Opinião

Democracia — o que temos a aprender com Botsuana?

Autores

  • Aluizio Jácome

    é defensor público titular da 3ª Defensoria criminal de Juazeiro do Norte(CE). Mestre em Direito Constitucional pela Unifor (2014). Bacharel em direito pela Universidade estadual da Paraíba (2004).

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

1 de janeiro de 2020, 9h45

Findo o ano de 2019, e encerrado o primeiro quarto do mandato do presidente Jair Bolsonaro, cumpre, além dos comuns prognósticos econômicos, fazer um balanço de um peculiar aspecto político-jurídico — a edição de decretos e medidas provisórias — relacionando com o avanço ou retrocesso da democracia do período.

Considerou-se, metodologicamente para fins de estudo, quantitativamente a edição de decretos presidenciais, especialmente em comparação com anos e mandatos pretéritos, e qualitativamente a edição de medidas provisórias, relativamente à matéria legislativa sensível vinculada, considerada para tanto os Códigos, Consolidações e legislação de impacto. Esse olhar inicial não pretende trazer conclusões peremptórias e categóricas, mas tão-somente fomentar o debate e estimular a análise crítica destes institutos legiferantes pelo Poder Executivo e sua relação com os valores democráticos.

À primeira vista estarrece a quantidade de decretos editados no período em comparação com os anos anteriores, em 2019 o presidente da República editou 534 decretos, num incremento de quase 34% em relação aos 399 Decretos do ano de 2018, que já haviam representado um aumento de mais de 28% em relação aos 310 decretos editados em 2017.

O gráfico[1] a seguir ilustra bem a situação: 

reprodução

Um estudo mais aprofundado poderia revelar as razões de ordem social, política ou pragmática do uso desse instrumento normativo, mas o fato é que a sua crescente utilização pode enfraquecer o debate e controle sociais, até mesmo em sede parlamentar, ou somente ocorrer a posteriori e com os seus consequentes constrangimentos (sociais e institucionais), como foi o caso do Projeto de Decreto Legislativo 233, de 2019 que sustou o Decreto 9.785, de 7 de maio de 2019, mais conhecido como Decreto de Armas[2], cujo objetivo primordial era flexibilizar o acesso da população às armas de fogo.

A justificativa do senador Randolfe Rodrigues bem ilustra a situação de norma infralegal usurpadora das funções do Poder Legislativo:

Ora, o Decreto, ao flexibilizar as regras de porte e aquisição de armas e munições aos colecionadores, atiradores e caçadores, põe em risco a segurança de toda a sociedade e a vida das pessoas, sem amparo científico sobre a medida, indo de encontro à construção de uma sociedade solidária, em ato que excede o mero poder regulamentar, em verdadeira usurpação ao poder de legislar do Congresso Nacional, violando, desta forma, garantias básicas do Estado Democrático de Direito. Assim, não há dúvida de que a hipótese envolve ato do Poder Público altamente lesivo a preceitos fundamentais da Constituição de 1988.”[3]

A verdade é que a vontade frustrada de agradar o eleitorado com o cumprimento da promessa de campanha de flexibilização do acesso às armas, objetivo do decreto como bem salientado pelo ministro-chefe da Casa Civil[4], somente teria o condão de gerar hostilidade ao Parlamento por parcela da população.

Por outro lado, o baixíssimo nível técnico-jurídico demonstrado em algumas iniciativas, como muito bem retrata o citado Decreto 9.785, de 7 de maio de 2019, tem efeitos colaterais que vão inclusive na contramão do discurso presidencial de endurecimento com a criminalidade, pois teve o condão de desclassificar condutas criminosas enquadradas como hediondas em tipos penais de menor gravidade, que podem, inclusive, ensejar prescrições, extinções antecipadas de punibilidade pelo cumprimento, progressões de regime mais brandas, liberdades condicionais em menor tempo, troca de regimes prisionais para o aberto, substituições de pena de prisão por restritiva de direitos e, até, a própria suspensão condicional do processo[5].

No que tange às Medidas Provisórias, adotou-se uma análise qualitativa pelo motivo de que a oscilação do número de utilização pode variar por diversas razões, como, por exemplo, o efeito do precedente da ADI 4.048[6] , passando o STF a entender que a utilização de Medidas Provisórias para abertura de créditos extraordinários deve observar os requisitos constitucionais de imprevisibilidade e urgência da despesa, caindo de 16,08% entre os anos de 2002[7] e 2007 para 6,08% entre os anos de 2008 e 2019 o percentual anual de MPs tendo como objeto a abertura de créditos extraordinários.

