Opinião

O momento do trânsito em julgado é imutável?

Autores

4 de janeiro de 2020, 7h17

Até o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54, foi o Judiciário quem esteve na centralidade da discussão acerca da possibilidade de execução da pena em segunda instância. Decidida a questão afirmando-se a validade (formal e substancial) do artigo 283 do Código de Processo Penal, logo veio a resposta do Legislativo, algo próximo ao que se tem denominado efeito backflash, consistente em reavivar propostas de modificação do sistema jurídico no sentido de que a execução da pena seja possível após o exaurimento da jurisdição em segunda instância.

O ponto de tensão se dá com uma (aparente) contradição entre a afirmação de constitucionalidade da presunção de inocência – tal como decidida pelo Supremo Tribunal nas referidas ações – e a atividade legislativa, no sentido oposto, por meio de propostas de Emenda à Constituição. Diversas vozes de peso já se levantaram contra a iniciativa. Streck e Cattoni de Oliveira publicaram neste mesmo espaço texto intitulado: “PECs contra a presunção de inocência são fraude à constituição”. Nele, os autores[i] alegam que “Até as pedras sabem que a CF estabelece em seu artigo 60 as condições de possibilidade de reforma dela mesma (limites materiais)”; e entendem que, além da abolição (completa) do conteúdo da norma de direito fundamental, a “restrição é, também, para efeito do disposto no artigo 60, §4º, IV, da Constituição, abolição violadora do princípio constitucional de proibição de retrocesso. Toda a boa doutrina constitucional sustenta exatamente isso.”.

Embora os textos se refiram especialmente às PECS 410/2018 e 5/2019, a ideia geral é a de que: “Nem o Supremo e nem o Parlamento podem relativizar a presunção de inocência. Cláusula pétrea! Simples assim.”. Em sentido próximo, Bacha e Silva, Souza Cruz e Walkiria Cabral[ii] alegam que “A tentativa de modificação no artigo 5º, inciso LVII é um atentado direto aos limites impostos pelo poder constituinte originário no artigo 60, §4º, IV da Constituição […]”. Para estes autores, ao que parece, a questão não é tão simples e não provém de uma interpretação literal da Constituição, pois “[…] uma interpretação literal do artigo 60, §4º, seria aquilo que Dworkin denomina de uma hermenêutica convencionalista […] contrariando uma postura hermenêutica de integridade do texto constitucional que, enquanto vela moral da sociedade, deve ser considerado como a mais alta expressão de nossa comunidade de princípios […]”.

Que a Constituição seja a “vela moral da sociedade”, isto é um argumento aceitável. Poucos são os que rejeitam algum conteúdo moral no Direito. Não é o caso mesmo de positivistas como H.L.A Hart, Hans Kelsen o Joseph Raz[iii]. O problema consiste na definição, numa sociedade plural como a nossa (onde pluralismo é fundamento da República), qual a moral ou em que direção apontaria sua vela, ou quem teria a legitimidade para estabelecê-la, já que, para os mesmos autores que a reivindicam, quando a literalidade da Constituição não disser o que os agrade, é sempre possível invocar “os valores da sociedade de nossa comunidade de princípios”!

Da mesma forma como fazem Streck e Cattoni, Bacha e Silva, Souza Cruz e Walkiria Cabral têm foco nas PECS 5 e 410, mas seus argumentos valem para outras tentativas de modificação, ainda que indiretas, do instante da execução da pena. Assim, argumentam que “cabe comentar também que alguns atores jurídicos e políticos julgam encontrar solução para o impasse: basta modificar o momento do trânsito em julgado” e em seguida rechaçam a ideia: “ainda que se admita que uma regra estabeleça um conceito jurídico à fórceps, a gramática profunda do jogo de linguagem do direito não pode ser modificado pelo legislador, sendo inócua uma tentativa de definição do conceito por uma lógica exterior à própria compreensão dos utentes da linguagem jurídica”.

Para Bacha e Silva, Souza Cruz e Walkiria Cabral: “resta claro, então, que qualquer forma de interpretação dos direitos humanos e fundamentais, isto é, seja estabelecido em tratado internacional ou norma interna, que reduza o núcleo de direitos já garantidos nos Estado, é indiscutivelmente proibida […]”. É nesta perspectiva de indiscutibilidade de modificação que se se coloca nosso problema. Prender ou não prender, esta não é a questão. Mesmo com a decisão do STF – nisso Streck tem razão – é possível prender não só em segunda, mas em primeira instância e até mesmo na fase anterior ao processo, na investigação. Mas e se o Legislador (o povo) optar por alterar o sistema recursal? A restrição de direitos fundamentais é mesmo questão indiscutível?

