Retrospectiva 2019

Ano teve poucas mudanças significativas no Direito Eleitoral

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3 de janeiro de 2020, 7h00

ConJur
É uma proposta ingenuamente pretensiosa resumir um ano em algumas poucas linhas. Sobretudo quando o tema a ser abreviado é jurídico e diz respeito ao atual momento brasileiro, no qual as certezas não são apenas líquidas, como parecem fluir em forte correnteza. Tentar ordenar um objeto, qualquer que seja ele, no Direito, é confrontar uma jurisprudência frenética, uma legislação cambiante e uma doutrina dada a opiniões. Mas é a tarefa a que se propõe este artigo, de intenção prioritariamente (embora não exclusivamente) descritiva dos fatos relevantes para o Direito Eleitoral e partidário em 2019. 

Feita a ressalva, de largada, é preciso registrar que o Supremo Tribunal Federal, em março, ao julgar questão de ordem concernente ao Inquérito 4435, assinalou que compete à Justiça Eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. A matéria foi amplamente discutida por envolver eventual deslocamento de competência de processos relacionados a operações policiais muito divulgadas, especialmente a Lava Jato. Cogitava-se nos editoriais jornalísticos (essa nova fonte normativa), mas também nos manifestos de entidades associativas das categorias profissionais jurídicas (idem) que a competência deveria ser federal comum, pela expertise dessa Justiça. Mas, apesar disso, prevaleceu o entendimento arrimado no que disposto na parte final dos arts. 108, IV e 121 da Constituição Federal, que dão preferência à competência especial sobre a geral federal, e são secundados pelo Código Eleitoral (art. 35) e pelo que se contém no Código de Processo Penal (art. 78, IV). 

Também no Supremo Tribunal Federal, nos autos do ARE 1180658, foi operada uma discussão sobre o alcance da tese decidida no Tema 860 da Repercussão Geral. O enunciado da tese é: “A condenação por abuso de poder econômico ou político em ação de investigação judicial eleitoral transitada em julgado, ex vi do art. 22, XIV, da Lei Complementar n. 64/90, em sua redação primitiva, é apta a atrair a incidência da inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea d, na redação dada pela Lei  Complementar n. 135/2010, aplicando-se a todos os processos de registro de candidatura em trâmite.” No caso concreto, o prazo de 8 anos de inelegibilidade, fixado em lei, estava sendo contrastado com o de 3 anos, adotado na decisão transitada em julgado e anterior à norma atualmente em vigor. Por 3×2, a Primeira Turma entendeu que, mesmo exaurido o prazo fixado no título judicial, e mesmo havendo o candidato participado de uma eleição anterior, devidamente registrado, isso não obstaria que, no processo registral do pleito de 2016, no qual o prazo de 8 anos ainda estaria a incidir, deveria ser seu pedido de registro indeferido. 

Em dezembro, a Corte, ao julgar a ADI 6032, afastou a possibilidade de suspensão automática do registro do diretório regional ou municipal de partido político por decisão da Justiça Eleitoral que declara que o órgão partidário não prestou contas. A sanção somente pode ser aplicada após decisão definitiva decorrente de procedimento específico de suspensão de registro, como determina o artigo 28, III, da Lei 9.096/1995. 

No Tribunal Superior Eleitoral, um dos assuntos de maior destaque foi o das candidaturas femininas fictícias, “laranjas”. A prática de fraude na cota legal para a participação feminina nas chapas proporcionais levou o Tribunal a se deparar com a situação de ter de decidir a extensão da sanção decorrente da verificação de tal ilícito. Julgando o RESPE 19392, por apertada maioria de votos, 4×3, o ele decidiu manter a cassação de seis vereadores eleitos em 2016 na cidade de Valença do Piauí (PI). Os edis foram acusados de se beneficiar de candidaturas fraudulentas de mulheres que não chegaram sequer a fazer campanha eleitoral. 

