Direito Comparado

O dever de informar e o direito à informação — a perspectiva do Direito Civil (parte 2)

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26 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca
Na semana passada, a parte 1 desta minha reflexão tratou do dever de informar e do direito à informação sob a perspectiva do direito do consumidor, razão pela qual recomendo a sua leitura a título de contraponto com a parte abordada hoje. Passo, agora, a alguns comentários que, a meu sentir, são importantes para compreender a informação sob outro prisma: o dos contratos de direito civil.

Ressalvados alguns contratos em espécie, a informação, no direito civil, não assume a mesma extensão que no direito do consumidor. Neste último,está em jogo o interesse de vulneráveis e hipervulneráveis em favor dos quais milita um forte e amplo direito à informação, o qual é alimentado, a seu turno, por um acentuado dever de informar atribuído ao fornecedor (isso ocorre porque, funcionalmente, a informação confere uma liberdade de escolha mais consciente ao consumidor, protegendo-lhe,como polo mais frágil da relação contratual,  em seu direito básico à informação).

Judith Martins-Costa destaca o notável papel dos deveres informativos na colmatação de lacunas, os quais apresentam polimorfismo e relevante abrangência (em sentido amplo: informar, avisar, relevar, esclarecer e aconselhar; e, em sentido estrito: a informação pura); além de, amiúde, apresentar-se o dever de lealdade subsumido no dever de informar (“o dever de lealdade engloba o de veracidade, mas vai além, pois lealdade é mais do que veracidade: é contribuir, positivamente, com o interesse alheio e, no caso das sociedades, com o interesse comum”).[1]

Como regra legal amparada numa obrigação acessória,a informação pode concretizar-se como decorrência do dever de cooperação, possibilitando às partes uma melhor fruição do contrato.Quando figurar como dever anexo de conduta, o dever de informar manifestar-se-á ao longo do contrato, já que,possivelmente, não virá previsto de modo expresso nesse instrumento.

Existe, portanto, uma diferença entre o dever de informar expresso no contrato(a informação decorre de uma necessidade previamente conhecida pelas partes) e o dever de informar previsto em lei (a informação é inerente ao contrato em questão). Tal distinção evita que o intérprete se equivoque ao diferenciar a obrigação de informar expressamente estabelecida pelas partes daquela obrigação de informar decorrente da boa-fé objetiva e não prevista no contrato (derivada do arigo 422 do Código Civil de 2002), sem falar naqueles contratos que já trazem em seu bojo a informação como um dever primário (como nos serviços de advocacia e de consultoria).[2]

No direito civil, a teoria contratual propriamente dita, que,embora tenha se modernizado para lidar com a crescente hipercomplexidade (e ainda tem muito para se modernizar ou mesmo para resgatar de suas origens)[3], continua sendo,com raras exceções,um domínio da autodeterminação e da igualdade entre as partes. Por exemplo, nos contratos de lucro,as relações podem conduzir-se sem maiores ingerências alheias, seguindo o fluxo necessário para, deduzidos os investimentos e as despesas suportadas por determinado período, obter resultados positivos e, portanto, lucro (existe aí uma nítida função econômica levada a efeito pela contratação).[4]

Cuida-se, também, de partes com maior capacidade de conhecimento e de previsão dos possíveis desdobramentos do contrato a ser celebrado ou já celebrado, de modo que não há que se falar no desequilíbrio entre a parte que conhece a informação em detrimento da parte que não conhece a informação (a menos que esta tenha essencialidade). Por exemplo, no precedente estadunidense Obde. v. Schlemeyer, de 1960, o vendedor de um imóvel omite ao comprador quesua estrutura estava infestada por cupins.[5] Como o comprador não questionou a respeito de pragas, não houve uma informação falsapor parte do vendedor, e sim a omissão de uma informação essencial ao contrato, uma vez que a existência dos insetos comprometia a utilidade e a função esperadas do bem.

Surpreendentemente, o comprador não pediu a rescisão contratual, tendo pleiteado apenas a indenização pelo valor dispendido com o controle das pragas, pedido este que foi deferido pela Suprema Corte e representou uma mudança da jurisprudência americana que, até o referido julgado, prescindia do dever de informar a parte menos informada (independentemente de ser comprador ou vendedor).

Noutras vezes, o limite da informação reside na própria lógica do mercado — em especial quando a informação foi adquirida onerosamente —, de maneira que entregá-la à contraparte pode significar prejuízo (lembrando, como dito, que a informação sempre deverá ser fornecida caso se mostre essencial ao contrato).Em outras palavras:a informação não pode ser aquela obtida com significativo custo ou capaz de conferir considerável vantagem comercial ou econômica à parte que irá recebê-la, sem qualquer benefício para a parte que a forneceu ou sem relação direta com o contrato celebrado.[6]

Nesse ponto, existe espaço para pensar-se na possível aplicação da análise econômica do direito, na qual a informação pode ser vista, segundo Ronald H. Coase,  com um dos principais fatores de redução dos custos de transação[7] e os polos do contrato possuem liberdade para conciliar de sorte a eliminar ou minimizar tais custos.

