Opinião

Revisão de contratos empresariais na Lei da Liberdade Econômica

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3 de janeiro de 2020, 7h38

A Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), resultado da conversão da Medida Provisória 881/2019, introduziu diversas alterações no ordenamento jurídico nacional para a promoção da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica. As modificações vêm a reboque de uma profunda alteração no cenário político brasileiro, com a chegada ao poder de um governo de viés liberalizante na seara econômica. Dentre referidas alterações, nosso Código Civil foi objeto de relevantes inovações de redação, no tocante à matéria dos negócios jurídicos e do direito dos contratos, com especial destaque à positivação da tipologia dos contratos empresariais. 

Nesse contexto, é de se louvar a referência do legislador a essa tipologia social, que não apenas é objeto de estudo na Academia, como também vem sendo amplamente utilizada em decisões judiciais e arbitrais. Como qualquer inovação, no entanto, a iniciativa legislativa – editada, de maneira açodada, diga-se, desde logo – introduz também uma série de novas discussões a serem enfrentadas pelos operadores do Direito, dentre as quais se afigura a questão da revisão dos contratos empresariais. Neste ponto, a despeito de nenhuma modificação à redação contida nos artigos 157, 317 e 478 do Código Civil, todos erigidos em homenagem ao princípio do equilíbrio contratual, o novo texto dos artigos 113, 421 e 421-A acaba por suscitar dúvidas no intérprete quanto a eventuais alterações na norma — se é que algo se deu nesse aspecto.

Em linhas gerais, como já tivemos a oportunidade de defender, em se tratando de contratos empresariais, o sistema, por uma opção política, veda a efetiva revisão do programa negocial pelo órgão jurisdicional. À exceção das hipóteses de alteração do valor da obrigação de dar quantia certa (CC, artigo 317), bem como de proposta da parte beneficiada (CC, artigo 479), a alteração de circunstâncias fáticas possibilita ao prejudicado tão somente a faculdade de pleitear a resolução do negócio (CC, artigo 478). Em mecânica não muito diversa, o desequilíbrio congênito das prestações também conduz, como regra geral, à extinção do vínculo contratual (CC, artigo 157). Por tudo isso, parecem redundantes — e, logo, desnecessárias — as referências ao “princípio da intervenção mínima” e à “excepcionalidade da revisão contratual” (CC, artigo 421, parágrafo único), bem como a determinação de que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada” (CC, artigo 421-A, inciso III). A contrario senso, esse último trecho pode, inclusive, levar o intérprete à conclusão de que, conquanto excepcional, admite-se a revisão dos ditos “contratos civis e empresariais” — o que não nos parece ser o caso.

O artigo 421-A, é bom que se recorde, tinha seu conteúdo, no texto da Medida Provisória convertida, externado nos hoje caducados artigos 480-A e 480-B, a refletir que o intento original era, de fato, trazer modificações ao modelo da onerosidade excessiva. De se aplaudir, nesse tocante, repise-se, a distinção conferida ao regime da alteração das circunstâncias fáticas de negócios de caráter empresarial. Nem tão necessário, todavia, a disposição sobre a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais. Afinal, em nada inova a lei, ao apontar pela presunção de algo que é usual; a intervenção legislativa, no espírito da própria Lei de Liberdade Econômica, deveria dar-se somente em hipóteses de possíveis abuso de uma parte em relação à outra. Melhor técnica, nesse aspecto, seria o reconhecimento expresso de que, mesmo em negócios de cunho empresarial, a alteração de circunstâncias poderia envolver situações de abuso de poder econômico, que, assim, poderiam ter eventualmente tratamento diverso do estabelecido para a generalidade dos casos de onerosidade excessiva entre empresários. Registra-se, ainda, nesse tocante, mais uma aparente redundância, com a inclusão, no dispositivo, dos conceitos de paridade e de simetria. Seriam tais conceitos diversos ou similares? Como a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipiend), cabe sempre ao intérprete buscar alguma eficácia ao que fora inserido na norma. Há, contudo, certa dificuldade em identificar as distinções entre os termos incluídos pelo legislador.

No inciso I do mesmo artigo 421-A, ao se estatuir que “as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução”, ficam dúvidas quanto à possibilidade de as partes virem a modificar o modelo da onerosidade excessiva. Indaga-se: poderão os contratantes derrogar algum dos requisitos legais (ônus excessivo a uma das partes, evento extraordinário e imprevisível e extrema vantagem a outra) para a incidência do suporte fático do artigo 478? Poderão ainda determinar como resultado apenas a resolução ou a revisão do convencionado diante da superveniência inesperada? Poderá ser contratada a modulação temporal dos efeitos da sentença de eventual processo judicial? Parece-nos que, diante da racionalidade limitada inerente à condição humana, seria contra legem uma derrogação da disposição legal de forma ampla e genérica. Eventual delimitação dar-se-ia para situações fáticas específicas, bem delineadas pelas partes no texto contratual, que, a bem da verdade, nem mesmo se trataria de caso de onerosidade excessiva. Afinal, se uma determinada hipótese fática já foi antecipada no texto contratual, que é naturalmente incompleto, não haveria verdadeiramente uma situação imprevisível e extraordinária, na dicção do artigo 478 do Código.

