Opinião

Restringir Habeas Corpus significa ignorar caos prisional brasileiro

Autor

  • Matheus Pimenta de Freitas

    é advogado e sócio administrador do escritório Pimenta de Freitas Advogados mestrando em Direito pela UnB (Universidade de Brasília) professor de Direito Constitucional do IDP e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Eleitoral da UnB.

19 de fevereiro de 2020, 6h31

Abstract: Que sistema é esse em que Supremo Tribunal Federal tem de conceder Habeas Corpus para furto de R$ 4,50? E as vezes nem concede? Pode o STF restringir direitos?

O Habeas Corpus vem sofrendo delimitações injustificadas, que enfraquecem sobremaneira os seus propósitos. Um dos aspectos que merecem atenção no que diz respeito à impetração do Habeas Corpus diz respeito à tese que versa sobre a impossibilidade de seu cabimento em face de decisões monocráticas proferidas pelos magistrados integrantes do STF. Sobre isso pretendemos dissertar.[1]

A referida restrição, por certo, não fora estipulada pela Constituição Federal e tampouco está prevista em qualquer diploma legal. Com efeito, o que definiu não ser cabível a impetração do Habeas Corpus em face de decisões monocráticas dos ministros da Suprema Corte foi a jurisprudência do próprio STF. Ou seja, recentemente, ao julgar o HC 105.959, a corte fixou a mencionada orientação, e é justamente esse decisum que será examinado no presente texto.

Síntese do julgamento
O HC 105.959 foi impetrado contra decisão monocrática proferida pelo ministro Cezar Peluso no Inquérito 2.424, a qual havia prorrogado determinado prazo para a realização de escutas telefônicas autorizadas judicialmente.

Naquela ocasião, os impetrantes impugnavam a decisão por suposta falha na fundamentação, bem como por contrariedade ao artigo 5º da Lei 9.296/1996, ao alegarem que, por meio do decisum, o ministro Peluso teria permitido a realização de escutas por prazo superior a 44 dias. Por essas razões, os impetrantes pretendiam a declaração de nulidade daquela decisão.

Distribuído ao ministro Marco Aurélio, o HC 105.959 foi por ele conhecido, sob o entendimento de que a decisão impugnada se tratava de ato coator que embaraçava a liberdade de ir e vir do paciente e eivava-se de ilegalidade, requisitos que autorizavam o manejo de habeas corpus, de acordo com os termos estabelecidos na Constituição Federal.

Acompanharam o entendimento do relator os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello.

Compuseram a divergência os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que votaram no sentido de não conhecer do Habeas Corpus por entenderem que a jurisprudência majoritária do STF apontava para o não cabimento daquele remédio constitucional em face de decisões monocráticas proferidas por membros daquele próprio tribunal.

Portanto, o julgamento se encerrou com a formação de apertada maioria, por 6 votos a 5, a qual entendeu ser incabível o Habeas Corpus impetrado em face de decisões monocráticas proferidas por Ministros do STF.

Por que a corte errou?
O entendimento que foi assentado no julgamento do HC 105.959 encontrou guarida tão somente em justificativa de ordem procedimental. Com efeito, todos os votos invocaram a orientação majoritária da corte, que afirmava que, contra as decisões monocráticas proferida por seus membros, o instrumento processual cabível seria o agravo interno, e não o Habeas Corpus.

A finalidade inequívoca daquela conclusão era diminuir a quantidade de impetrações do remédio constitucional ao Plenário do STF, em mais uma clara hipótese do que se denomina jurisprudência defensiva. Acontece que, ao assim decidir, a corte constitucional cometeu grave erro, esvaziando, em grande medida, o instituto do Habeas Corpus.

Ora, a relevância do remédio constitucional heroico nos tempos atuais é ideia que surge automaticamente ao se examinar a situação do sistema carcerário brasileiro.

