Diário de Classe

Paradoxo do juiz das garantias e a resistência do senso comum

Autor

  • Rafael Fonseca Ferreira

    é advogado pós-doutor doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e da Universidade Feevale membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e sócio de Rafael Ferreira & Anadon Advocacia Consultoria e Compliance.

4 de janeiro de 2020, 8h00

Mal terminou o ano letivo, já temos motivos para olhar com pesar o fato de não estarmos em sala de aula para discutirmos mais um tema que está na pauta. No início de cada semestre sempre advirto os meus alunos que a disciplina de Hermenêutica e Jurisdição Constitucional tem um programa teórico básico, mas conta com um programa fático e paralelo quase que imprevisível, uma espécie de pauta bomba “do exercício”: as decisões do STF e a política e seus produtos legislativos.

Claro, isso é muito enriquecedor para o cotidiano da disciplina e, nos últimos tempos, em particular, como diz o Lenio, “de tédio jurídico ninguém morre neste país”. Certamente, o tema da “criação de tipos penais por interpretação” e o “Juiz das Garantias” estariam (estarão) lá, seja porque são questões que reivindicam uma crítica hermenêutica, seja porque são temas afetos à jurisdição constitucional.

O “pacote anticrime” materializado em lei[2] há alguns dias, já está judicializado em ADI neste tocante e por isso já se teria uma série de abordagens, mas nos chama mais a atenção a questão de fundo: “as garantias”; uma vez que, ao menos em nossa disciplina, não falamos de jurisdição constitucional sem render as devidas homenagens — aula a aula — à Constituição e suas garantias.

Nosso lugar de fala aqui não é o do processo penal, mas o Direito e a Constituição, embora o processo esteja contemplado de maneira direta ou indireta nessa fala pois ambos lhes são a condição de possibilidade. Vamos pinçar apenas a questão do “juiz das garantias” em sua linguagem, sem nos deter nos aspectos legais e impactos operacionais.

Pois bem, partimos do seguinte: a linguagem, as palavras são importantes! Até aqui, nenhuma novidade do ponto de vista coloquial ou lógico-explicitativo, mas, por outro lado, são hermeneuticamente importantes quando se busca compreender seu sentido, sem tornar-se dono dele. Notadamente, essa tem sido a cruzada de Streck[3] em sua originalidade nas duas últimas décadas, a partir da filosofia do/no Direito, problematizar que a linguagem não é algo que está à disposição do sujeito e que no Direito — e seus dilemas históricos e contemporâneos — esse é o ponto quase que fundamental para a (in)compreensão de suas crises nas diversas frentes: novas teorias da norma, das fontes, da decisão e da interpretação.

Por certo, nós, que integramos o Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) também acreditamos nisso, pensamos o Direito a partir dessa mirada hermenêutico-constitucional, desse “existencial”, de modo que, diante de determinadas situações, a perplexidade nos toma, com dilemas que parecem óbvios! No entanto, a obviedade tem uma série de complexidades sonegadas, as quais precisam ser desveladas, afinal, como disse Gadamer, a hermenêutica é o saber do quanto fica, sempre, de não dito, quando se diz algo[4].

Claro, um “juiz de garantias”, no atual quadro, penso que deve ser comemorado! Para isso, chamemos o VAR e se, concordarmos (mas ninguém é obrigado, é uma questão de horizonte de compreensão hermenêutica) que os fatos que vieram à luz — que estavam “atrás do óbvio” — com os vazamentos do The Intercept Brasil denunciando as relações repreensíveis entre a “força tarefa da lava a jato” e o juiz da causa nas fases pré-processual e processual, deveremos concluir que não é algo “normal”, senão uma violação clássica de garantias constitucionais, independentemente do motivo, sentido ou justificativa. Se no futebol, que é mero entretenimento não se admite, imagina se deveríamos compactuar com isso na democracia constitucional.