O inciso II de referido dispositivo, quando dispõe que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada”, a despeito do nítido intento de assegurar o cumprimento ao que fora pactuado, dá azo para que se levantem novas dúvidas quanto à aplicação do modelo da onerosidade excessiva aos negócios aleatórios. Há, na doutrina, discussões a respeito de tanto, parecendo-nos que a melhor orientação está com os que admitem a intervenção heterônoma, desde que superveniência fática atinja tão somente a álea anormal de tais negócios — nunca a álea estrutural. A forma como o dispositivo foi redigido pode conduzir à interpretação de que, a se reafirmar a observância à “alocação de riscos”, estar-se-ia a pretender afastar a incidência da onerosidade excessiva aos contratos aleatórios. Perdeu-se, assim, a chance de melhor se esclarecer essa questão e, assim, reduzir a insegurança jurídica nesse tocante.

Outro ponto de insegurança que a Lei de Liberdade Econômica poderia ter eliminado, quanto ao desequilíbrio econômico de negócios empresariais, refere-se às dúvidas suscitadas em torno da possibilidade de rescisão daqueles, nos casos de consentimento viciado pela lesão. Não é nenhuma novidade a opinião doutrinária acerca da impossibilidade de verificação do aproveitamento nos negócios celebrados por entes empresários. A despeito da expressa presunção de paridade e assimetria supramencionada, a Lei de Liberdade Econômica não dá indicativos sobre a aplicabilidade da norma contida no artigo 157 à relações empresariais. Novamente, deixou-se passar a oportunidade de regulamentação específica quanto a esta questão.

Ainda na linha de possíveis esclarecimentos legais, nota-se a completa ausência a um eventual dever de renegociar, ante à alteração do panorama fático sobre o qual as partes se basearam para delinear o programa contratual. Embora alguns defendam com veemência a obrigação (de meio) de que, no contexto de superveniência, as partes se engajem em negociações tencionadas à renegociação, a questão ainda é tormentosa. A nós, um tal dever, fundado na cláusula de boa-fé objetiva, dar-se-ia apenas em situações específicas, especialmente em negócios de caráter híbrido (arranjos colaborativos), em que o mea regis atur se encontra entremeado pelo nostra regis atur.

Por fim, pareceu-nos positiva a referência à “racionalidade das partes, consideradas as informações disponíveis” no momento da celebração do contrato, ao se tratar dos critérios de interpretação do negócio jurídico (CC, artigo 113, inciso V). Não obstante a busca pela “razoável negociação das partes sobre a questão discutida” possa suscitar uma abertura discricionária, por vezes indesejada, do julgador, fato é que a positivação do volume de informação disponível, como critério interpretativo, representa um norte para se desvendar litígios originados a partir da mudança de cenário fático. É que, dentre os conceitos jurídicos indeterminados contidos no artigo 478 do Código, é o da imprevisibilidade e extraordinariedade do evento que se sobressai como o de mais difícil concretização, parecendo-nos que a chave do problema estaria na aferição do cumprimento do ônus do empresário de se informar a respeito de determinada questão. Se, considerado o padrão de conduta do homem ativo e probo do segmento de mercado do caso concreto, determinado evento não foi previsto por falta de investimentos na busca por informação, a parte afetada não poderá buscar a resolução contratual, com base no modelo da onerosidade excessiva.

Em linha de conclusão, destacamos que a Lei de Liberdade Econômica representa, de fato, um avanço para o desenvolvimento da matéria dos contratos empresariais, especialmente diante da positivação de tal tipologia, já largamente reconhecida em doutrina e jurisprudência. Do ponto de vista da tutela do equilíbrio contratual nos negócios firmados entre empresários, parece-nos que as modificações pouco contribuem, de fato, para a solução de problemas nesse âmbito e, por vezes, a técnica legislativa falhou na regulamentação da matéria. Caberá, assim, aos Tribunais (Estatais e Arbitrais) e aos operadores do Direito, em geral, suprir os espaços que a norma ainda não logrou êxito em preencher.

Autores

  • é advogado do Lobo de Rizzo Advogados, tem experiência na condução de processos judiciais e arbitrais, com foco em questões de direito empresarial. É graduado em Direito pela USP; mestre em Direito Civil pela USP; doutorando em Direito Civil pela USP, 2020.

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