Opinião

Novos incentivos da Lei 13.969/19 são fruto de diálogo entre atores

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3 de janeiro de 2020, 7h21

Após 28 anos de existência do regime atual da Lei de Informática e de 12 anos da política para semicondutores e displays, foi aprovado pelo Congresso Nacional Projeto de Lei (PL) que cria novo regime de incentivos para esses dois setores, tendo como pano de fundo a necessidade de adequar a legislação brasileira ao resultado de contencioso no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Sancionada como Lei 13.969, de 26 de dezembro de 2019, essa legislação de iniciativa parlamentar reformula a política industrial para essas atividades e inova no sistema de incentivos tributários brasileiro. A construção do arcabouço renovado resultou de diálogo de interesses amplo entre diversos atores dos Poderes Legislativo e Executivo e do setor privado.

O processo legislativo é um grande diálogo no qual vários partícipes expõem seus posicionamentos de modo a chegar a um acordo, o qual se materializa em um ato normativo. Esse diálogo conta com a presença não só dos parlamentares, mas do próprio Poder Executivo, que pode envolver-se tanto de forma direta, com a apresentação de um PL ou com a edição de uma Medida Provisória (MP), como de forma indireta, por meio de tratativas informais no âmbito do Poder Legislativo ou da articulação formal feita pela Liderança do Governo.

Em especial, o debate legislativo também conta com os que serão impactados pelo ato legal, que tentam demonstrar como pode ser prejudicial ou benéfica a proposição. É um colóquio salutar que busca a convergência para um consenso nas soluções normativas, o que as faz mais legítimas e fáceis de aplicar. A intenção aqui é demonstrar a importância desse diálogo por meio de um exemplo concreto, a inovação para a construção de um novo regime tributário para tecnologias da informação e comunicação (TIC).  

A Lei de Informática[1], em termos simples, criou um benefício tributário relacionado ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) com prazo certo, ainda que prorrogado ao longo do tempo[2], e condições para que o contribuinte pudesse dele usufruir. Já o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores e Displays (PADIS)[3], nos mesmos moldes, continha benefícios relacionados ao IPI, ao PIS-Cofins-Importação e ao PIS-Cofins internos.

Independentemente dos desafios para a competitividade do setor, o cenário para a alteração legislativa atual decorreu da contestação dos benefícios tributários a partir de 2013 no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Após processo de consultas, realizadas pela via diplomática, a União Europeia (UE), em outubro de 2014, solicitou a instalação de um Painel relativo aos benefícios fiscais adotados pelo Brasil em vários programas de apoio aos setores automotivo, de exportação e de TICs. O Japão abriu posteriormente, em 2015, contencioso em termos iguais aos da UE, o que levou ao estabelecimento de um único Painel para as duas disputas (DS 472 e DS 497).

Em agosto de 2017, o Painel condenou, em geral, os benefícios concedidos. No que concerne aos programas de TICs, que incluíam a Lei de Informática e o PADIS, concluiu que havia taxação interna aos produtos finais e intermediários importados em excesso àquela aplicadas aos produtos nacionais, bem como discriminação contra importados, contrariando o princípio do tratamento nacional e dispositivos do Artigo III do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, na sigla em inglês) de 1994. Também entendeu que o PPB (Processo Produtivo Básico), uma das condições para que a empresa usufruísse do benefício, acabava por estabelecer um subsídio vinculado ao requerimento de uso de bens nacionais em detrimento dos importados, em violação ao Artigo 3.2(b) do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC).

O Brasil recorreu da decisão, contudo, o Órgão de Apelação da OMC manteve a conclusão do Painel de que os produtos de TICs intermediários e finais importados sofriam tributação superior na comparação com produtos finais nacionais semelhantes, configurando, especificamente, inconsistência com o Artigo III:2 do GATT 1994[4]. Ainda assim, o Brasil conseguiu reverter a condenação geral do PPB[5], que foi considerado etapa produtiva como condição para obter o incentivo, sem que fosse entendido como vinculado, necessariamente, ao uso preferencial de produtos nacionais. De todo modo, o benefício para TICs teria de ser extinto ou modificado de forma a não implicar mais a alegada preterição da mercadoria importada em face da nacional.

