Justiça Tributária

Recordações e homenagens a mestres do Direito Tributário brasileiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

24 de fevereiro de 2020, 6h30

Spacca
A coluna de hoje, que deve circular em plena segunda-feira de carnaval, é leve, como a data requer. Em vez de tratar de áridos temas tributários, vou contar histórias e dedicar esta coluna ao advogado e professor Gerd Willi Rothmann, recentemente falecido, com quem tive a honra de conviver na docência na USP, além de ter sido seu aluno. Homem afável e de fácil trato, sempre alegre e com uma palavra amiga a ser dita ao seu interlocutor. Analista agudo da realidade jurídico-tributária do Brasil. Fará falta.

Longe de mim tentar fazer algo minimamente semelhante ao livro de Arnaldo Sampaio Godoy, "História do Direito Tributário Brasileiro", cujo primeiro volume é intitulado "Dos pais fundadores ao Código Tributário Nacional". Obra de fôlego, que se encontra no prelo, e que já desponta como referência obrigatória sobre o tema. Busco contar histórias, sem nenhuma preocupação historiográfica.

Lembro-me de minha frustração ao me matricular na disciplina de Direito Tributário ministrada por Ruy Barbosa Nogueira na pós-graduação da USP. O curso todo estava estruturado em 10 semestres letivos, o que era algo impossível de ser cursado por completo, pois exigiria impensáveis cinco anos apenas para completar o curso. Fiquei indignado, pois queria cursá-lo integralmente, mas era faticamente muito difícil, face aos prazos acadêmicos. Cheguei a reclamar com o mestre, que apenas riu, dizendo que deveria assistir a tudo como ouvinte, mesmo que já tivesse concluído o doutorado. Proposta tentadora, mas inconcebível para quem buscava concluir seus estudos e retornar a seu estado de origem.

Aliás, conheci Ruy Barbosa Nogueira através de um de seus orientados, Antonio Moura Borges. Havíamos combinado de almoçar juntos no "bandejão" do centro acadêmico XI de agosto — da Faculdade de Direito da USP —, mas ele precisava da assinatura de seu orientador em algum documento burocrático, e aguardamos juntos que o mestre saísse da sala dos professores. Ele veio, assinou, e nos convidou para almoçar em seu escritório, que ficava a poucos passos da faculdade, onde hoje é a sede do IBDT Instituto Brasileiro de Direito Tributário, que desde então lá funcionava.

Foi uma prosa aberta, livre, completamente despretensiosa, de um mestre, que tinha escrito o mais reputado Curso de Direito Tributário do Brasil, utilizado em todas as faculdades de Direito, com dois alunos que iniciavam seus estudos e, como dizia o poeta Belchior, "sem parentes importantes" e vindos de Belém e de Teresina. Ao saber de minha origem libanesa, perguntou-me se conhecia restaurantes árabes em São Paulo, pois tinha algumas dicas que lhe haviam sido passadas pelo Alfredo. Recém-chegado na cidade, não conhecia nenhum, e muito menos sabia quem era o "Alfredo", por ele mencionado. Tratava-se de ninguém menos do que Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça, amigo de Ruy e que havia passado as dicas culinárias. Havia ido a poucos, limitado pela curta bolsa de estudos que dispunha.

Foi através das Mesas de Debates semanais do IBDT, que ocorriam no prédio da Faculdade de Direito (o histórico, pois não havia ainda o novo), no Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário, que conheci muitos advogados e professores da disciplina. Aqueles debates eram verdadeiras aulas. Além de Ruy, que presidia as Mesas, participavam rotineiramente Brandão Machado, Henry Tilbery, Alcides Jorge Costa, Walter Barbosa Correa, Luiz Mélega, Gerd Rothmann, Hamilton Dias de Souza, além muitos outros que me escapam à memória, inclusive estrangeiros de passagem pelo Brasil. Destacava-se um jovem advogado expert em Imposto de Renda, Ricardo Mariz de Oliveira, que dominava a matéria e que hoje preside as Mesas de Debates do IBDT, que continuam a ser realizadas às quintas-feiras pela manhã, com a mesma pontualidade britânica, no local onde era o escritório de Ruy Barbosa Nogueira. Outro time de qualidade está sempre presente por lá, valendo referir Luiz Eduardo Schoueri, Humberto Ávila, João Bianco, José Maria Arruda de Andrade, Fernando Zilveti, dentre vários.

É interessante ver como "o mundo gira e a Lusitana, roda", como diz o ditado. Ruy Barbosa Nogueira foi professor titular de Direito Financeiro da USP. Posteriormente, tornou-se o primeiro professor titular de Direito Tributário daquela faculdade, sendo sucedido na cátedra por Alcides Jorge Costa, que, por sua vez, foi sucedido por Paulo de Barros Carvalho e, após, por Humberto Ávila.