Também dignas de nota foram as discussões sobre a validade de gravações ambientais como prova de cometimento de ilícitos eleitorais. O modo como a jurisprudência eleitoral tem se sedimentado merece anotação. No final de 2018, o TSE apreciou o AgRG em RESPE 39941, no qual, assimilando a posição do STF, proferida no RE nº 583937 QO-RG/RJ, reiterando que, a partir de 2016, o Tribunal passou a admitir a gravação clandestina feita por um dos interlocutores como prova da ocorrência de uma infração. Nesse julgado, porém, operou temperamento e ressaltou que, elementos da espécie podem afastar a valia probatória da gravação, tais como, entre outros, o fato de ser feito de uma residência, ou não haver ocorrido espontaneamente, mas por estímulo de um candidato etc. Já no RESPE 29873, julgado em agosto de 2019, o Tribunal foi peremptório em afirmar a validade desse tipo de gravação, mas a argumentação acompanhou a necessidade de análise da incorrência de exceções que fragilizassem o material captado. 

Outro julgado significativo, por dizer respeito ao processo de gênese dos partidos, foi o que resolveu dúvida sobre os meios de aferição do lastro de sustentação popular à nova agremiação. Apreciando a CTA 0601966-13, o TSE entendeu ser possível a utilização de assinatura eletrônica legalmente válida nas fichas ou listas expedidas pela Justiça Eleitoral para apoio à criação de partido político, desde que haja prévia regulamentação pelo TSE e desenvolvimento de ferramenta tecnológica para aferir a autenticidade das assinaturas. Por ora, nem uma coisa, nem outra, existem. 

O TSE também passou a trabalhar com julgamentos virtuais, conforme deliberado no PA 0600293-48. Trata-se de inovação implementada a partir de disciplina interna, sem autorização legislativa expressa, praticada a partir de 6 de dezembro de 2019, que visa a dinamizar os procedimentos da Corte, mas que, em rigor, é um passo que embaraça o acesso à prestação jurisdicional, na medida em que dificulta sobremaneira a atuação do profissional da advocacia. 

O Tribunal, ao analisar o RO 0601616-19, manteve, por 6×1, a cassação da senadora Selma Arruda (PODEMOS-MT) por omissão de declaração de fundos à Justiça Eleitoral, que foram aplicados, inclusive, no pagamento de despesas de campanha em período pré-eleitoral. Esses valores representariam 72% do montante arrecadado pela então candidata, o que caracterizou o abuso do poder econômico e o uso de caixa dois. A Corte determinou a convocação de novas eleições para o Senado, em Mato Grosso. 

O presidente da República e seu grupo de apoiadores iniciou o processo de fundação de um novo partido político, a Aliança pelo Brasil. A agremiação, quando cumpridas as formalidades próprias de verificação do apoio, se juntará às 33 já admitidas no país, a última delas o Unidade Popular, recentemente registrado. 

Em 17 de dezembro, um grupo de 26 parlamentares do Partido Social Liberal apresentou pedido de desfiliação alegando injusta discriminação por conta, sobretudo, de medidas disciplinares adotadas pela legenda em seu desfavor. Antes desse aforamento, em outubro, outros parlamentares, de outros partidos, como a deputada Tábata Amaral (PDT-SP) e os deputados Gil Cutrim (PDT-MA), Marlon Santos (PDT-RS), Felipe Rigoni (PSB-PE) e Jefferson Campos (PSB-SP), também foram ao TSE postular desligamento de suas siglas, alegando semelhante causa. As demandas tendem a ser um dos temas centrais de discussão em 2020. Isso porque de sua decisão, importantes contornos serão dados ao instituto da fidelidade partidária. A dimensão da obediência às diretrizes da agremiação e do poder disciplinar dessas associações políticas será, provavelmente, a principal mensagem desses julgamentos. 

No âmbito legislativo, a chegada das Leis 13.878, de 3.10.19, 13.877, de 27.9.19, 13.984, de 4.6.19 e 13.831, de 17.5.19, merecem ser sublinhadas. A Lei 13.831/19 fixou o limite de 8 anos para a duração dos mandatos partidários. Garantiu, também, aos partidos, autonomia para fixar o tempo de mandato, respeitado esse limite. Anotou que os órgãos estaduais e municipais que não hajam movimentado recursos estão desobrigados a prestar contas e de apresentar declarações fiscais. Apontou que a desaprovação de contas não enseja inscrição dos dirigentes no CADIN. Separou a responsabilização subjetiva do dirigente partidário das sanções à agremiação. Estabeleceu uma polêmica anistia aos partidos que inadimpliram os investimentos em candidaturas femininas nos exercícios anteriores a 2019, bem como às devoluções do que foi arrecadado de servidores públicos a título de doação, entre outras determinações. Esta última medida havia sido vetada pela presidência da República, mas foi restabelecida pelo Congresso Nacional. 