Tendo sido esgotados os processos de consultas, painel e apelação existentes, foi ajustado entre os participantes da contenda o prazo até 31 de dezembro deste ano para a implementação das decisões tomadas. Caso os ajustes não fossem feitos, o Brasil poderia sofrer retaliações, o que fez com que os Poderes Executivo e Legislativo envidassem esforços para conseguir cumprir com a decisão e, ainda, substituir um benefício que deveria durar até 2029.

Diante deste cenário, em 3 de setembro de 2019, foi apresentado o PL 4.805[6], voltado para modificar a Lei de Informática, ao qual foi apensado ao PL 4.944[7], que pretendia ajustar o PADIS. Uma questão que se impôs foi a natureza dos benefícios da Lei de Informática e do PADIS. Nesses casos, sabe-se que o art. 178 do Código Tributário Nacional (CTN) fixa a necessidade de se aguardar o prazo estipulado, pois trata-se de direito adquirido do contribuinte, reafirmado no Enunciado de Súmula 544 do STF. Adicionalmente, os atores envolvidos evidenciavam a necessidade de não haver aumento de renúncia fiscal, em face do contexto político atual.

Até a aprovação do Substitutivo ao PL 4.805, e de seu apenso, na Câmara dos Deputados, em 27 de novembro de 2019, foram feitas diversas tratativas. Esses acertos eram realizados entre parlamentares, de diversas orientações ideológicas e partidárias, e o Poder Executivo, assim como, na medida do possível, entre os contribuintes diretamente interessados nos benefícios. Enfim, para se chegar à versão final do Substitutivo, foram analisadas muitas possibilidades de solução, a qual não poderia infringir a decisão da OMC, nem gerar perda aos contribuintes que usufruem dos benefícios dos programas impugnados.

Durante o processo, o Poder Executivo ameaçou editar uma MP definindo o novo formato do benefício fiscal para o setor[8], mas acabou desistindo do feito e optou por negociar dentro do Poder Legislativo uma alternativa[9]. Para a aprovação na Câmara dos Deputados, teve de abrir mão de algumas exigências e foi ao Senado brigar por alguns desses pontos.

O PL apresentado na Câmara tratava de um crédito com natureza financeira que tinha como base para a definição do montante do crédito a receita líquida decorrente da venda dos bens e serviços legalmente definidos como TICs[10]. Na tramitação nesta Casa, foi aprovado Substitutivo (uma emenda que traz em seu corpo um projeto que substitui o original) na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) que também criava um crédito com natureza financeira que poderia ser compensado com débitos tributários do contribuinte, tendo como base o valor da operação decorrente da venda desses bens definidos de TICs[11].

A utilização do modelo de crédito financeiro tem como fundamentação a ressalva do Artigo III.8(b) do GATT 1994 segundo a qual as disposições sobre tratamento nacional deste Artigo não impedirão o pagamento de subsídios exclusivamente a produtores nacionais. Acredita-se que essa forma de subsidiar empresas que fabricam no País, ao invés dos produtos, seria compatível com as regras da OMC e com a diretiva do Órgão de Apelação.  

Um segundo Substitutivo foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados. Neste, o crédito financeiro teria por base para a definição de seu montante um dispêndio mínimo efetivamente aplicado em atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Como alternativa, as pessoas jurídicas beneficiárias poderiam gerar crédito com base no valor do investimento em atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação em TICs e no cumprimento do PPB. No Parecer de Plenário, foi salientada a “continuidade de diálogo profícuo com parlamentares, o setor privado e o governo”, para o aprimoramento do texto do Substitutivo[12].

