudantes que vão seguir formação profissionalizante e depois vão trabalhar para aqueles que fizeram universidade. Este é um conceito que vem do passado. A Alemanha tem muito o que trabalhar nesse sentido. Acho que uma comparação internacional como o Pisa estabelece pontos de partida. No fundo, quando se usa o próprio sistema como referência, ele não é questionado. Comparações internacionais como o Pisa nos fazem ver as possibilidades que há lá fora. Como eu posso garantir o rendimento no âmbito educacional? A Alemanha tem muito o que fazer.

Num mundo cada vez mais globalizado e competitivo, educar dentro de casa pode dar certo? Existem defensores dessa prática, que é permitida, por exemplo, nos Estados Unidos, onde ganhou o nome de homeschooling. Aqui no Brasil o governo federal apresentou em abril um projeto de lei, para permitir que os pais eduquem os próprios filhos.

Leila Sterenberg — O que o senhor acha da educação domiciliar? Hoje muita gente no Brasil é a favor, também nos Estados Unidos. Mas é polêmico, não é verdade?
Andreas Schleicher —
É muito difícil fazer bem feito. E frequentemente se subestima o papel do professor. Bons professores produzem muito resultado – o que para os pais é difícil. Mas o segundo ponto também é importante: o contexto social do aprendizado. A escola é o primeiro lugar em que temos contato com a diversidade social, e podemos ganhar com isso. Se tiramos isso do aluno e o criamos no ambiente familiar, nós tiramos uma importante possibilidade de desenvolvimento. É muito difícil fazer bem feito.

Leila Sterenberg — De volta à Ásia, para os chineses são claros os efeitos da inteligência artificial e da digitalização. Mas aprender e pensar de forma criativa pode ser uma ameaça para um governo autoritário? Quem pensa faz perguntas – e a China não é uma democracia…
Andreas Schleicher —
É, eu acho que a maioria na administração do país não pensa assim. Acha que a sociedade tem que se desenvolver. A digitalização torna muito do que fazíamos na escola irrelevante. A inteligência artificial exerce várias capacidades cognitivas das quais nós, como humanos, não precisamos mais. Na China pensa-se muito nisso: como podemos contribuir para que tenham espaço as habilidades cognitivas, sociais e emocionais. É preciso dizer também que naturalmente é um sistema que se pretende fortemente estatal. Mas, por exemplo, as escolas na China têm mais liberdade que as do Brasil. As possibilidades de configuração do ensino são muito grandes. Isso se desenvolveu, na minha opinião, de forma positiva.

Leila Sterenberg — O que se chama de MINT – Matemática, Informática, (Ciências da) Natureza e Técnica – virou uma obsessão em alguns países?
Andreas Schleicher —
Eu acho que é um modo importante de ver o mundo e estar nele. Mas também podemos colocar as matérias artísticas em primeiro plano – num mundo em que, no fundo, imaginação e criatividade têm um significado maior. Naturalmente se pode ensinar criatividade nas matérias do núcleo MINT, mas também se pode desenvolver muito bem essas competências em matérias artísticas na formação educacional. Acho que há muitas possibilidades. No fundo, as matérias hoje são o contexto e não o objetivo final da boa educação. A boa educação significa fazer pensar de forma autônoma, ensinar a trabalhar com outras pessoas. Alguns veem matérias mais como instrumentos, meios auxiliares, e não um fim em si mesmas.

Leila Sterenberg — Música e esporte também são importantes?
Andreas Schleicher —
Com certeza. E o esporte não apenas para ser saudável e atlético, mas o esporte dá a possibilidade de assumir responsabilidades em relação a si mesmo e aos outros, desenvolver a coragem e a paixão. A música também. É claro que é legal quando as crianças têm talento musical, mas a música dá a possibilidade de aprender disciplina, ouvir com atenção, tocar junto com outras pessoas – essas são as competências que fazem diferença. Não se trata de prestar contas no sentido de mostrar um progresso na música ou no esporte, e sim de pensar no que essa experiência traz. Que competências básicas as diversas matérias nos proporcionam? Assim vamos estar educando para o século XXI.

Leila Sterenberg — Quando o senhor desenvolveu o Pisa, pensou na época que o teste um dia se tornaria tão importante? Como o senhor se sente como o pai do Pisa?
Andreas Schleicher —
Era muito difícil naquele momento avaliar. Mas acho que eu tinha um desejo. O que me atraiu na época foi a troca de experiências. Eu sou cientista, e para um cientista parece natural que as pessoas trabalham em outros países, de maneiras diferentes. E o campo da educação era muito isolado. Eu consegui com o Pisa desenvolver uma língua comum. Sobretudo quando falamos uns com os outros sobre educação e superamos as fronteiras entre os países. Eu esperava isso, mas com certeza não podia imaginar que iria haver um impacto tão amplo.

Leila Sterenberg — O senhor é otimista sobre o futuro?
Andreas Schleicher —
Eu acho que a educação é a chave para o futuro. Nas escolas hoje estão a economia e a sociedade de amanhã. A educação também nos mostra como uma sociedade e o presente se equilibram. Os chineses vão investir todo o dinheiro possível no futuro do país e na educação de suas crianças. No Brasil ou na Europa, gastamos o dinheiro das crianças com o nosso próprio presente, ficamos devendo. Acho que o equilíbrio está entre o investimento no futuro e no presente. Isto é fundamental para a educação. Eu sou otimista, acho que hoje a maioria das pessoas reconhece o valor da educação. O Brasil é um exemplo. As pessoas bem formadas nunca tiveram tão boas oportunidades de vida quanto têm hoje. E as pessoas a quem faltou uma educação de base têm sempre uma situação de maior risco. Eu acho que há pessoas dispostas a fazer um sacrifício para implementar ações. E isso é uma questão para os pais: nós vemos, por exemplo, na comparação dos resultados do Pisa, se os pais perguntam todos os dias a seus filhos: “Como foi a escola?” Para isso você não precisa de um diploma acadêmico e não precisa passar três horas fazendo o dever de casa com o seu filho. É só questão de mostrar à criança: o que você faz na escola é importante para mim. Essa demonstração tem mais influência no sucesso da educação do que a renda dos pais. Acho que se vemos isso como chave, sou otimista – mas temos muito a fazer. E a inteligência artificial nos persegue.

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