Opinião

A relativização do princípio cambial da autonomia

Autor

  • Rafael Britto

    é advogado sócio proprietário do escritório Britto e Simões Advogados e professor universitário de Direito Empresarial.

25 de fevereiro de 2020, 7h44

Título de crédito, nos dizeres de Cesare Vivante, é o “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”. E da famoso conceito de Vivante é possível a extração dos três princípios basilares a que se submetem todos os títulos de crédito: cartularidade, literalidade e autonomia (abstração e inoponibilidade de exceções pessoais a terceiros de boa-fé).

O princípio da cartularidade diz respeito à forma como o título se materializa, isto é, o pedaço de papel, a cártula em si. É bem verdade que vem sendo de certa forma relativizado, em razão dos constantes avanços tecnológicos, a exemplo da duplicata eletrônica, regulamentada pela Lei nº 13.775 de 20/12/2018.

Já segundo princípio da literalidade,  o título de crédito vale exatamente por aquilo que nele está escrito, nem um centavo a mais ou a menos. De igual forma, institutos jurídicos cambiais como aval, aceite, endosso, quitação parcial, e outros; devem ser lançados no próprio título sob pena de não produzir efeitos.

Sem sombra de dúvidas, o princípio da autonomia é o mais importante do Direito Cambial, e pode ser compreendido com os ensinamentos deAndré Luiz Santa Cruz Ramos[1]:

“Por esse princípio, entende-se que o título de crédito configura documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e completamente desvinculado da relação que lhe deu origem.

(…)

Assim, como bem ensinou o próprio Cesare Vivante, o direito representado num título de crédito é autônomo porque sua posse legítima caracteriza a existência de um direito próprio, não limitado nem destrutível por relações anteriores.”

Em outras palavras, tal princípio garante a segurança jurídica das relações envolvendo um título de crédito, pois impede que o possuidor de boa-fé de determinado título seja surpreendido por alegação de eventual vício envolvendo a negociação. Por exemplo, digamos que João compre um carro de Antônio, sendo esta compra e venda instrumentalizada por uma nota promissória no valor de R$ 10.000,00 devidamente assinada por João. Antônio por sua vez, tem uma dívida junto à Maria, no mesmo valor de R$ 10.000,00, e para dar quitação à tal dívida, utiliza a nota promissória assinada por João, fazendo a transferência mediante endosso. Na data do vencimento, João não poderia negar o pagamento da nota alegando eventual vício no negócio, em razão do princípio da autonomia, ou seja, em razão da obrigação de pagar contida na nota promissória ser autônoma em relação ao negócio que lhe deu origem.

Parte da doutrina divide ainda o princípio da autonomia em dois outros princípios, a saber: abstração e inoponibilidade de exceções pessoais a terceiros de boa-fé. Segundo o  princípio da abstração, no momento em que o título de crédito circula e chega às mãos de um terceiro de boa-fé, ele se desvincula completamente da relação que lhe deu origem. Por conseguinte, o princípio da abstração acaba sendo complementado pelo princípio da inoponibilidade de exceções pessoais à terceiros de boa-fé, que dispõe que não poderão ser alegadas defesas pessoais à terceiros que de boa-fé portem o título de crédito.

Não é demais lembrar que a função dos títulos de crédito, por essência, é circular riquezas de forma rápida e segura. E tais princípios, em conjunto visam justamente garantir a segurança jurídica na circulação dos títulos de crédito.

Importante pontuar que o princípio da autonomia e especificamente os princípios da abstração e da inoponibilidade de exceções pessoas, operam-se unicamente quando o título de crédito circula e chega às mãos de um terceiro de boa-fé, como explica Marlon Tomazette[2]:

“Quando o credor participa do negócio jurídico não haverá abstração, uma vez que ele tem amplo conhecimento do negócio e não pode alegar boa-fé, para não se sujeitar às exceções causais, baseadas no negócio. A abstração tem por pressuposto a circulação do título, na medida em que sem esta circulação não haverá boa-fé do credor a ser tutelada.”

Importante ressaltar por fim, recente posicionamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser possível a oposição de exceções pessoais à terceiros de boa-fé, desde que se trate de cheque e que o título esteja prescrito.

No julgamento do REsp nº 1.669.968-RO, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, restou firmado, por unanimidade, o entendimento de que prescrito o cheque, não há mais que se falar em manutenção de suas características cambiárias, tais como a autonomia, abstração e inoponibilidade, consoante trecho a seguir:

“Entretanto, prescrito o cheque, não há mais que se falar em manutenção das suas características cambiárias, tais quais a autonomia, a independência e a abstração. Inclusive, em razão da prescrição do título de crédito, a pretensão fundar-se-á no próprio negócio subjacente, inviabilizando a propositura de ação de execução. Assim, perdendo o cheque prescrito os seus atributos cambiários, dessume-se que a ação monitória neste documento admitirá a discussão do próprio fato gerador da obrigação, sendo possível a oposição de exceções pessoais a portadores precedentes ou mesmo ao próprio emitente do título.”

O julgado ainda ponderou que, muito embora não seja necessária a discussão dacausa debendi em ação monitória fundada em cheque prescrito, por força da súmula nº 531/STJ, pode o réu formular defesabaseada em eventuais vícios ou nulidades no negócio jurídico subjacente, mediante a apresentação de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

Muito embora o julgado em comento tenha tratado objetivamente de cheque prescrito cobrado por ação monitória, compactuamos do entendimento de que tal tese poderia ser aplicada não só aos cheques, mas também a outros títulos de crédito, pois que também se sujeitam aos princípios cambiais. E de igual modo, poderia ser aplicada a outras ações que visem a cobrança de títulos prescritos que não a ação monitória, tal qual ação de locupletamento ou a ação de cobrança.

 


[1] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial, Editora Método, 7ª Edição, 2017, pág. 504.

[2] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial Títulos de Crédito. Volume 2. São Paulo, Editora Atlas, 2015. Pág. 37.

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