Segunda Leitura

O trabalho de menores merece novas reflexões

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de fevereiro de 2020, 7h15

O tema desperta polêmicas, tal qual o trabalho de presos ou o tratamento dos viciados em crack. Sem desconhecer tal peculiaridade, animo-me a chamar a atenção para alguns aspectos, com o único objetivo de levar à reflexão os que se preocupam com o assunto.

Spacca
O trabalho de menores está regrado por múltiplas e diferentes normas, cuja filosofia consiste em retirá-los da prestação de serviços para que tenham a possibilidade de estudar e evoluir social e culturalmente.  Entre elas temos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Por exemplo, a Convenção da Organização Internacional do Trabalho nº 138, que, no artigo 3º, fixa a idade mínima para o trabalho em 15 anos, permitindo, no artigo 4º, que, em países em desenvolvimento, ela seja reduzida a 14, e a Convenção OIT 182, que combate as piores formas de trabalho infantil.

A Constituição Federal, no artigo 7º, XXXIII, proíbe trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz. A CLT proíbe o trabalho ao menor de 16 anos, salvo se for na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos (artigo 403). E o artigo 428 dispõe que o contrato de aprendizagem exige requisitos, como o jovem ser inscrito em programa de aprendizagem e formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 2º, considera adolescente os que estão entre de 12 e 18 anos de idade.

As leis citadas e normas esparsas, inclusive administrativas, estabelecem como direitos do menor aprendiz: remuneração de ao menos um salário mínimo por uma jornada de 6 horas de trabalho; pausa para alimentação de 15 minutos (muitas empresas cedem um acordo, pelo qual o jovem pode fazer 1 hora de almoço se o mesmo repuser o horário); vale-transporte; vale-refeição; curso de capacitação profissional; férias remuneradas; carteira de trabalho assinada; FGTS; INSS; décimo terceiro salário.[i]

Todos esses direitos são válidos e essenciais ao bem-estar do menor sob trabalho. Para melhor compreendê-los, consulte-se o Manual da Aprendizagem, na internet.[ii]  Resta saber como tais exigências impactam o mercado de trabalho, se elas auxiliam ou problematizam a situação dos menores.

Os grupos econômicos mais poderosos, com propostas de proteção socioambiental, contratam jovens aprendizes, cumprindo as normas estabelecidas e pagando salários condizentes.  Por exemplo, no Itaú Unibanco a faixa salarial é de R$ 1.054,00 por mês; no Bradesco, R$ 829,00; e no Magazine Luiza, R$779.00.[iii]

No entanto, milhares de outros estabelecimentos veem-se impedidos de proceder da mesma forma, porque não teriam como atender às exigências legais. Refiro-me a pequenos comerciantes de bairro, profissionais liberais ou mesmo servidores públicos que, preocupados com os problemas sociais existentes, queiram dar a sua parcela de colaboração. Esta massa de interessados acaba sendo excluída e isto não ajuda os menores nem o Brasil.

O fenômeno é complexo e diversificado. Nos grandes conglomerados urbanos, crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo sozinhas, já que seus pais muitas vezes apenas a mãe passam o dia fora, trabalhando para o sustento. Nas cidades menores o problema é outro, é a inexistência de programas de menor aprendiz. Uma terceira situação é a dos menores em áreas rurais, principalmente no sul do país, onde ajudar na lavoura é um hábito vindo com a imigração e o impedimento de que ele seja feito pelos filhos do pequeno proprietário cria um conflito cultural intransponível.

Segundo consta, "O Brasil tem 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas de 15 a 19 anos", diz relatório da Organização Mundial da Saúde. O índice brasileiro está acima da média latino-americana, estimada em 65,5. No mundo, a média é de 46 nascimentos a cada mil”.[iv] A gravidez prematura é um dos mais graves problemas, resultando, com frequência, no abandono dos estudos pela mãe, sobrecarga para os avós, tudo sem falar nas dificuldades econômicas existentes na maioria dos casos. Em boa hora, a Lei 13.798/2019 criou a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, uma tentativa de minorar o problema.

As consequências são dispersas, difusas e de difícil mensuração. Perambulando pelas ruas, sem controle familiar de qualquer espécie, jovens vão aprendendo as piores práticas, por vezes envolvendo-se com grupos criminosos. 