A tabela8 a seguir mostra os números:

Ano MPs de Crédito Total de MPs
2019 4 46
2018 5 56
2017 2 50
2016 12 56
2015 6 42
2014 6 29
2013 8 35
2012 9 44
2011 5 36
2010 8 41
2009 5 26
2008 5 40
2007 20 69
2006 27 66
2005 17 42
2004 10 73
2003 5 57
2002 22 80

Como o presente artigo tem por escopo uma investigação inicial e não categórica da situação, sendo impossível, pelo menos nesse momento, analisar outros fatores jurígenos da utilização da espécie normativa, preferiu-se analisar, como já dito anteriormente, as Medidas Provisórias editadas de modo qualitativo, ou seja, segundo um critério de afetação de legislação considerada sensível.

Embora se reconheça que governos anteriores tenham se valido de Medidas Provisórias para alteração de Códigos[9], nenhum alterou a legislação brasileira aqui dita sensível de forma tão numerosa e ostensiva.

É bom destacar que a edição de Medida Provisória não pode olvidar dos seus requisitos de relevância e urgência previsto na Constituição Federal, sendo o seu uso deveria sempre estar revestido de caráter de excepcionalidade, pois frustra, em um primeiro momento, as discussão parlamentares(controle social) sobre a sua real necessidade. Por isso, bem explicita Celso Bandeira de Mello que a utilização desse tipo de regramento afeta momentaneamente a separação dos poderes:

“O que justifica a edição dessa espécie normativa, com força de lei, em nosso direito constitucional, é a existência de um estado de necessidade, que impõe ao Poder Público a adoção imediata de providências de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação em face do próprio periculum in mora que fatalmente decorreria do atraso na concretização da postação legislativa (…). É inquestionável que as MPs traduzem, no plano de organização do Estado e na esfera das relações institucionais entre os Poderes Executivo e Legislativo, um instrumento de uso excepcional. A emanação desses atos pelo Presidente da República configura momentaneamente derrogação ao princípio constitucional de separação dos poderes.”[10]

Pois bem, verificou-se em 2019 a alteração, via Medida Provisória, da Consolidação das Leis do Trabalho (MP 873/2019, MP 881/2019 – Liberdade Econômica e MP 905/2019), do Código Civil(MP 881/2019 – Liberdade Econômica), além da extinção do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por veículos automotores de via terrestre – DPVAT(MP 904/2019), diploma com eficácia suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal.

Merecem destaque as sucessivas alterações da Consolidação das Leis do Trabalho, na esteira da reforma trabalhista implementada pelo governo Michel Temer (Lei 13.467/2017), mormente o amplo regramento do Contrato de Trabalho Verde e Amarelo(MP 905/2019). São reconhecidas as altas taxas de desemprego entre os jovens, bem superiores à média nacional, no entanto, a MP isenta os empregadores das contribuições destinadas ao Sistema “S” e dispara o gatilho de um possível sucateamento deste e, consequentemente, da educação profissionalizante no país[11].

A grita em razão da baixa produtividade da mão-de-obra nacional cede lugar, portanto, a uma possível medida de ajuste fiscal, quiçá em reconhecimento de insuficiência da reforma da previdência nesse campo. Sob a égide do Estado Democrático de Direito seria preferível que a sociedade debatesse amplamente os destinos do Sistema “S”, claramente afetados pela MP.

O mesmo se pode dizer em relação à extinção do DPVAT (MP 904), cuja Exposição de Motivos[12] do Ministro Paulo Guedes salienta a existência de atendimento universal e gratuito pelo sistema único de saúde, inexistente quando da criação do DPVAT em 1974, mas da forma como foi veiculada, impede o debate e a contraposição de outros argumentos, como o aumento populacional brasileiro – quase triplicado – ou desde — e o surgimento de enfermidades não existentes naquele ano, como a AIDS, gripes de diversos tipos, chicungunha, zika, e inúmeras outras moléstias.

O deficit democrático das medidas assustam tanto quanto as declarações dos membros do governo. A sociedade brasileira firmou um pacto em 1988, de natureza social ou social-democrata, e e sua redução extrema ou substituição por outro modelo deveria passar pelo crivo da população na outra seara de representação política, o Parlamento. A eleição do governo por cerca de um quarto da população — mesmo com o discurso de enterrar o modelo econômico social-democrata[13] — não o exime de jogar segundo as regras democráticas, submetendo suas intenções ao crivo das decisões políticas dos representantes do povo!

Em conclusão parcial, pode-se afirmar que o governo Jair Bolsonaro oscila entre a democracia plebiscitária, cujos riscos já foram antecipados por Max Weber[14] há mais de um século, como no caso do apelo às promessas eleitorais feitas em 2018 relativas ao Estatuto do Desarmamento, como se a cada mandato presidencial o pacto constitucional pudesse ser substituído pelo programa de campanha do candidato vencedor, e o governar solipsista por meio de Decretos Presidenciais e Medidas Provisórias.