Mas, a questão não é essa, não devemos pegar carona pela janela. Essa discussão sobre o caráter inquisitório do processo penal, bem como do protagonismo do juiz e o papel do Ministério Público no processo é um debate antigo, mas não ultrapassado[5]. Dando de barbada, vamos acordar que é a partir da Constituição de 1988, ou melhor, a partir da Constituição de 1988 que se teve os instrumentos e as condições democráticas para a transformação do processo penal de inquisitório à acusatório a partir das garantias do devido processo legal e da consagração de direitos fundamentais materiais, ainda que parcela da dogmática e da comunidade jurídica não tenha assim compreendido.

Disso, numa “singela” afirmação, vamos dizer que o “Juiz das Garantias”, no atual quadro — 30 anos depois da promulgação da CF/88 é, em verdade, uma confissão de que, de lá para cá, nada em essência mudou, portanto. O “juiz das garantias” é a demonstração da decaída hermenêutica, de que a Constituição é apenas simbólica, de que não há compromissos efetivos com as garantias do devido processo legal, de que não houve fertilização da Constituição no processo penal e, por último e mais derradeiro (e com razão Lenio com a sua originalidade para o Direito), da dificuldade de suspensão de pré-juízos/pré-conceitos (Gadamer[6]) e, portanto, de que a linguagem não está à disposição do sujeito, de que o juiz no sistema inquisitório é e sempre foi o juiz do senso comum, “vítima” das narrativas óbvias, estigmatizadas e estereotipadas.

O “juiz das garantias” é, portanto, o juiz do paradoxo! O paradoxo de um juiz constitucional, não ser o juiz que observa garantias e que se deixa contaminar por pré-conceitos. Mais: o juiz constitucional que resiste às próprias garantias da Constituição! (Dando ideia, na mesma lógica, poderá vir a ser necessário também o Promotor de Justiça “Constitucional”). Daí porque nossa perplexidade em nos deparar com a resistência de associações de magistrados (AMB e Ajufe, p. ex.), ainda que nem todos se digam ali representados (vide aqui nota da Associação Juízes para a Democracia), apresentar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (vide ADI 6298) cujo o objeto principal é a declaração de nulidade constitucional do instituto do juiz das garantias (arts.3A a 3F da Lei), ancorada numa questionável fusão conceitual de juiz e juízo, dificuldades técnicas e operacionais e o violação do juiz natural?! Ora, não há qualquer sentido constitucional na ratio trazida na ADI, tem lógica, mas não tem integridade, uma espécie de “não-verdade”, ainda que venha encontrar eco no dividido STF.

Mesmo diante da paradoxalidade linguística do “juiz das garantias” apenas para a fase pré-processual, nossas dificuldades com a adoção prática do sistema acusatório tornam necessária essa atribuição-função de estatura constitucional, ainda que tenhamos que confessar que o juiz da instrução, ao menos linguisticamente, poderá continuar sendo, em tese, um juiz não-garantista. Enfim, são dilemas que a doutrina (garantista) terá que continuar desenvolvendo para assegurar o que a Constituição prometeu e ainda, passados 30 anos, não conseguiu seduzir em fazer cumprir. Por derradeiro: a luta agora parece um pouco “mais sofisticada” porque é, também, endógena, dentro da comunidade jurídica, contudo, alguém tem que lhes dizer que a Constituição está ficando nua e justiça sem vendas, sem filtros.


[2] Lei n. 13.964/2019.

[3] Cf. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, Verdade e Consenso, Lições de Crítica Hermenêutica, Hermenêutica e Jurisdição: diálogos com Lenio L. Streck entre outras obras e artigos.

[4] GRONDIN, Jean; GADAMER, Hans-Georg. . Retrospectiva Dialógica à obra reunida e sua história de efetuação (entrevista de Jean Grondin com H. -G. Gadamer). In ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans Georg; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 211.

[5] Lembrem a polêmica sobre a aplicação do art. 212 do CPP (alterado em 2008) e a atuação meramente complementar do juiz na conformação acusatória.

[6] Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 12. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: EDUSF, 2012, p. 360 et seq.

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    é sócio do Rafael Ferreira Advocacia, Consultoria e Compliance, pós-doutor, doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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