Opinião

TCU resiste em aplicar inovações feitas pela LINDB

Autor

  • Daniele de Oliveira Nunes

    é advogada no Leal Cotrim Jansen Advogados. Master of Laws - LL.M. pela University of Michigan Mestra em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

5 de janeiro de 2020, 6h33

Com o declarado propósito de promover segurança jurídica e a eficiência “na criação e na aplicação do direito público”, a Lei 13.655/2018 promoveu alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Dentre as consequências práticas que pretende evitar está a “responsabilização injusta de autoridade em caso de revisão de suas decisões”, como consta da sua Exposição de Motivos. Para isso, estabeleceu uma série de balizas à revisão e ao controle do ato administrativo: (i) a avaliação das consequências da decisão que invalide ato ou contrato (artigo 21); (ii) a consideração dos obstáculos e dificuldades concretas enfrentadas pelo gestor (artigo 22); (iii) a análise quanto à observância a orientações gerais da época (artigo 24); (iv) a responsabilização do administrador somente em casos de dolo ou erro grosseiro (artigo 28).

Enquanto era debatida, a proposta que resultou na Lei 13.655/2018 recebeu pesadas críticas, especialmente de órgãos de controle. Um de seus maiores opositores foi o Tribunal de Contas da União. O TCU a classificou como “profundamente preocupante, de cunho fortemente desfavorável aos órgãos de controle”, defendendo que não poderia ser responsabilizado pela alegada insegurança jurídica.[i] De fato, em parecer sobre o tema, a Consultoria Jurídica do Tribunal eximiu a Corte de qualquer responsabilidade pela insegurança jurídica que motivou a proposta, acusando-a de representar um “afrouxamento das regras de responsabilização de agentes públicos”.[ii]

A atuação do Tribunal de Contas da União tem se fortalecido significativamente. Nas últimas décadas, aquela Corte de Contas tem promovido a capacitação de seu corpo técnico, segmentado a atuação de suas secretarias de fiscalização e feito parcerias estratégicas com entidades de relevo em temas como controle e governança pública – a OCDE é um exemplo. Como resultado dessa e de outras iniciativas, o TCU vem assumindo posição de vanguarda em discussões de relevo para o Direito Administrativo. Vem, também, intensificando o controle sobre a atuação dos gestores públicos, e até mesmo sobre entidades totalmente privadas.[iii]

Muito se fala sobre os benefícios oriundos dessa nova realidade, todos bem-vindos. Além do expressivo retorno financeiro decorrente de ressarcimento ao erário e multas, o Tribunal destaca impactos como “potencial redução de irregularidades pela expectativa de controle, prevenção de desperdício, melhorias na alocação de recursos”,[iv] dentre outros. Mas a mesma “expectativa de controle” que gera uma “redução de irregularidades” gera também um impacto negativo. Conjugada com a insegurança jurídica ainda expressiva no Direito Administrativo Brasileiro, ela forma um cenário propício à instalação de uma paralisia dos administradores públicos.

Um exemplo disso é o posicionamento do TCU em relação ao BDI — Bonificação e Despesas Indiretas, percentual de custos indiretos comum nos orçamentos de empreendimentos contratados pelo Poder Público. O TCU definiu os percentuais considerados adequados para cada tipo de empreendimento em acórdão publicado em 2013, após a realização de estudo que se baseou em obras contratadas entre 2007 e 2011. Era de se esperar que esses novos parâmetros guiassem somente as fiscalizações sobre contratos celebrados após a publicação do acórdão que os definiu. Entretanto, esses parâmetros são aplicados retroativamente pelo TCU, que os utiliza como referências na análise de orçamentos de obras contratadas não apenas antes da publicação do acórdão, como também antes do período considerado na amostra do estudo.[v] Em um cenário como esse, em que o orçamento de uma obra pública pode ser controlado por parâmetros fixados posteriormente, que gestor se arrisca a se responsabilizar por ele?