Exemplos. Nos chamados "Pancadões", existentes em São Paulo, crianças ficam soltas na noite, usando bebida alcoólica e drogas, conforme retratado em vídeo.[v] Diferente, mas não menos grave, é a notícia: "Nove adolescentes foram apreendidos pela Polícia Militar após fazerem arrastão em ônibus de Fortaleza".[vi] Em Curitiba, adolescentes ciclistas pegam "rabeira" no ônibus articulado que transita nas vias rápidas, disto já resultando a ocorrência de morte.[vii] Os motoristas, agora, simplesmente param o veículo e aguardam que o transgressor desista, pois não se animam a censurá-lo ou impedi-lo.

Dir-se-á que tudo isto ocorre porque eles deveriam estar estudando, em período integral e com direito a refeição. Também acho. Mas não estão. Os projetos de estudo e atividades por todo o dia seriam maravilhosos se fossem uma realidade. Pode haver um aqui, outro ali. Em São Paulo, um projeto do governo pretende ampliar o ensino em período integral para mais 247 escolas públicas em 2020.[viii]  Mas o fato é que a maioria absoluta destas iniciativas resulta em fracasso, ainda mais agora com os estados atravessando crise econômica grave, alguns insolventes.

Diante de tal quadro, vale a pergunta: dificultar o trabalho dos menores, sem lhes dar ampla possibilidade de ensino, tem sido útil? 

Confesso, tenho as minhas dúvidas. E, ao refletir sobre o assunto, tiro conclusões da minha experiência de vida. Nos anos 1970, como Promotor de Justiça de Caraguatatuba (SP), fundei uma guarda-mirim, onde crianças de 12 (talvez até menos) a 14 anos trabalhavam para comerciantes e profissionais liberais. Mantenho até hoje contato com alguns deles e, com alegria, constato que foram bem-sucedidos. A mensagem que recebi de um deles, Paulo Sérgio dos Santos, revela o quanto aquele trabalho foi bom na vida daquele jovem. Com a permissão do autor, reproduzo-a, pedindo ao leitor que desconsidere os elogios, concentrando-se apenas na experiência do ex-guarda-mirim:

"Atualmente estou trabalhando como funcionário público no 1º Cartório Cível de Caraguatatuba. Aposentadoria prevista para 11.10.2022. Mas iniciei como Guarda Mirim, com muito orgulho e gratidão de ter sido o senhor, o ser mais humano que já conheci. Pois agradeço a Deus por ter tido essa oportunidade, de poder trilhar o caminho da honestidade e honra. Após sair da Guarda Mirim, fui borracheiro, tapeceiro, marceneiro, funileiro, balconista de farmácia, loja de roupas e banca de jornais e revistas. É finalmente em 1982 consegui entrar pra trabalhar como auxiliar de Cartório, no 1º Cartório de registro de imóveis, e quem era o escrivão o saudoso Antônio Calixto da Silva, que Deus o tenha em bom lugar, à quem também tenho muito à agradecer. Trabalhei até 18 de janeiro de 1986. Pois no dia 20 de Janeiro de 1986 comecei no emprego em que até hoje me encontro. Mas, com toda a certeza, toda essa vida, que hoje em meus 54 anos, tenho muito à agradecer ao senhor Dr. Vladimir por ter sido e continuar sendo esse ser super humano que eu conheci e até hoje continua a mesma coisa".

Fica então a pergunta: se fosse hoje e ele estivesse proibido de trabalhar, teria alcançado a posição a que chegou? Afinal, como ele, dezenas de pessoas começaram a trabalhar bem novos, alcançando o mais absoluto sucesso profissional (por exemplo, o jurista e hoje Deputado Federal, Luiz Flávio Gomes e o doutrinador Damásio Evangelista de Jesus).

Esta é apenas uma reflexão, não ambiciono ser o dono da verdade. Apenas coloco o tema em nova discussão, com o objetivo de tentar achar uma solução intermediária. Por exemplo, poderiam ser estudadas "as melhores formas de trabalho infantil” (parodiando a Resolução OIT 182) e, nelas, diminuir as exigências existentes para o menor aprendiz ou até diminuir a idade mínima em circunstâncias especiais. No âmbito geral, ofertar vantagens aos que pretendem contratar menores aprendizes (v.g., benefício fiscal), aumentando significativamente, o número de aderentes.

Em suma, a questão está posta. Esperemos que a criatividade do brasileiro ache o caminho adequado.

 


[i]. Lei do Jovem Aprendiz: Saiba quais seus direitos e deveres. Disponível em: https://mentorprofissional.com.br/lei-jovem-aprendiz/

[v] Reportagem da TV Record, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_RxFwMDjYRU.

[viii] Governo de SP anuncia inclusão de 247 novas escolas no programa de ensino integral em 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/12/13/governo-de-sp-anuncia-inclusao-de-247-novas-escolas-no-programa-de-ensino-integral-em-2020.ghtml.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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