A esse respeito, é importante rememorar que, em setembro de 2015, ao julgar a ADPF 347, o Supremo, reconhecendo as diuturnas violações de direitos fundamentais sofridas pelos cidadãos encarcerados nos estabelecimentos prisionais brasileiros, declarou que a atual conjuntura desumana do sistema prisional do país configura um estado de coisas inconstitucional, o qual deveria ser reparado com urgência.

E não foi somente esse julgamento que atestou a condição sub-humana do sistema carcerário brasileiro. A partir do ano de 2008, o Conselho Nacional de Justiça, sob a presidência do ninistro Gilmar Mendes e a corregedoria do ministro Gilson Dipp, passou a organizar e a executar os mutirões carcerários, que objetivavam a aproximação dos órgãos do Poder Judiciário com a realidade concreta do sistema prisional brasileiro.

Nas inspeções realizadas, foram encontradas situações verdadeiramente assustadoras. Registrando algumas delas em artigo acadêmico, Gilmar Mendes assim relata:

Na cidade de Abaetetuba, no Estado do Pará, uma jovem de 16 anos foi mantida presa por mais de 30 dias em uma cela com 20 homens. Acusada de furto, a adolescente afirmou ter sido violentada pelos demais apenados no período em que esteve encarcerada. Segundo a Polícia Civil, não há, no município, carceragem feminina, motivo pelo qual a jovem foi indevidamente colocada junto com presidiários do sexo masculino.

No Paraná, foi encontrada situação que se repete em diversas outras regiões do país: a inexistência de locais específicos a sentenciados dependentes químicos (usuários de drogas). Normalmente, em muitas localidades, são confinados em complexos penais destinados a apenados com doenças mentais.

Em inspeção ao presídio central de Porto Alegre, iniciada no mês de março de 2011, foi constatado que, dos 4.800 detentos que cumpriam pena em regime fechado, cerca de 300 já tinham a progressão para o semiaberto autorizada pela Justiça, mas ainda não gozavam do benefício por falta de vagas em unidades prisionais de semiliberdade.

[…]

No estado do Maranhão, um detento condenado a 17 anos de prisão ficou preso um ano e três meses a mais do que deveria. Pelo procedimento previsto na Lei de Execução Penal, teria direito à liberdade condicional quando cumprisse 10 anos de sua pena, mas acabou ficando preso 11 anos e três meses, graças ao atraso na apreciação de seu caso, que só veio a ser resolvido por ocasião do mutirão carcerário.[2]

Nota-se, portanto, que não foi desmoderada a equiparação feita pelo então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, entre os presídios do Brasil e as masmorras medievais. O ministro Peluso já falara isso também.

É importante que se mencione, ademais, o altíssimo índice de presos provisórios no país. Com efeito, no último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado pelo Ministério da Justiça, revelou-se que 40% dos encarcerados no Brasil representam presos provisórios, os quais se encontram em estabelecimentos prisionais, mas ainda não foram julgados.

Analisadas as situações individuais de cada estado da federação, o quadro parece ainda mais alarmante. No estado do Ceará, por exemplo, 66% dos presos ainda não foram julgados. Em Sergipe, o índice de presos provisórios em relação ao número total de encarcerados corresponde a 65%, enquanto nos estados do Amazonas e da Bahia esse percentual atinge 64% e 58%, respectivamente.

Isso reflete, em muito, a mora do Poder Judiciário em julgar seus processos criminais, fato do qual resultam prisões provisórias exageradamente longas, que se perpetuam enquanto não houver julgamento. Nessas condições, em que se mostra evidente o colapso do sistema prisional brasileiro, o âmbito de proteção do Habeas Corpus deveria ser ampliado, e não restringido.

Empreender uma análise de custo-benefício, como fez o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 105.959, e decidir por prestigiar a forma em detrimento da dignidade humana das centenas de milhares de brasileiros encarcerados não condiz, sob qualquer ângulo, com o Estado de Direito.