Na dogmática constitucional alemã, a possibilidade de limitação a direitos fundamentais não é tão indiscutível assim. Isso por um motivo muito simples: a própria Lei fundamental da República Federativa da Alemanha (Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland), a Constituição da Alemanha, prevê no artigo 19, 1 e 2, que um direito fundamental pode ser restringido, observando-se alguns requisitos: “Na medida em que, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental possa ser restringido por lei ou em virtude de lei, essa lei tem de ser genérica e não limitada a um caso particular. Além disso, a lei terá de citar o direito fundamental em questão, indicando o artigo correspondente.”[iv].

É a partir deste artigo que a ciência constitucional discute os requisitos da limitação a direitos fundamentais e, especificamente pelo disposto no artigo 19, 2, encontra-se o argumento para a observância, para qualquer caso de restrição, da preservação do conteúdo essencial: “Em nenhum caso, um direito fundamental poderá ser violado em sua essência. [v]”. No Brasil, a proibição de retrocesso encontra positivação no artigo 60, §4º, que veda projeto de Emenda Constitucional tendente a abolir os diretos fundamentais. A configuração lógica é bastante semelhante: é possível restringir direitos fundamentais, desde que se respeite seu conteúdo essencial; é possível emendar a Constituição, ainda que para limitar direito fundamental, desde que isto não importe em sua abolição.

A Constituição da República, em seu artigo5º, inciso LVII, estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O conceito de trânsito em julgado, porém, não é esclarecido pelo texto constitucional e, a rigor, nem deve ser, uma vez que se trata de instituto atinente ao direito processual.

Trânsito em julgado e coisa julgada são institutos fortemente associados dentro de uma relação de dependência lógica. A própria Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro o esclarece. O parágrafo 3º do artigo5º dispõe que se chama “coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”. Trânsito em julgado, portanto, é a situação jurídica que determina a coisa julgada, sendo esta uma consequência daquele. O trânsito em julgado consiste no principal e intrínseco efeito da preclusão, para as partes do processo, da possibilidade de interposição de recurso após o decurso do prazo respectivo.

A atual sistemática processual e constitucional brasileira só permite falar em trânsito em julgado na esfera processual penal após o exaurimento das vias recursais, notadamente, incluindo-se as hipóteses do recurso especial e do extraordinário, pois estes recursos estão previstos na Constituição como de competência do STF e STJ. O trânsito em julgado, porém, não é uma cláusula pétrea ou uma garantia constitucional, mas resultado de uma determinada sistemática recursal adotada por um ordenamento.

Além disso, a possibilidade de o Legislativo alterar a Constituição em oposição a uma decisão da Suprema Corte é evidente, uma vez que o Legislativo é quem detém o poder-dever de falar em nome da vontade popular. O parlamento possui esta legitimidade para colher e manifestar a vontade do povo. Nesse caso, não é necessário modificar o inciso LVII do artigo5º, mas sim a previsão dos recursos extraordinário e especial, que não são direitos fundamentais. Em segundo lugar, por uma necessidade de se respeitar o equilíbrio entre as funções separadas dos três poderes, a possibilidade da alteração constitucional também se mostra evidente. Alterados os recursos mencionados, forçoso seria interpretar que a prisão como forma de execução da pena já ocorreria após a condenação em 2ª instância, na medida em que não mais se poderia fazer uso dos aludidos recursos. Tal é o que propõe a redação original da PEC 11/2015, conhecida como PEC dos Recursos ou PEC Peluso, que “Altera os arts. 102 e 105 da Constituição, para transformar os recursos extraordinário e especial em ações rescisórias.”.

Outra pergunta que poderia ser apresentada é a seguinte: uma emenda constitucional nesses termos estaria, posto indiretamente, restringindo inconstitucionalmente a garantia da presunção de inocência? Neste particular, o argumento faz uso do chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais (Wesensgehalt der Grundrechte).

O chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais é comumente criticado em virtude de sua vagueza. O BVerfGE já teve a oportunidade, inclusive, de estabelecer pelo menos duas orientações sobre a matéria: (i) que o conteúdo essencial vincula apenas o legislador ordinário, mas não o legislador constituinte e, portanto, a possibilidade de emendas constitucionais; e (ii) que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e o conteúdo da dignidade humana não devem ser equiparáveis, mesmo quando no caso concreto seus contornos coincidirem[vi]. Sob o ponto de vista da teoria relativa, dominante na doutrina alemã, a ideia do conteúdo essencial guarda relação com a noção de ponderação (Abwägung) e a proporcionalidade em sentido estrito, de modo que aquilo que concretamente estiver definido como conteúdo essencial deve ser encontrado em cada caso, para cada direito fundamental por meio deste sopesamento[vii].

Já para a visão absoluta da teoria do conteúdo essencial, a essência de cada direito é definida aprioristicamente, independentemente do caso concreto. Noutras palavras: prima facie[viii]. Cada uma dessas visões encerra alguma possibilidade de crítica[ix], não sendo este o foro adequado para aprofundarmos a discussão. Por uma perspectiva, ou por outra, o ponto é que não parece haver argumento forte o suficiente para identificar a possibilidade de execução da pena após a decisão condenatória de segunda instância e uma violação ao conteúdo essencial da presunção da inocência.

Isto porque, a rigor, garante-se de qualquer maneira a apreciação por duas instâncias da matéria fática-probatória. O sujeito continua ostentando a condição de inocente: na fase investigativa, durante a instrução criminal e até o julgamento de seu recurso. Nesse caso, também não haveria que se falar em execução provisória de pena, mas sim em execução definitiva, mudando-se o momento de trânsito em julgado. Durante todo este período o sujeito continua, ademais, possuindo o direito à ampla defesa, ao devido processo legal e ao duplo grau de jurisdição. Daí porque não faz sentido invocar violação indireta à presunção de inocência por uma suposta afronta a esses outros direitos em conjunto.

Em conclusão. O Supremo Tribunal Federal decidiu que, de acordo com o ordenamento jurídico em vigor, não é possível execução provisória e antecipada de pena criminal, pois isto implica em tratamento do acusado como culpado. Há violação ao artigo 283 do Código de Processo Penal, que não só é compatível, mas reflexo do disposto no artigo 5º, LVII da Constituição – direito à presunção de inocência. A decisão é correta na medida em que o trânsito em julgado, em nosso sistema recursal, abrange os recursos extraordinário e especial, com previsão constitucional. Por isso, simples alteração legislativa deixaria de considerar os dois recursos constitucionais. Esta decisão, de lege lata, em nada conflita com eventual proposta de emenda que transforme tais recursos em ações de revisão ou impugnativas, de lege ferenda.

Retirada a previsão constitucional desses recursos, a legislação infraconstitucional poderá regular o momento do trânsito em julgado. Não há, nisso, violação ao conteúdo essencial da presunção de inocência, que não seria abolida, mas apenas restringida, o que não é vedado pelo texto constitucional. Não há, enfim, real conflito entre Judiciário e Legislativo, senão um conflito aparente. Há possibilidade jurídica, mas resistência de grande parte da doutrina que talvez se mostre receosa diante de uma mudança de paradigma. O medo do novo, bem retratado por Camões, anunciava os perigos das grandes navegações portuguesas. “Ó maldito o primeiro que no mundo Nas ondas velas pôs em seco lenho, Dino da eterna pena do profundo, Se é justa a justa lei, que sigo e tenho! Nunca juízo algum alto e profundo, Nem cítara sonora, ou vivo engenho, Te dê por isso fama nem memória, Mas contigo se acabe o nome e glória.”, alardeia o Velho do Restelo.

Mas o novo, desconhecido ou temerário não significa vício de inconstitucionalidade!


i Dizem ainda: “Assim, a Constituição proíbe que seja objeto de deliberação qualquer proposta de emenda tendente a abolir ‘direitos e garantias individuais’. Isto quer dizer que, por meio de emendas à Constituição, os direitos e garantias fundamentais podem ser ampliados e desdobrados, mas – muita atenção – jamais abolidos, direta ou indiretamente, e, assim, não podem ser restringidos, porque restrição é também, para efeitos do disposto no artigo 60 §4º, IV, da Constituição, abolição violadora do princípio constitucional de proibição de retrocesso.” (STRECK, Lênio; CATTONI, Marcelo. PECs contra a presunção de inocência são fraude à constituição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-11/streck-cattoni-pecs-presuncao-inocencia-sao-fraude-constituicao. Acesso em 10.12.2019