Fato é que, apesar das críticas, o projeto de lei foi aprovado e sancionado, estando as alterações à LINDB em pleno vigor. Mas até que ponto elas têm sido observadas pelo TCU no exercício de seu controle? São contraditórios os sinais enviados pela Corte de Contas. Alguns casos pontuais têm sido destacados como exemplos de aplicação das novas regras pela Corte de Contas.[vi] Ocorre que mesmo antes das novas regras o TCU, por vezes, já analisava indícios de irregularidades de acordo com as premissas inseridas na LINDB.[vii]

Somado a isso, certas afirmações lançam dúvidas sobre até que ponto o TCU está disposto a se submeter à LINDB. O Acórdão 2.391/2018-Plenário, da lavra do Ministro Benjamin Zymler, entendeu que “as alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro pela Lei 13.655/2018, em especial a inclusão do artigo 28, não provocaram modificação nos requisitos necessários para a responsabilidade financeira por débito”, tendo em vista que a Constituição prevê a responsabilização pessoal por danos causados a terceiros nos casos de dolo ou culpa, sem gradação (artigo 37, §6º, CRFB). Aquele julgado, portanto, adotou o questionável entendimento de que o artigo 28 da LINDB somente se aplica à aplicação de sanções, e não à obrigação de ressarcimento ao erário.[viii] Mencionando esse julgado, o Acórdão 2.621/2019-Plenário foi além, fazendo a genérica afirmação de que “as inovações da Lei 13.655/2018 não se aplicam à responsabilização [dos gestores públicos] por débito”.

Esse cenário evidentemente contribui para o aumento da insegurança jurídica que se pretendeu combater quando da alteração da LINDB, pela qual o TCU insiste em negar qualquer responsabilidade. Ao que parece, há ainda um longo caminho a se percorrer até que a Corte de Contas, que hoje ocupa papel de tamanha relevância para a melhoria da Administração Pública, reconheça a importância das inovações trazidas pela Lei 13.655/2018 e aceite submeter sua atividade de controle aos seus preceitos. Até lá, o medo de injusta responsabilização permanecerá sendo rotina para o gestor público.

 

 

 

 

i Comunicação do então Presidente do TCU, Raimundo Carreiro, em sessão plenária ocorrida em 04/04/2018. Disponível em <http://www.tcu.gov.br/Consultas/Juris/Docs/CONSES/TCU_ATA_0_N_2018_11.pdf>. Acesso em 03 jan. 2020.

ii Parecer sobre o PL 7448/2017, em face do parecer-resposta dos autores do PL e de outros juristas, expedido no âmbito do TC 012.028/2018-5. Disponível em <https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A81881F62B15ED20162F95CC94B5BA4&inline=1>. Acesso em 03 jan. 2020.

iii Exemplo disso é o Acórdão 1.344/2015-Plenário, que entendeu sujeita ao controle do TCU a Transportadora Gasene S/A, entidade de natureza privada. Segundo os Ministros, o controle se justificaria porque a Petrobras exercia um controle “real e efetivo” sobre a Transportadora Gasene, embora não detivesse, direta ou indiretamente, a maioria das ações com direito a voto daquela companhia.

iv Benefícios financeiros da atuação do TCU superam 25 bi em 2018. Revista TCU n. 142 (2018), p. 15-16.

v A exceção é caso análises já tenham sido realizadas e/ou julgadas, hipótese em que não podem ser revisadas a partir dos novos parâmetros (Acórdão 2.440/2014-Plenário).

vi GABRIEL, Yasser. Pragmatismo no TCU? JOTA, 11 dez. 2019. Disponível em <http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/12/Pragmatismo-no-TCU_-JOTA-Info.pdf> Acesso em 03 jan. 2020.

vii Os próprios autores do PL, em parecer-resposta a críticas da Consultoria Jurídica do TCU, assim destacaram. A Consultoria Jurídica, em resposta, também assim reconheceu.

viii NIEBUHR, Joel de Menezes. O Erro Grosseiro – Análise crítica do Acórdão nº. 2.391/2018 do TCU. Blog Zênite, 14 nov. 2018. Disponível em <https://www.zenite.blog.br/o-erro-grosseiro-analise-critica-do-acordao-no-2-3912018-do-tcu/>. Acesso em 03 jan. 2020.

 

 

 

Daniele de Oliveira Nunes é advogada no Leal Cotrim Jansen Advogados. Master of Laws – LL.M. pela University of Michigan, Mestra em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected].

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    é advogada no Leal Cotrim Jansen Advogados. Master of Laws - LL.M. pela University of Michigan, Mestra em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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