Eva Sónia Moreira da Silva destaca o acerto dos doutrinadores alemães (Günther Roth, Karl Larenz e Manfred Wolf), para os quais não existe uma regra geral de informação no momento pré-contratual, sob risco de desestimular-se a natural oposição de interesse entre as partes; além do mais, a omissão de uma informação, por si só,não se confunde com uma conduta ilícita ou desleal (entretanto, o dever de informação será exigido quando o determinarem a boa-fé e as exigências correntes no meio jurídico).[8]

Tudo o que se afirma, porém,não significa descurar da boa-fé objetiva[9]e, consequentemente, de sua tríplice função nas relações obrigacionais(interpretativa, supletiva e corretiva), nem de seus deveres anexos de conduta (dentre os quais está a informação, atrelada à ideia de lealdade), sob pena de indesejável inadimplemento em certas situações ou de assimetria informacional (bastante frequente e nociva, em especial nos contratos de longo prazo).

Significa, sim, que a informação no direito civil não pode ser incompleta, falsa ou ausente a ponto de alterar a base do negócio jurídico ou de conspurcar-lhe a essência;[10]todavia, essa informação, em determinadas espécies contratuais, não precisa ser esmiuçada a ponto de inviabilizar o negócio jurídico, haja vista que as partes têm direitos e deveres em maiores condições de igualdade. Por exemplo, uma seguradora tem o dever de informar o segura do sobre as condições e cobertura do seguro de automóvel oferecido, mas o segurado também tem o dever de informar à seguradora sobre situações passíveis de causar (ou que já tenham efetivamente causado) risco adicional, como a embriaguez habitual ou eventual ao volante, que, se sabida de antemão pela seguradora Y, levaria esta a,provavelmente,aumentar o valor do prêmio ou, inclusive, a não celebrar o contrato com o segurado Z.[11]

Os contratos de seguro, aliás, fornecem interessante ambiente para estudo da informação recíproca (sobretudo, do dever de informar): não só o segurado está em situação de fragilidade de informação, como também o segurador está sujeito a uma assimetria de informação capaz de comprometer a própria mutualidade.

São esses, por ora, os meus breves comentários acerca da informação, a qual, reitero, é um influente instrumento de cooperação para o progresso econômico e social.

Magistratura forte, cidadania respeitada!


[1]MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado – critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 578-594.

[2]SCHUNCK, Giuliana Bonanno. Contratos de longo prazo e dever de cooperação. São Paulo: Almedina, 2016, p. 224-225.

[3]Sobre o tema, ver: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Direito civil contemporâneo – estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 2. ed., ver, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019.

[4][O]s contratos de lucro caracterizar-se-iam por serem celebrados entre empresários ou entre um empresário e uma pessoa natural que naquela situação vise ao lucro. Ou seja, são firmados entre profissionais e/ou pessoas jurídicas que visam a ganhos eminentemente financeiros com a contratação. Justamente por isso, a interferência estatal nesse tipo contratual não é bem-vinda, porque haveria intromissão no funcionamento do mercado que se deve dar por si só. E o pacta sunt servanda deve ter maior peso. Os contratos de lucro,lato sensu, são aqueles celebrados entre pessoas jurídicas que têm como finalidade social auferir resultados positivos depois de descontados os investimentos feitos e as despesas incorridas em certo período. Portanto, nessa classificação, não se leva em conta o objeto da prestação contratada, mas a finalidade ou função econômica a ser alcançada por intermédio da contratação. (…) São contratos, em regra, que trazem em sua prévia muita negociação, notadamente, por haver polos com não só capacidade, mas necessidade de discussão, visando ao resultado lucro no final. (…) Sobressai o aspecto patrimonial desse tipo de contratação, apesar de esse elemento estar presente também em contratos que não sejam de lucro. Não obstante, no âmbito das relações de consumo, os fornecedores, legitimamente,  buscam em suas atividades de fornecimento, seja de bens ou serviços, entretanto, sempre que o objeto da prestação contratada for um bem ou serviço essencial, prevalecerá o aspecto existencial.” (GALVANO, Renato Rodrigues Costa. A boa-fé objetiva no âmbito dos contratos relacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 112-113).

[5]Obde v. Schlemeyer, 353,p.2d 672 (Supreme Court of Washington, 1960).

