Carnaval sem chuva?

Para especialistas, ação de cervejaria que brinca de são Pedro é polêmica

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23 de fevereiro de 2020, 16h27

Com o objetivo de "fazer chover no lugar certo", uma empresa foi contratada pela Ambev para evitar que pancadas atrapalhem o Carnaval de São Paulo. 

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Método foi criado para "fazer chover no lugar certo"
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O procedimento, criado pela Modclima, consiste em depositar gotículas de água em nuvens próximas aos locais onde se espera que chova. Assim, as nuvens descarregariam água antes de chegarem à capital, evitando encharcar os foliões. 

Se a empreitada está ou não sendo exitosa, não se sabe ao certo.

Contudo, de acordo com especialistas ouvidos pela ConJur, a iniciativa, apesar de não regulamentada, é polêmica, pois uma empresa privada está, em tese, manipulando recursos naturais de maneira unilateral. Pensemos, por exemplo, em um cenário distópico, nem tão distante assim, no qual a escassez de água gere conflitos pelo precioso líquido.

Além disso, há uma questão de fundo que é política: a quem cabe decidir se deve ou não chover em um dado local, em uma data específica? Pode uma cervejaria se autoconceder o poder de brincar de são Pedro?

O fato é que ações semelhantes já foram utilizadas para tentar conter a crise hídrica que atingiu São Paulo a partir de 2014. Mas, na ocasião, a Modclima foi contratada pela Administração Pública para produzir chuva artificial sobre os reservatórios do estado. É a primeira vez, no entanto, que a prática é utilizada "ao contrário" — para garantir sol durante o Carnaval — e estranhamente contratada por uma cervejaria.

Repercussão jurídica
Esse tipo de manipulação ambiental não possui um regramento específico no Brasil. Para especialistas ouvidos pela ConJur, o que temos em âmbito mais alargado para tratar do tema é a própria Constituição Federal, que estabelece, entre outras coisas, o direito a um meio ambiente equilibrado.

Gláucia Savin, que atua no Savin Paiva advogados — especializado em Direito Ambiental —, diz que a prática deve ser regulamentada, para que se possa, inclusive, punir os responsáveis por falhas no processo, caso elas ocorram. 

Ela também questiona o método. "A empresa foi contratada pela patrocinadora do Carnaval para que ‘chova no lugar certo’. E eu pergunto: quem tem autoridade para decidir isto?”.

"O poder público deve estabelecer algum tipo de regramento a essas atividades. Não no sentido de coibir, até porque vale a pena analisá-las para saber se podem ter outros tipos de impacto no meio ambiente", afirma Letícia Yumi Marques, pesquisadora da USP e advogada de Direito Ambiental na KLA Advogados. 

Ainda segundo ela, é necessário "refletir sobre o quanto essas medidas novas podem contribuir para o meio ambiente — como foi o caso na época da crise hídrica — e como isso pode ser bem aproveitado de forma que haja aí a garantia mínima do equilíbrio ecológico". 

Lenio Streck, colunista da ConJur, ironiza: "Trata-se da velha relação homem- natureza. Para quem acredita que a terra é plana e que o aquecimento global é uma fraude porque 'continua nevando ', o que é um pequeno bombardeio para evitar chuva?". E dispara: "Este é um país da piada pronta. Vivemos a tragédia fáustica (Fausto, do escritor alemão Goethe). A tentativa de barrar a chuva é a tentação de Mefistófeles. O dono da ideia deveria ler Goethe".

Técnica
A técnica começou a sair do papel em 1998 e foi logo implementada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). O método passou a ser utilizado para provocar chuvas artificiais na cabeceira dos sistemas Cantareira e Alto Tietê, que abastecem 18 milhões de pessoas na grande São Paulo. 

Nos procedimentos atuais, são despejados cerca de 300 litros de água na atmosfera, que acabam depositados em nuvens de 1 a 6 quilômetros de diâmetro. A eficácia do processo, segundo disse a Modclima ao G1, é alta, influenciando em 7 de cada 10 chuvas semeadas. 

A empresa também disse que o método é natural, feito com a utilização apenas apenas de água, sendo, por isso, livre de qualquer substância química. 

Para Yumi, no entanto, ainda que não se use produtos químicos, o simples fato de alterar o regime de chuvas já interfere no ritmo que a própria natureza tem. "Querendo ou não é uma intervenção antrópica no regime de chuvas", diz. 

Licenciamento
Para Gustavo Guerra, especialista em Direito Ambiental do Urbano Vitalino Advogados, "como se trata de uma operação relativamente nova, cabe ao órgão ambiental licenciador exigir os estudos ambientais no processo de licenciamento, de modo que a licença ambiental seja expedida com as condições, restrições e medidas de controle necessárias para a atividade que devem ser obedecidas pela empresa licenciada, de modo que a mesma seja monitorada pelas autoridades ambientais”. 

Ele ressalta ainda que manipulações deste tipo "quase que em regra causa efeitos colaterais que precisam ser previstos, analisados e, em muitos casos, mitigados — principal função do licenciamento ambiental".

ONU
A técnica chegou a ser apresentada em 2010 na Convenção de Combate à Desertificação das Nações Unidas (UNCCD), realizada na Alemanha. O método foi considerado não poluente pela organização. 

"É possível que a ONU utilize essa tecnologia, mas precisamos testá-la em diversos ambientes para comprovar sua eficácia. O governo brasileiro precisaria apresentar esta prática para que a Organização das Nações Unidas faça a recomendação desta técnica", disse Heitor Matallo, coordenador regional para a América Latina e Caribe da entidade ao Globo Natureza

Resultados
Questionada sobre o resultado da blindagem pelo jornal Folha de S. Paulo, a cervejaria divulgou a seguinte nota:

A Skol fez essa ação para evitar chuvas durante a folia e ajudar a garantir a diversão do folião. No primeiro final de semana de voos — 15 e 16 de fevereiro — os resultados foram positivos e neste início de Carnaval também. Continuaremos nestes dias de folia a fazer o possível para diminuir as chuvas para que a diversão máxima dos foliões siga até a Quarta-feira de Cinzas! 

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