Para finalizar, e agora olhando para frente, prospectando o ano que se inicia, convém ressaltar que a democracia — tal e qual se concebe hodiernamente — não sobrevive sem debate parlamentar, e se pode, neste aspecto, colher inspiração na geograficamente pequena Botsuana, país no sul da África, em que o governo e o parlamento vêm, mesmo com todas as dificuldades do jogo político e social (ou empresarial), debatendo sua lei anti-tabaco[15], caminho diametralmente oposto na forma e no fundo tomado pelo Brasil, em que o Ministro da Justiça ordenou a formação de Grupo de Trabalho para estudar medidas de desoneração tributária do cigarro nacional, visando a concorrência com o cigarro paraguaio, sem se atentar para as consequências para a saúde pública[16] e os alertas da Organização Mundial de Saúde[17].

Por mais imperfeições e contradições que se possa diagnosticar no Congresso, esse não pode ser pretexto para se aniquilar as instituições, pois qualquer análise superficial verá que tais pechas também são encontradiças nos outros Poderes da República e também nas instituições do Estado, da Polícia aos Tribunais de Contas, do Ministério Público às Procuradorias, da Defensoria Pública ao Sistema de Saúde. O Estado é tão imperfeito quanto o somos nós e as pessoas que o compõe!

Um 2020 melhor que 2019 para a nossa ainda jovem democracia!


1Fonte: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/decretos1

2https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136635

3https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7949547&ts=1567532316240&disposition=inline

4“… porque ao longo da campanha Vossa Excelência [Presidente da República] defendia de que nós deveríamos, ao respeitar a decisão da população brasileira, viabilizar as alterações legais necessárias e assim foi feito no Decreto que estendeu e facilitou o porte de arma e no momento que Vossa Excelência [Presidente da República] vai em breve assinar no Decreto de hoje, aonde reconhece, revisa e salvaguarda o direito de que todos aqueles que são colecionadores, atiradores e caçadores têm de poder ver o seu legítimo direito , quer da prática esportiva, quer do aperfeiçoamento ou quer apenas do seu lazer, eles possam poder transitar livremente no Brasil, sem haver nenhuma amarra legal, apenas aquilo que salvaguarda a segurança dos seus semelhantes…”(Discurso proferido pelo Ministro-chefe da Casa Civil por ocasião da cerimônia de assinatura do Decreto).

5https://www.conjur.com.br/2019-mai-13/streck-bheron-veja-punitivistas-sao-abolicionistas

6Explica-se: A ADI 4.408 representou mudança jurisprudencial pelo Supremo Federal, antes este entendia que as leis orçamentárias não seriam passíveis de controle de constitucionalidade por serem consideradas pela corte como leis apenas em sentido formal ou de efeito concreto, ausentes da abstração e generalidade necessárias para o exercício do controle por via de ação direta(ADI 1.640), o precedente da ADI 4.048 firmou o entendimento de que a utilização de Medidas Provisórias para abertura de créditos extraordinários deve atender os requisitos constitucionais de imprevisibilidade e urgência da despesa.

7Tomou-se como marco inicial o ano de 2002 pois foi o primeiro ano completo após a promulgação da Emenda Constitucional N. 32/2001 que impediu as reedições sucessivas de Medidas Provisórias.

8Fonte: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/medidas-provisorias

9Nesse sentido: MP 863/2018(Código Brasileiro de Aeronáutica), MP 790/2017(Código de Mineração), MP 699/2015 e MP 673/2015(Código de Trânsito), MP 646/2014(Código de Trânsito), MP 415/2008(Código de Trânsito), MP 234/2005(Código Civil), MP 104/2003(Código Civil) e MP 79/2022(Código Civil).

10MELLO, Celso Antônio Bandeira de: Controle Jurisdicional das Medidas Provisórias. Revista dos Tribunais 758 – 11, 15 dez.1998.

11Vale ressaltar que até setembro só o SESI já tinha 165.667 matrículas realizadas entre o ensino infantil e a educação continuada. http://www.portaldaindustria.com.br/sesi/canais/transparencia/gratuidade/

12http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-904-19.pdf

13A seguinte declaração não deixa dúvida de que o ministro Paulo Guedes acredita que o Brasil assumiu um modelo social-democrata em 1.988: https://istoe.com.br/brasil-vai-enterrar-modelo-economico-social-democrata-diz-paulo-guedes/

14 WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Rio de Janeiro: Cultrix, 1998.

15http://www.mmegi.bw/index.php?aid=83496&dir=2019/november/15.

16https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/03/moro-cria-grupo-para-discutir-reducao-de-impostos-sobre-cigarros-e-entidades-reagem.shtml.

17https://www.inca.gov.br/observatorio-da-politica-nacional-de-controle-do-tabaco/precos-e-impostos.

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    é defensor público titular da 3ª Defensoria criminal de Juazeiro do Norte(CE). Mestre em Direito Constitucional pela Unifor (2014). Bacharel em direito pela Universidade estadual da Paraíba (2004).

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    é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional. Membro Consultor da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do CFOAB.

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