Lei 13.877/19 carreou inovações relevantes no sistema de ordenação partidária e na forma de prestação de contas. A mais adversada foi a autorização para que os recursos do fundo partidário sejam usados para pagamento de serviços contábeis e advocatícios, inclusive em qualquer processo judicial e administrativo de interesse partidário ou de litígio que envolva candidatos do partido, eleitos ou não, relacionados exclusivamente ao processo eleitoral. A crítica recai, fundamentalmente, na possibilidade de o interesse privado de filiados ser defendido com fundos de origem pública. 

Já a Lei 13.878/19 determinou que o índice para a atualização dos valores a serem gastos nas campanhas municipais será o INPC, a incidir sobre o os montantes de 2016. Também ordenou que onde houver segundo turno será permitido o acréscimo de 40% na despesa. E, finalmente, regulou o limite de 10% para gastos com recursos próprios do candidato na campanha em que concorrer. É o fim do autofinanciamento total. 

O Tribunal Superior Eleitoral começou a editar as resoluções de regência das eleições de 2020. No momento em que concluído este artigo (18.12.19), estavam aprovadas as minutas concernentes aos textos acerca de pesquisas eleitorais; cronograma operacional do cadastro eleitoral; modelos de lacres; procedimentos de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação; calendário eleitoral e Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e prestação de contas eleitorais. As demais normas regedoras deverão ser aprovadas e publicadas até 5 de março de 2020. 

Enquanto este artigo está sendo redigido, segue presente uma significativa polêmica: não se sabe qual será o valor do FEFC. Havia sido desejo de boa parte do Congresso que alcançasse R$ 3,8 bilhões. Ao que tudo indica, a proposta orçamentária contemplará algo em torno de R$ 2 bilhões, como inicialmente estimado pelo governo. Apesar disso, há a necessidade de se perguntar sobre a oportunidade e a conveniência de o ordenamento jurídico viabilizar o financiamento estatal de uma atividade essencialmente privada. 

Como se viu, apesar de todas as tensões sociais, de toda a polarização política, de todo o desejo de mudança expresso na renovação maciça dos mandatos saídos das urnas em 2018, o ano terminou sem qualquer progresso relevante na chamada Reforma Política, sendo pontuais as alterações normativas realizadas no exercício de 2019. Também a jurisprudência, apesar dos julgados mencionados, não alcançou nenhum aspecto estrutural do sistema eleitoral, político e partidário. Os alicerces e os pilares desse universo, com seus defeitos e virtudes, serão praticamente os mesmos para as eleições de 2020, e, com isso, o direito eleitoral, por suas fontes formais, pouco contribuiu para uma evolução na sua própria identidade no ano vindouro. 

As eleições de 2020, contudo, trarão uma positiva experimentação: a implementação da regra aduzida pela Emenda Constitucional 97/17, que extinguiu as coligações proporcionais. Com isso, os grêmios políticos terão de formular uma identidade própria, a fim de se distinguirem uns dos outros. As coligações tumultuavam ideologicamente os programas concorrentes e fomentavam, enormemente, o personalismo, traço nocivo da cultura política brasileira.  Por fim, vale destacar a inclusão de todos os partidos na disputa pelas vagas remanescentes (sobras), observado o desempenho mínimo por candidato. 

É possível que, nos autos do RE 1238853, em 2020, o STF venha a decidir acerca da possibilidade de candidaturas avulsas. Já se realizou a audiência pública respectiva, na qual as teses em disputa foram expostas por variados e qualificados segmentos da sociedade. É duvidoso, porém, que tenha a Suprema Corte condições de legitimação para deliberar sobre um tema de tamanha envergadura, que demandaria para ser implementado uma série de reformas constitucionais de ajustamento. O evidente desespero com a prática política brasileira atual estimula esse tipo de projeto revolucionário, manejado pela via judicial. Contudo, a descrença e o desânimo, por maiores que sejam, não podem, de modo algum, turvar a fé na institucionalidade. Uma ordem política democraticamente hígida, virá, inevitavelmente, desde que preservado o sol do regime representativo desenhado pela Constituição de 1988. Nesse modelo, gostemos ou não, os partidos políticos são peças imprescindíveis. 

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