ii BHACA E SILVA; SOUZA CRUZ; CRABRAL. Presunção de inocência, diálogos constitucionais e seus limites: a inconstitucionalidade e inconvencionalidade da reação legislativa à decisão do STF no caso da presunção de inocência. isponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/presuncao-de-inocencia-dialogos-constitucionais-e-seus-limites-a-inconstitucionalidade-e-inconvencionalidade-da-reacao-legislativa-a-decisao-do-stf-no-caso-da-presuncao-de-inocencia. Acesso em 10.12.2019

iii Assim, Hart: “Thus, it cannot seriously be disputed that the development of law, at all times and places, has in fact been profoundly influenced both by the conventional morality and ideals of particular social groups, and also by forms of enlightened moral criticism urged by individuals, whose moral horizon has transcended the morality currently accepted. But it is possible to take this truth illicitly, as a warrant for a different proposition: namely that a legal system must exhibit some specific conformity with morality or justice, or must rest on a widely diffused conviction that there is a moral obligation to obey it.”. HART, H.L.A. The concept of Law. 2 ed, 1994, p. 185; Kelsen: “Die Trennung des Rechts von der Moral bedeutet natürlich nicht – wie vielfach mißverstanden wird – die Ablehnung der Forderung, daß das Recht der Moral und insbesondere der Moralnorm der Gerechtigkeit entsprechen, daß das Recht gerecht sein soll.” (KELSEN, Hans. Was ist juristische Positivismus?, 1965, p.468.); Raz: “The law can be valuable, but it can also be the source of much evil. Not everyone agrees to these truisms, and there is nothing inappropriate in challenging them, or examining their credentials. They are, however, truisms in being taken by most people to be obviously true and beyond question. In other words, they express many people's direct reactions to or understanding of the phenomena, an understanding which is open to theoretical challenge, but has to be taken as correct absent a successful theoretical challenge.” (RAZ, Joseph. About morality and the nature of law. 2003)

iv “Soweit nach diesem Grundgesetz ein Grundrecht durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes eingeschränkt werden kann, muß das Gesetz allgemein und nicht nur für den Einzelfall gelten. Außerdem muß das Gesetz das Grundrecht unter Angabe des Artikels nennen”

v “In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem Wesensgehalt angetastet werden.”.

vi BVerfGE 109, 279 (311), Größer Lauschangriff): “(…)Verfassungsänderungen sind nicht an der Wesensgehaltsgarantie des artigo 19 Abs. 2 GG zu messen. Diese Garantie bindet den einfachen, nicht aber den verfassungsändernden Gesetzgeber. Eine Antastung des Wesensgehalts im Sinne von artigo 19 Abs. 2 GG kann zwar im Einzelfall zugleich den von artigo 79 Abs. 3 GG geschützten Menschenwürdegehalt eines Grundrechts beeinträchtigen. Der Wesensgehalt ist aber nicht mit dem Menschenwürdegehalt eines Grundrechts gleichzusetzen. Eine mögliche Kongruenz im Einzelfall ändert nichts daran, dass Maßstab für eine verfassungsändernde Grundrechtseinschränkung allein der durch artigo 79 Abs. 3 GG geschützte Menschenwürdegehalt eines Grundrechts ist”.

vii V. EPPING, Volker. Grundrechte. 4. Auflage. Springer, 2009, p.62: “Nach der Theorie vom relativen Wesensgehalt ist der esensgehalt nicht nur für jedes Grundrecht, sondern auch bei jedem einzelnen Eingriff zu ermitteln (…) denn in dieser konkreten Abägung ,,gewichtige Schutzinteressen den Eingrif legitimieren und der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit gewahrt ist: so ist der Wesensgehalt nicht angestatet.

viii Ibidem: “Derartige Unzulänglichkeiten vermeidet die Theorie vom Absoluten Wesensgehalt, die den Wesensgehalt als eine feste und vom Einzelfall unabhängige Größe ansieht (absolut). Was genau hierdurch geschützt ird, ist unklar und werde bisher noch nicht bestimmt.

ix Em sentido crítico, por exemplo, Leisner: “Darum muß auch die „proportionale Wesensgehaltstheorie" des BGH abgelehnt werden, weil es ja nur Sinn der Wesensbestandsgarantie sein kann, daß „Abwägen" der Verhältnismäßigkeit an einem absoluten Kern enden zu lassen”. Cf. LEISNER, W. Grundrechte und Privatrecht, Beck, 1960, p. 155.

 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!