Convulsão Social

Batalhões seguem sob ocupação no Ceará. Estado vive caos na segurança

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22 de fevereiro de 2020, 13h22

Ainda que o exercício do direito a greve policial seja ilegal, os batalhões da PM do Ceará seguem sob ocupação neste sábado (22/2). As tensões no Estado tiveram início em 5 de dezembro, quando os agentes ocuparam galerias e corredor da Assembleia Legislativa reivindicando aumento salarial. 

José Leomar/SVM
Motim teve início no último dia 18
José Leomar/SVM

O motim ficou marcado pelos disparos contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT-CE), que investiu com um trator contra os PMs amotinados em um batalhão localizado em Sobral, a 270 km de Fortaleza. O caso ocorreu na última quarta-feira (19/2).

De lá para cá, o estado de convulsão social aumentou rapidamente. Segundo levantamento do G1, o Ceará registrou 22 homicídios entre a tarde de sexta-feira (21/2) e a manhã deste sábado. Ao menos 73 pessoas foram assassinadas desde que o motim teve início, no último dia 18. 

A resistência ao cumprimento de ordem superior, inclusive por meio da tomada de quarteis, configura crime de motim, previsto no artigo 149 do Código Penal Militar. A pena para o delito é de oito a 20 anos. 

O artigo 150, por sua vez, pune com reclusão de quatro a oito anos a reunião de agentes com armamento ou material bélico de propriedade militar.

Os ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, criticou a conduta dos policiais, e disse que a greve é "ilegal e inadmissível". O ministro Ricardo Lewandowski também criticou a postura, afirmando ser "constitucionalmente vedado que corporações armadas façam greve". 

E neste sábado (22/2), o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, defendeu em artigo um diálogo com as polícias.

A legalidade de greve e motins por militares foi tratada em artigo do doutor em Direito Penal Davi Tangerino, publicado no último dia 20 aqui na ConJur. O especialista falou sobre a ilegalidade das ações que tomaram conta do Ceará e pode ser lido na íntegra abaixo. 

Sobral em transe: motim, trator e um pouco de Direito Penal
Pelo que se noticia na imprensa, um grupo de policiais militares aquartelou-se, armado, em movimento de pressão ao Governo do Ceará, por aumento salarial. Notícias dão conta de pessoas usando carros da PM, encapuzados, determinando o fechamento do comércio local.

A greve —, cuja impossibilidade, contida no texto constitucional, foi afirmada pelo STF em 2017 — já havia sido considerada ilegal pelo Tribunal de Justiça do Ceará, em decisão muito recente.

A resistência ao cumprimento de ordem de superior, inclusive por meio da tomada de quarteis por policiais militares, configura, em tese, o crime de motim, previsto no artigo 149 do Código Penal Militar, com penas de quatro a oito anos de reclusão, “com aumento de terço para os cabeças”; se armados, o delito passa a ser denominado de “revolta”, e a pena sobe para 8 a 20 anos, com a mesma causa de aumento.

O artigo 150, por sua vez, pune com reclusão de quatro a oito anos, a reunião de militares, com armamento ou material bélico, de propriedade militar, praticando violência à coisa particular.

As penas, por si, já revelam a gravidade das condutas à luz do Código Penal Militar.

Aí entra em cena Cid Gomes, eleito senador pelo Ceará em 2018, natural de Sobral. Munido de uma escavadeira, tudo indicava que buscasse reivindicar o quartel à força. Um ato curioso, que traduz um certo modo de se fazer política: aqui, mando eu, e não nos deixaremos acuar diante desses crimes.

Não há dúvidas que as forças de segurança pública poderiam ter usado de algum nível de violência para cessar os crimes dos policiais militares, prendendo-os em flagrante, e fazendo cessar o motim ou revolta.

Mas poderia fazê-lo o senador?

Deixando de lado as emoções político-partidárias, a resposta tem que ser, do ponto de vista jurídico, negativa.

Há no mesmo CPM a figura da invasão de propriedade (artigo 257, parágrafo 1º, inciso II, com pena de detenção de até seis meses). No Código Penal, também teríamos a figura do exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345, com detenção de 15 dias a 1 mês). Ambos os tipos preveem a punição autônoma de eventual violência empregada.

Aqui nasce uma questão interessante: poderia o senador invocar legítima defesa?

Para tanto, há que se perquirir se havia "injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". Atual não, mas iminente poderia estar presente no caso. As incursões encapuzadas usando veículos e — presume-se armas — da corporação seriam indicativas da iminência e continuidade das injustas agressões.

Se essa premissa for aceita, então os demais requisitos parecem estar presentes: uso moderado dos meios necessários, com a finalidade de repelir a agressão. E mesmo para aqueles que exigem uma ponderação de bens jurídicos na legítima, o patrimônio do Estado (muro/portão do quartel) cederia à integridade e segurança dos moradores de Sobral, somadas à integridade e à autoridade da própria administração militar.

Essa questão tem relação direta com o próximo ato dessa tragédia sobralense: os tiros dos amotinados disparados contra o senador.

Não há dúvida da tipicidade da ação, seja como homicídio tentado, seja como lesão corporal dolosa. Ou mesmo algum tipo específico do CPM, quando não terrorismo.

Poderão os amotinados, por sua vez, alegar legítima defesa?

Repele-se, entre nós, a dita legítima defesa recíproca, isto é, uma legítima defesa da legítima defesa. Todavia, admite-se a chamada legítima defesa sucessiva; nesses casos o agente A, ao agredir injustamente B, deflagra a situação justificante de B; B, porém, ao reagir, extrapola a ação justificada.

Nesse caso, A passa a poder se defender da ação de B que, por abusiva, excessiva, perde a característica de injusta. Por hipótese, A ofende verbalmente B (afetando sua honra) que, por sua vez, pega uma faca para matar A (ameaçando sua vida). Naturalmente, A agirá em legítima se, por exemplo, desferir um golpe na mão de B, para fazer cair a faca.

Voltemos a Sobral.

Se Cid agiu em legítima defesa, então os amotinados não agiram; é que a ação de Cid não é desproporcional à ação injusta pretérita, de modo que não surge a legítima defesa sucessiva.

E se Cid não estivesse em legítima? A resposta não muda. Ainda que se considerasse a ação do Senador como injusta, ainda não havia ameaça atual e iminente à vida dos amotinados, que estavam armados inclusive; tampouco disparos de tiro em região letal do corpo poderiam ser entendidos como uso moderado dos meios disponíveis.

Em resumo: a pretexto de greve, a tomada de quartel, ou excursões ameaçadoras por Sobral, com uso de armas da corporação, configura, em tese, os tipos dos artigos 149 e 150 do CPM; o senador, tudo indica, agiu para além de suas atribuições, e em situação que, embora crítica, permitia a intervenção das forças de segurança pública; justificada ou não, a ação de Cid não autorizava aos amotinados os disparos contra o Senador, o que dá azo a nova responsabilização criminal, se não por homicídio tentado, por lesão corporal dolosa, provavelmente grave.

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