Opinião

Princípio da legalidade limita poder estatal e protege os cidadãos

Autores

  • Flavio Quinaud Pedron

    é sócio do Pedron Advogados doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professor na UniFG (Bahia) na PUC-Minas e no IBMEC editor-chefe da Revista de Direito da Faculdade Guanambi e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional da Associação Brasileira de Direito Processual e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.

  • Rafael Alves Nunes

    é advogado do Pedron Advogados mestre em Direito Público pela PUC-Minas especialista em Direito Tributário pelo IEC - PUC-Minas e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Professor Damásio de Jesus professor do Centro Universitário Newton Paiva da PUC-Minas e da Escola Superior da Advocacia da OAB-MG.

21 de fevereiro de 2020, 7h02

A noção de legalidade está entre os primeiros conceitos a que um estudante de Direito se vê exposto, desde os primeiros momentos de seu curso de graduação. Assim, escolas de tradição positivistas[1] afirmariam que a legalidade seria um valor em si mesmo, não cabendo ao jurista questionar o porquê se deve obedecer à lei — já que tal resposta sinalizaria para questões filosóficas e, portanto, extrajurídicas.

Contudo, a doutrina contemporânea, irá atrelar a noção de legalidade a um plus, representado pela concepção de legitimidade (racionalidade democrática).[2] Assim, a legalidade representaria ao mesmo tempo uma condição de possibilidade de exercício do poder institucional e sua própria limitação. Tal ideia serve como limitador da atividade estatal ao passo que é, também, verdadeira proteção aos direitos e às liberdades fundamentais dos cidadãos. Tem-se, assim, que a lei garante as liberdades do indivíduo e limita a atuação estatal. Dessa forma, estamos no cerne do próprio conceito do Estado de Direito (seja como Rule of Law, seja como Rechtsstaat).[3] Afinal, persiste a ideia de que ao Estado moderno, somente é possível agir nos limites do fixado pelo ordenamento jurídico constitucional; toda e qualquer omissão legislativo-constitucional, representará clara proibição. Por isso mesmo, é um princípio que não está restrito à seara de um ramo qualquer do Direito, sendo aplicável a todo o universo do Direito.

Deste modo, fica o cidadão protegido contra decisões arbitrarias daqueles que detém o poder, ou seja, a vontade do detentor do poder fica sujeita ao império da lei. E aqui apresenta-se uma dupla perspectiva: (a) uma de controle dos atos estatais; e outra (b) de previsibilidade desses atos, visando o estabelecimento de uma “segurança jurídica”,[4] essencial para a organização da vida civil, mais ainda de legitimação do direito moderno a partir da estabilização de expectativas de comportamentos.[5]

Preliminarmente, cabe pontuar uma divergência, que se encontra, na base de toda a questão, quando a doutrina tradicional discorre acerca dos princípios jurídicos, pois parece que esta ignora a dimensão normativa que os princípios jurídicos adquirirão a partir, principalmente do pós 2ª Guerra Mundial. Afirmam muitas vezes que os princípios são muito vagos e abstratos, servindo apenas como bússolas de interpretação para a aplicação de regas jurídicas. E ao proceder assim, parece que a dogmática nacional ainda busca, bem a esteira do pensamento da crise do positivista — tal como faz Larenz,[6] entre outros — afirmar uma leitura reducionista — e equivocada — pressupondo que seria possível estabelecer uma distinção entre princípios e regras a partir do nível maior ou menor nível de abstração e de generalidade.[7] O mais grave problema de tal leitura é reduzir os princípios a ferramentas de interpretação negando toda a normatividade imanente nestes, bem como seu status como normas de direito fundamentais.

Assim, partiremos da concepção de que princípios são normas de Direito fundamentais, razão pela qual conservam sua força normativa, com aplicação imediata e cujas efetividade e validade não se condicionam à existência de norma posterior que venha a regulá-las, como é o caso do princípio objeto do presente estudo. A partir disso, enxerga-se uma dimensão ontológica na ideia de legalidade, afinal não se espera que um sistema social qualquer — seja um jogo de futebol, seja uma sociedade hiper complexa, como a nossa — possa se estruturar se não houve um “respeito às regras do jogo”.

Disso resultou um processo histórico, a partir do Iluminismo, que afirmará inicialmente uma supremacia do Legislativo, como função essencial do Estado, responsável por através da edição de diplomas legislativos, estabelecer a transformação da vontade política em vontade jurídica do Estado. Mas mais que isso, a noção de legalidade está a base fundadora do próprio código do Direito moderno — formado pela binaridade antagônica: lícito/ilícito, como afirma Luhmann.[8] Assim, é através da legalidade que o Direito, como sistema social autopoiético, é capaz de promover seu fechamento epistemológico, isolando e especificando suas comunicações com distanciamento e diferença dos demais sistemas (Economia, Política, Moral, Religião, Ciência etc.).

O princípio da legalidade de modo amplo, previsto na Constituição de 1988, em seu artigo 5º, II, mas não só nesta, possui lastro desde a Constituição de 1824, sendo que, à exceção da Constituição de 1937, todas as nossas demais ordens constitucionais trouxeram em seus textos a dispositivos que previam o dever de legalidade. Pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que este é, então, um dos elementos basilares da democracia e um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Tem-se, assim, a lei como instrumento limitador da atividade estatal e garantidor — e protetor — das liberdades dos cidadãos, conforme explicitado pela Constituição de 1988 em seu artigo 5º, II. Com isso, este princípio possui duas dimensões, sendo uma negativa e outra positiva. É negativa ao passo de que estabelece, para o cidadão, que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei; por outro lado, possui dimensão positiva no sentido de que exige que toda a ação estatal seja realizada nos estritos limites impostos pela lei.

O princípio da legalidade, portanto, é verdadeiro garantidor das liberdades dos indivíduos e limitador da atuação estatal. É através deste princípio que todos devem se sujeitar ao império da lei, sendo que somente ela pode exigir condutas positivas ou omissivas dos sujeitos e do próprio Estado.

Este princípio é, em essência, uma limitação constitucional ao poder estatal e, ainda, uma ferramenta de proteção do cidadão, para o qual restam preservadas a previsibilidade do direito e a segurança jurídica.

[1] PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012

[2] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998. Ver também: PEDRON, Flávio Quinaud; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do Direito Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[3] ROSENFELD, Michel. The Rule of Law and the Legitimacy of Constitutional Democracy.
Cardoso Law Review. v. 74. No mesmo sentido, ver: SHAPIRO, Scott J. Legality. Harvard University, 2011.

[4] PEDRON, Flávio Quinaud; OMMATI, José Emílio Medauar. Contribuição para uma compreensão ontológica dos Precedentes Judiciais. Revista Jurídica da Presidência, v. 19, p. 645-668, 2018.

[5] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998. Ver também: PEDRON, Flávio Quinaud; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do Direito Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[6] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

[7] Essa leitura que é inclusive muito e duramente criticada por Robert Alexy (Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1997).

[8] LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedade. Trad. Javier Torres Nafarrate. México: Universidad IberoAmericana, 2002. (Colección Teoria Social).

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    é sócio do Pedron Advogados, doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor na UniFG (Bahia), na PUC-Minas e no IBMEC.

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    é advogado do Pedron Advogados, mestre em Direito Público pela PUC-Minas, especialista em Direito Tributário pelo IEC - PUC-Minas e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Professor Damásio de Jesus, professor do Centro Universitário Newton Paiva, da PUC-Minas e da Escola Superior da Advocacia da OAB-MG.

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