[6]Em interessante estudo, Giuliana Bonanno Schunck explica que Hugh Collins afirma que a informação que pode ser exigida do contratante decorrente de um dever anexo de conduta é aquela já possuída ou que pode ser possuída por meios triviais, sem que a parte incorra em custos de transação para poder fornecer a informação.(…) O limite do dever de informar se verifica justamente na lógica de mercado, e Ignazio Tardia explica a importância da Análise Econômica do Direito, que determina que, se a informação é adquirida de forma onerosa pela parte, esta não tem o dever de divulgar à outra parte. Ademais, o autor também sustenta que informações essenciais ao negócio deve ser divulgadas, para que a contraparte possa ter o mesmo nível de informação da outra e a melhor utilidade da prestação ou a mais eficiente forma de cumprir sua obrigação. A essencialidade dependerá do contexto contratual, podendo ser técnica ou até mesmo algo mais subjetivo, se for o caso.” (SCHUNCK, Giuliana Bonanno, op. cit., p. 227-228).

[7] Coase entende os custos de transação como custos de busca e informação, de barganha e decisão e de monitoramento e cumprimento, os quais podem ser reduzidos, por exemplo, pela estruturação em sociedades empresárias (firma) e pelo incentivo à autonomia da vontade e à conciliação entre particulares. (COASE, Ronald H. A firma, o mercado e o direito. 2. ed. Tradução por Heloísa Gonçalves. Revisão da Tradução por Francisco Niclós Negrão. Estudo introdutório por Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017, p. XLIII e ss.).

[8]Para a autora: “Necessariamente, o contrato terá como função primordial a prossecução dos interesses de cada um, interesses estes que serão divergentes; contudo, um contraente não poderá ignorar, por completo, os interesses da contraparte, se a lealdade decorrente da boa fé lho impuser.” (SILVA, Eva Sónia Moreira da. Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação. Coimbra: Almedina, 2006, p. 78-79).

[9]Segundo o art. 422 do CC/2002: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

[10] Observa Ezequiel Morais:“Duas outras situações, entre tantas, merecem ser citadas em decorrência da quebra do dever de plena informação, de transparência e de esclarecimento: a primeira, nos contratos de compra e venda de imóvel sem o habite-se; e a segunda, quanto aos limites e capacitações referentes ao uso do bem que é alienado. A informação incompleta ou falsa ou, ainda, a ausência  de informação sobre dado essencial nos contratos redunda em deslealdade, gera vício de consentimento, altera a base do negócio jurídico e interfere na sua essência, gerando falsa percepção da realidade, de tal modo que se o contratante soubesse da existência dos dados verdadeiros, de todos os dados, não teria firmado o contrato. (…) Por isso, o princípio da transparência e o dever de informação revelam-se essenciais em uma relação contratual e não englobam tão só, frisa-se, o ato de informar, mas dizem respeito, igualmente, ao dever de explicar, de esclarecer, com clareza, sobre o conteúdo clausular, sobre as consequências de adimplemento e inadimplemento e acerca dos deveres e direitos durante as fases contratual e pós-contratual.” (MORAIS, EZEQUIEL.A boa-fé objetiva pré-contratual –deveres anexos de conduta. Thomsom Reuters/Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019, p. 102 e 144).

[11] Nesse sentido: “DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE AUTOMÓVEL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. NEGATIVA DE COBERTURA. CONDUTOR DO VEÍCULO. EMBRIAGUEZ CONSTATADA. AGRAVAMENTO ESSENCIAL DO RISCO.PERDA DA COBERTURA SECURITÁRIA.

(…) 2. O propósito recursal consiste em definir se a embriaguez do condutor do veículo segurado e a omissão de informações quando da contratação constituem agravamento intencional do risco, apto a afastar a cobertura do seguro de automóvel.

3. No contrato de seguro, cabe ao segurado proceder de forma cautelosa, evitando criar uma situação em que o equilíbrio atuarial do contrato seja rompido, de modo que o segurador, se tivesse previsto esse risco adicional, não teria firmado o contrato ou, fazendo-o, não teria garantido o risco senão mediante um prêmio mais elevado.

4. A ingestão de álcool produz rápidos efeitos no cérebro humano, influenciando os sentidos e produzindo distorção na valoração e na percepção de riscos. No contexto do trânsito, tais efeitos acarretam a diminuição dos reflexos do motorista e de seu senso de responsabilidade, incrementando, de outro turno, condutas impulsivas e agressivas.

5. Considerando esses graves efeitos do álcool, que tornam o indivíduo menos apto a dirigir, aumentando, consequentemente, o número de infrações de trânsito e as chances de ocorrer acidentes, é invencível a conclusão de que a condução de veículo em estado de embriaguez caracteriza o agravamento essencial do risco do seguro de automóvel, a afastar a cobertura securitária, na forma do art. 768 do CC/02. Precedente da Terceira Turma (REsp 1.485.717/SP, DJe 14/12/2016).

6. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 1838962/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/11/2019, DJe 19/11/2019)

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