Diário de Classe

A novíssima e paradoxal anarquia de Estado

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29 de fevereiro de 2020, 8h00

“Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que não se deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir nem maltratar os inferiores, porque isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno? É isso? […] Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, ele já sabe […] Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo das caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do Céu…”.

A citação acima reproduz a fala de Afonso da Maia, no brilhante Os Maias, ao abade que insistia em ensinar as doutrinas do Catolicismo Romano a seu neto, o protagonista da obra máxima de Eça de Queiroz, Carlos da Maia: bem-criado, culto, Carlos não precisaria, segundo o avô, temer qualquer tipo de punição — no caso da obra literária, o inferno que tanto assombrava a Lisboa do século XIX — para viver com retidão.

Ele saberia, sem a necessidade destas ameaças, diferenciar o certo do errado, o justo do injusto, o bem do mal. Para Afonso, não haveria a necessidade da intermediação da Igreja não apenas no caminho da salvação, mas, ainda, neste mundo mesmo. “Por virtude”, diria ele (e por princípio, poderia sublinhar), Carlos saberia a “resposta correta”.

Como percebem aqueles que passaram pelas muitas páginas do texto, originalmente publicado em sistemáticos quadros nos jornais da época (daí o subtítulo, Episódios da vida romântica), a virtude esperada pelo avô, ou o princípio,como pontuamos, figura não como uma espécie de mecanismo a facultar todo um catálogo interpretativo a Carlos, permitindo ao personagem a criação de teses subjetivamente produzidas pela própria consciência a sustentar suas ações, fossem quais fossem. Ao contrário, indica um fechamento, um limite a essas mesmas ações. No ideário do Avô, ele deveria guiar-se pelos caminhos historicamente consolidados por aquela comunidade – como de fato guia-seafinal, ainda que relutantemente a criar hipóteses diante do trágico romance incestuoso com sua própria irmã.

Na leitura aqui proposta, este talvez seja o grande ponto d’Os Maias. Princípios. Revolvendo o chão linguístico da magistral obra de Eça, entre a ácida crítica à sociedade lisboeta do século XIX através de suas periféricas personagens,é, afinal, o que se desvela. Na liberalizante ilha que molda a centralidade da trama, há um caminho — o melhor caminho, o adequado caminho — indicado não por um viés teleológico – como seriam as tais “caldeiras de Pero Botelho”, cuja finalidade última seria justamente evitá-las — mas um rumo acenado por uma intersubjetividade que carrega de sentido um determinado contexto. Justamente por isso, o princípio não é de uma ou outra personagem. É de todos que daquele contexto fazem parte. Também por essa razão, não abre interpretações. Ao contrário, fecha-as, como já se disse, permitindo um significativo atravessamento da Literatura pelo Direito ou, mais especificamente, pela Crítica Hermenêutica do Direito, projetada por Lenio Streck ao longo de cerca de duas décadas.

Àqueles já familiarizados com esta matriz teórica, sabe-se que a ideia de “princípio” é bastante significativa, constituindo verdadeiro alicerce ao conceito de Direito. Em seu Dicionário de Hermenêutica (originalmente publicado em 2017, mas já caminhando para sua segunda edição em 2020)[2],Streck pontua que o vocábulo — do Latim, principium — significa início, origem, causa (primeira). Já no Grego, aos filósofos pré-socráticos, era a arché, ou seja, “aquilo que unificaria a existência real estando presente em todos os momentos do ser”. Já para os filósofos políticos — continua Streck — essa mesma raiz passou a significar, distintamente, poder, autoridade, mando, ordem. Não por outra razão é o sentido de “anarquia” (an + arché), ou seja, “uma realidade social sem a presença do Estado, isto é, uma negação radical de qualquer poder externo, autoridade (princípio), como direcionador de condutas”[3].

Em caminho bastante próximo, ao observar os “críticos da democracia”, Robert Dahl vai sublinhar que, desta mesma combinação vocabular, decorre o sentido de “sem governante”. Ainda que não se verifiquem sistematizações sobre o anarquismo — o que, de algum modo, a existência soaria mesmo paradoxal —, avança o já falecido professor da Universidade de Yale afirmando que o pressuposto angular do anarquismo éo de que o Estado — coercitivo que é — é mau[4].