A mudança foi drástica, pois a base para a definição do montante do crédito não estava mais na operação relativa aos bens produzidos, mas na pesquisa, no desenvolvimento e na inovação feita pela pessoa beneficiária. Foi uma evolução feita com base nos diálogos que, certamente, não representa todas as soluções discutidas, mas as que, em determinadas circunstâncias, foram definidas como mais viáveis, até o surgimento de outra.

No dia 13 de dezembro, a Mesa da Câmara dos Deputados recebe o Substitutivo do Senado, que mantinha as mesmas bases do texto aprovado na Câmara. O Parecer do Substitutivo do Senado afirmou que, “após intensas negociações com o Poder Executivo e com o intuito de viabilizar a aprovação de importante matéria em termos que atenda não apenas o interesse da indústria brasileira, mas também os regramentos internacionais, foram realizados ajustes, aprimoramentos e adequações no texto do PL[13].

O texto aprovado definitivamente na Câmara dos Deputados, em 16 de dezembro, teve como base o Substitutivo do Senado, trazendo de volta alguns dispositivos que haviam sido introduzidos naquela primeira Casa. O texto final, que foi sancionado como Lei nº 13.969, de 26 de dezembro de 2019, com poucos vetos, é resultado de um processo de aprimoramento do PL apresentado na Câmara em setembro, ainda que possam existir desafios no novo sistema de incentivos criado.

O diálogo entre os atores aqui citados, Poder Legislativo, Poder Executivo e a indústria envolvida, acabou por determinar o aprimoramento do Projeto inicial e criou inovação na forma de realizar políticas públicas de incentivo setorial, mediante o crédito financeiro que foi desenvolvido. A pendência frente à OMC foi resolvida por meio de discussão que implica não uma briga com vencedores e perdedores, mas uma conversa, às vezes acalorada, para se extrair uma solução mais adequada do ponto vista técnico, político, jurídico e da atuação na realidade econômica interna e externa.

 

 

 


[1] Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991.

[2] O benefício teve sua última prorrogação dada pela Lei nº 13.023, de 8 agosto de 2014, quando seu termo foi postergado para 31 de dezembro de 2029.

[3] Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007.

[4] Também o sistema de créditos e débitos brasileiro envolveria o pagamento de imposto adiantado que não é arcado pelas empresas que compram produtos intermediários semelhantes com incentivo, piorando a disponibilidade de fluxo de caixa das empresas que utilizam bens estrangeiros.

[5] Apenas os PPBs associados a outros PPBs foram considerados inconsistentes com o Artigo 3.2(b) do ASMC. Também foi considerado que o PADIS não implicava o requerimento de fossem usados bens nacionais em detrimento dos estrangeiros.

[6] PL 4.805, de autoria dos Deputados Marcos Pereira, Bilac Pinto, Vitor Lippi e Daniel Freitas, que altera a Lei n. 8.248, de 23 de outubro de 1991, e dispõe sobre a capacitação e competitividade do setor de informática e automação para estabelecer o tratamento tributário aplicável às empresas desse setor e dá outras providências. 

[7] PL nº 4.944, de autoria dos Deputados Vitor Lippi e Marcos Pereira, que altera a Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007.

[10] Os definidos no art. 16-A da Lei 8.248, de 1991.

[11] O Substitutivo da CCTCI, apresentado pelo Relator, Deputado André Figueiredo, pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1825479&filename=Tramitacao-PL+4805/2019>.

[12] O Substitutivo de Plenário, apresentado pelo Relator de Plenário, Deputado André Figueiredo, pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1839586&filename=Tramitacao-PL+4805/2019>. Foi proferido Parecer pela Comissão de Finanças e Tributação e pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania.

Autores

  • é mestre em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pós-graduada em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Diplomada em Tributación por el Centro Interamericano de Administraciones Tributarias (CIAT). Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil (RFB).

  • é consultor legislativo da Câmara dos Deputados e Doutor em Economia pela UnB.

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