Na linha sequencial originária, sucedeu a Ruy, na cátedra de Direito Financeiro, o professor Sampaio Dória, que em 1994 foi sucedido por Regis Fernandes de Oliveira, que se aposentou em 2014 e foi sucedido por mim. Hoje, a Faculdade de Direito da USP conta com dois professores titulares de Direito Tributário, Luís Eduardo Schoueri e Humberto Ávila, e dois professores titulares de Direito Financeiro, Heleno Torres e eu. Novas gerações e novos problemas a serem enfrentados em nosso país, que não são apenas aqueles que Mário de Andrade colocou na boca de seu herói sem nenhum caráter, Macunaíma: "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Além desses, temos o eterno retorno da CPMF, a PEC 45, a PEC 110, a indústria das multas, a excessiva e mal distribuída carga tributária, a guerra fiscal e por aí vai…

Lembro-me de uma aula ministrada por Henry Tilbery, em um curso de extensão universitária patrocinado pelo IBDT, aos sábados, no salão nobre da Faculdade. Tratava o mestre sobre imposto de renda e inflação, um dos males que nos assolavam na época. O ponto era o tratamento jurídico do lucro inflacionário, de nenhuma saudosa memória. Recordo de seu relato sobre a inflação na Europa entre as duas grandes guerras, período por ele vivido em seu país de origem. Contou que quando jovem havia ido a um restaurante com seus pais, e que, durante a refeição os preços do cardápio haviam variado quatro vezes. Disse Tilbery que as pessoas não usavam mais dinheiro em carteiras, mas em sacos, tão desvalorizadas estavam as cédulas. Entre guerras não havia ainda sido descoberta a inventividade brasileira, que durante o governo Castelo Branco criou a correção monetária e, para acabar com a hiperinflação, durante o governo FHC criou hiperindexação, através da URV Unidade Real de Valor , no seio do Plano Real, felizmente bem-sucedido.

Interessante observar, através desse olhar retrospectivo, a mudança ocorrida no paradigma de estudos desta disciplina. Antes havia debates que ultrapassavam os limites da norma, eram mais holísticos, envolvendo, além do Direito, História, Economia e outras disciplinas correlatas, que adentravam no debate, embora de forma periférica. Posteriormente, mudou o eixo e um rigoroso positivismo tornou-se dominante nos estudos, o que é de todo importante, mas, segundo vejo, afastou do debate acadêmico diversos aspectos importantes para a compreensão do fenômeno tributário. Certamente tal análise decorre de minha formação, que envolve o direito econômico (meu orientador de doutorado foi o Prof. Fábio Nusdeo) e o Direito Financeiro, além do Direito Tributário, o que me leva a considerar diversas variáveis além da importante análise do formalismo tributário. Exatamente por isso, me aprazem os estudos sobre tributação e concorrência, guerra fiscal, renúncias e incentivos fiscais, direitos fundamentais dos contribuintes e dos cidadãos, dentre outras semelhantes, que não se encontram no centro das atenções das teorias que estudam a forma do Direito Tributário. Não sou capaz de afirmar hoje que esteja havendo uma modificação desse panorama a conferir.

Nesse sentido, registra-se que Tullio Ascarelli, o grande comercialista italiano, refugiado no Brasil do nazifascismo europeu, que em 1947 foi o primeiro a lecionar no âmbito de pós-graduação um curso sobre Direito Tributário, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, e que despertou o interesse de muitos advogados, dentre eles o próprio Ruy e Rubens Gomes de Sousa[1]. Um dos bons livros (antigos) para se estudar as demonstrações financeiras das empresas foi do também comercialista Bulhões Pedreira[2]. Aqui se retorna a Gerd Rothmann, que foi um dos precursores dos estudos sobre Direito Tributário Internacional, sob uma perspectiva de estudos comparatísticos, o que igualmente ultrapassa dos limites do formalismo jurídico.

Para encerrar esse relato, recordo um fato que me faz rir até os dias atuais, sempre sob a ótica do então estudante. A festa de cinquenta anos de docência do velho Ruy ocorreu no suntuoso Terraço Itália, um dos melhores restaurantes da cidade naquele tempo. Pois não é que o mestre apareceu com os (poucos) cabelos tingidos, parecendo mais jovem que seu filho, Paulo Roberto Cabral Nogueira, então com os cabelos integralmente brancos… Nós, estudantes, sempre atentos aos mestres, rimos durante a noite toda desse fato.

Enfim, e felizmente, memórias não faltam para relatar "causos" ocorridos tempos idos, relativamente a pessoas importantes para a história do Direito Tributário brasileiro. Nenhuma se trata de historiografia, como prometido, mas apenas de histórias para ler em um chuvoso e prolongado feriado de carnaval paulistano.

 


[1] Ruy Barbosa Nogueira, O surgimento e a evolução do ensino científico do direito tributário no Brasil, disponível em file:///C:/Users/Fernando%20F%20Scaff/Downloads/67573-Texto%20do%20artigo-88995-1-10-20131125.pdf

[2] Finanças e Demonstrações Financeiras da Companhia, Rio de Janeiro: Forense, 1989.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!