Talvez por esse motivo, Gian Mario Bravo[5], similarmente, descreveo anarquismo como um contexto em que há o ideário de “libertação de todo poder”, fosse qual fosse, diante de uma utópica pulsão, verificada desde a Antiguidade Clássica, acompanhando, de vários modos, o desenvolvimento sociocultural da humanidade. Assim, teria alcançado, em sentido moderno, dois grandes momentos: a Revolução Francesa — como bem demonstra, ainda que sob outro enfoque, o brilhante Cidadãos, de Simon Schama[6], ao descrever bastidores do movimento revolucionário — e o desenvolvimento industrial, em que há uma série de prospecções de fundo intelectual, questionando todo um conjunto de promessas não cumpridas pelo liberalismo tanto econômico quanto político. De todo modo, Bravo aponta uma espécie de núcleo a projetar unidade a estes dois momentos tão distintos em relação à anarquia: a negação da autoridade, da lei e, por fim, do próprio Estado.

É verdade que, em boa medida, pelo que até aqui se observou, a premissa de justificação do anarquismo (Estado, por definição, mau) perde muito do sentido com o avanço dos regimes democráticos, sobretudo, com o Constitucionalismo Contemporâneo, e todos os compromissos voltados a diluir os riscos de uma determinada comunidade política(o grande problema social da Revolução Industrial) e a limitar a autoridade do próprio Estado (ponto de tensão das Revoluções Liberais frente ao Absolutismo). Ou seja, o Estado Democrático  de Direito — ainda que frente a suas atualíssimas limitações em relação a programas de bem-estar social, à corrupção, à impunidade e ao pernicioso ativismo judicial (para citar, como exemplo, apenas alguns de seus muitos problemas, sobremodo, no Brasil) — já não mais se submete, exclusivamente, à autonomia, como antes, de seus atores — em tese, os genuínos possuidores dos predicativos desse mesmo Estado (mau). É dizer: ainda que o Estado não seja perfeito — como se fez questão de sublinhar — e que suas históricas instituições (agora democráticas) não alcancem essa romântica espécie de nirvana estatal, há todo um sistema voltado não apenas a limitar o arbítrio do Estado como, também, a enfrentar as insuficiências verificadas a partir dos angulares momentos que move(ra)m esse anarquismo dito moderno.

De toda forma — e esse é o ponto que particularmente intriga –, é justamente diante deste contexto (histórico, falhado e imperfeito, mas, sobremodo, também de limite ao poder e de finalidades sociais) que brota uma série de justificações para, ainda, refutar o Estado, a lei e a autoridade — mas já não mais daqueles que o operam, mas da contramajoritária linguagem pública que caracteriza as democracias. Ou seja, alcança-se contemporaneamente o mesmo ponto nuclear verificado por Gian Mario Bravo ao fixar o anarquismo na modernidade, mas com uma decisiva diferença: não se refuta a autoridade do Estado através de seus atores, mas, sim, sua autoridade através do Estado de Direito em favor de seus próprios atores, sobretudo — mas não exclusivamente — políticos[7] — como bem mostra, por todos, o recente exemplo envolvendo protestos contra o Congresso a favor do líder executivo.

Desse modo, como uma espécie de carta branca autorreferenciada em nome de um projeto político que ultrapassa princípios historicamente fixados, essa contemporânea e antropofágica anarquia projeta, sem constrangimentos, “correções” à margem de nossas instituições democráticas. São novíssimas proposições anárquicas a negar a lei e a autoridade do próprio Estado Democrático de Direito (sempre acima da do ator, contramajoritariamente limitada — nunca é demais lembrar —nas democracias). Inaugura-se assim, para além de Dahl ou Bravo, um novo tipo anárquico. É aquele que nega e refuta, paradoxalmente, o edifício mesmo que limita um poder que, arbitrariamente exercido, justifica a própria anarquia.É um contraditório tipo novo, como se vê, para um velho e ultrapassado modelo autoritário, razão pela qual, diante de nossas móveis e históricas instituições, o momento seja, mesmo, de oportuna atenção.

 


[1] Doutor em Direito (Unisinos), em estágio pós-doutoral (Capes/PNPD) na mesma instituição.

[2] DicionárioSTRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.

[3] Dicionário 244.STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 244.

[4] Ver especialmente a segunda parte (Os críticos de oposição).DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

[5]BRAVO, Gian Mario. Anarquismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Volume I.  11ª edição. Tradução de Carmen Varriale, GaetanoLo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e RenzoDini. Brasília: Editora UnB, 1998.

[6]SCHAMA, Simon. Cidadãos. Uma crônica da Revolução Francesa. Tradução de HildegardFeist. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[7] Em diálogo muito semelhante ao discurso populista, como já procurei demonstrar (aqui). Afinal, ao tentar reescrever constituições para preencher a lacuna da demanda não atendida, o líder populista nega, antes, a autoridade do Estado de Direito, como venho discutindo com a professora Clarissa Tassinari (PPGD/Unisinos), no âmbito do Projeto (FAPERGS) Estado, Políticas Públicas e Populismo.

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