Sob nova direção

Novo presidente do TJ-BA prega transparência para resgatar o tribunal mais antigo das Américas

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25 de fevereiro de 2020, 9h52

O Tribunal de Justiça da Bahia foi acometido de uma crise até agora sem precedentes e de proporções desconhecidas. O inquérito que apura um esquema de fraude e grilagem em disputa de terras em uma área de mais de 300 mil hectares no oeste do estado teve como desdobramento afastamentos e até prisões de magistrados. As medidas foram autorizadas pelo ministro Og Fernandes e ratificadas pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

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Um caso rumoroso que envolve denúncias graves de fraude, dois assassinatos e uma ressurreição e que já foi classificado aqui mesmo na ConJur como o enredo de um romance de Balzac, mas que se assemelha também ao universo do realismo fantástico de Gabriel García Márquez.

Eleito em uma disputa renhida, o novo presidente da corte baiana, desembargador Lourival Trindade, com certeza poderia apontar mais semelhanças com grandes obras da ficção. Erudito, o magistrado fez questão de lembrar já no discurso de posse que o TJ da Bahia é o primeiro das Américas, criado no Brasil Colônia em 1587, mas só implantado em 1609.

"Os melhores operadores da história do direito têm ensinado, criticamente, que Portugal, ao instalar o primeiro Tribunal das Américas, aqui, em nosso estado, em verdade, 'pretendeu formar uma burocracia profissionalizada, na colônia, a fim de proteger os seus interesses e sufocar as pretensões locais'. Quer dizer não era oportuno à metrópole que aqui se formasse uma organização independente de governo, que privilegiasse os interesses locais. Pois, por certo, essa organização procuraria, por todos os meios, desvincular-se das diretivas impostas pelo colonizador", lembrou já na posse.

Mais do que citações literatas, Trindade encabeça um audacioso plano de resgate da imagem do Poder Judiciário na Bahia. Para isso, avisa que vai mirar seus esforços em mais transparência, valorização da jurisdição de 1º grau, investimento em tecnologia e criação e aperfeiçoamento de ferramentas de controle e fiscalização.

Em entrevista à ConJur, o magistrado fala sobre seus projetos, os desafios que deve enfrentar e se mostra um entusiasta do instituto do juiz das garantias e da humanização do sistema prisional.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor foi eleito com uma diferença mínima de votos. Espera ter uma oposição aguerrida em sua gestão?
Lourival Trindade — Foi um pleito renhido. O tribunal saiu das eleições literalmente dividido ao meio. Sem nenhum exagero. Só que a nossa intenção a partir do nosso discurso de posse é reunificar o tribunal na medida do possível. Queremos uma gestão compartilhada e sabemos que a instituição é maior do que qualquer personalismo. E me parece que os colegas já estão envolvidos com o mesmo propósito.

ConJur — Como o senhor gostaria que sua gestão fosse lembrada?
Lourival Trindade
— É difícil fazer esse exercício de futurologia. O que posso dizer é que minha gestão será pautada estritamente por princípios éticos. Tenho como meta fazer com que o tribunal seja transparente e aumente a sua produtividade. Queremos a sociedade do nosso lado. Os jurisdicionados tem que ser basicamente o destino de nossas ações. Também queremos valorizar o 1º grau de jurisdição, pois ali está o ponto de estrangulamento. Estamos com o Poder Judiciário baiano estrangulado. Precisamos nomear novos juízes e esse será o nosso foco para melhorar nossa prestação jurisdicional.

ConJur — O TJ da Bahia foi duramente afetado pelo escândalo desencadeado pela operação "faroeste", da Polícia Federal. Como resgatar a imagem do judiciário baiano?
Lourival Trindade — Os acontecimentos recentes mancharam muito a imagem de nosso Judiciário. Isso é de uma evidência que me deixa até pouco à vontade de falar sobre isso.

O que posso dizer é que a transparência é uma de nossas metas na construção de um Judiciário que a população possa acreditar. A minha eleição surgiu em nome do soerguimento do Judiciário, e não vamos separar o discurso da realidade. Também vamos implementar ferramentas fiscalizadoras e investir em tecnologia.

Mas, sobre os magistrados acusados, não pretendo falar, já que eu acredito que nós temos a nosso favor a presunção de inocência. Não vou fazer juízo de valor sobre a conduta de nenhum colega.

ConJur — O senhor sempre se mostrou sensível ao estado de coisas inconstitucional, que é o sistema carcerário brasileiro. O que pretende fazer em sua gestão para contribuir para a melhora do sistema prisional baiano?
Lourival Trindade — A realidade carcerária brasileira é muito triste e nos envergonha. O nosso sistema carcerário é dos piores e dos mais calamitosos no mundo. E na Bahia não é diferente.

Para se ter uma ideia, nós temos 15.134 presos entre provisórios e cumprindo sentença definitiva. Existe um excedente de 3 mil presos desse montante. É uma verdadeira tragédia. Estamos criando grupos de monitoramento e queremos fazer mutirões carcerários.

Também iremos acompanhar a construção de novas unidades prisionais. Vamos trabalhar para amenizar essa crise aguda. Essa realidade que deteriora tanto a dignidade do ser humano que comete um crime e é esquecido pelo poder público. Infelizmente tem sido assim. Uma vez na fase de execução, o preso também é condenado ao esquecimento pelo Estado.

ConJur — O senhor já afirmou em outras entrevistas que, enquanto não houver mais justiça social, não haverá melhora dos índices de criminalidade. Chegou a dizer que o consideram sonhador por isso, mas sempre ressaltou que não pode perder essa perspectiva do que é Justiça. Essa perspectiva tem se perdido no país, somos muito punitivistas?
Lourival Trindade — Essa é a minha posição. Me considero um garantista. Nosso sistema penal é de um punitivismo exacerbado e está a serviço das elites. Ninguém pode ignorar essa realidade, ainda que discordem da minha posição. Quem não quer ver essa realidade se engana. Eu prefiro enfrentar essa realidade.

A minha opinião é que precisamos mais de justiça social e menos de Direito Penal.

ConJur — Como estão os números do TJ da Bahia em relação às audiências de custódia? O senhor é a favor do instituto do juiz de garantias?
Lourival Trindade
Vem funcionando razoavelmente, mas temos que melhorar muito. Já trabalhamos dentro da perspectiva da implantação da figura do juiz das garantias. Sei que o debate é acirrado, mas sou a favor do instituto.

Comungo das ideias de processualistas que reputo do maior quilate intelectual como Aury Lopes Junior [colunista da ConJur], que vem desenvolvendo isso em seus livros.

O que ele traz intelectualmente falando são argumentos irrespondíveis. É evidente que vão existir dificuldades na implantação do juiz das garantias, mas fique certo de que na Bahia será feito todo o possível. Já estamos formando grupos de estudo para isso.

ConJur — Como começou sua história no Direito? Como encara a oportunidade de ser o gestor de ser um dos tribunais mais importantes do país?
Lourival Trindade —
Me apaixonei já no Ginásio de Parnamirim, que era uma das grandes escolas da época. Minha paixão pelo Direito começou ali. Sobre a oportunidade de ser o gestor de um dos tribunais mais antigos da América, encaro como um desafio. Citei Fernando Pessoa no meu discurso de posse: "Não tenho medo do desafio. Aprendi a desafiar o próprio desafio". É assim que eu encaro.

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