A conclusão a que chegou a Corte Suprema naquele julgado parece fechar os olhos ao estado de calamidade em que se encontra o sistema prisional do Brasil. Com efeito, ao assim decidir, o STF tornou ainda mais fechadas as portas para um julgamento mais justo e compromissado com a dignidade humana, sobretudo para os desassistidos.

Aqui, também, cabe uma observação hermenêutica, que diz respeito à defesa da coerência e da integridade no Direito: em nenhum momento, os ministros do STF questionaram a atualidade do entendimento que foi fixado anteriormente e que serviu de fundamento para que não fosse conhecido o Habeas Corpus de decisão monocrática. Ou seja, não houve uma discussão sobre se, ainda hoje, seria possível a manutenção de tal entendimento. Em outras palavras: será que o mesmo cenário que fez surgir esta súmula ainda se mantém? A questão é, portanto, também hermenêutica.

Não merece prosperar, ainda, a ideia de que não chegam ao Supremo Tribunal Federal casos absurdos de violações de direitos fundamentais. A título de exemplo do contrário, menciona-se o HC 141.201, impetrado perante o STF, em que se narrava que determinado indivíduo havia sido condenado à pena de reclusão — e tido a sua condenação mantida em segunda instância e pelo Superior Tribunal de Justiça, frise-se — em razão do furto de uma correntinha avaliada em R$ 15. Pode-se aludir, ademais, o HC 141.410, hipótese na qual o paciente era condenado, também à pena de reclusão, pela tentativa de furto de uma barra de chocolate. Outro caso que causa espanto é o HC 139.248, em que o paciente se encontrava preso preventivamente por ter furtado 18 tijolos e os revendido pela valor total de R$ 7.

Na semana passada, aliás, outra dessas situações assombrosas veio à tona. Após atravessar a primeira instância do Judiciário de Minas Gerais, a segunda instância mineira e também o Superior Tribunal de Justiça, chegou ao Supremo o HC 181.389, cujo paciente tratava-se de cidadão que havia furtado R$ 4,15 em moedas, uma latinha de Coca-Cola, duas garrafas de cerveja e uma garrafa de pinga, tudo avaliado em R$ 29,15. Como, antes disso, isso não foi resolvido?

Todos esses casos assombrosamente chegaram ao STF. Distribuídos ao ministro Gilmar Mendes, todos tiveram a ordem concedida. Ou seja, diante deste cenário, quando se visualiza a efetividade do manuseio deste remédio constitucional, volta-se ao problema hermenêutico/interpretativo da questão: Ministros do STF estão autorizados a restringir a aplicabilidade de garantias constitucionais? Se quiséssemos ir mais além, os ministros podem alterar o texto constitucional via criação de regras de exceção? A questão é de fundo democrático, o que precisa ficar claro.

Para além disso, a atual situação dos presídios brasileiros não comporta a limitação que o STF impôs ao instituto do Habeas Corpus no julgamento do HC 105.959. Nesse contexto, implementar embaraços a que eventual desacerto de um ministro da corte tenha a possibilidade de ser corrigido por outro membro do tribunal não parece se coadunar com os princípios elementares insculpidos na Constituição Federal de proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, falhou o Supremo Tribunal Federal ao julgar o HC 105.959, porquanto, seja por uma análise hermenêutica, que trata dos limites da interpretação judicial , ou de custo-benefício (como a situação prisional do país), a corte promoveu uma restrição na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, causando uma afronta aos ditames da própria Constituição Federal. A missão institucional do STF é ser o guardião da Constituição, e não criar entendimentos que visem a diminuir a carga protetiva que foi inaugurada pelo texto constitucional.

Há esperança
Há, todavia, esperança de que o Supremo Tribunal Federal evolua sua jurisprudência. Ao julgar o HC 152.707, impetrado contra decisão monocrática proferida pelo ministro Edson Fachin, o ministro Dias Toffoli reconheceu o cabimento do writ em face de atos proferidos por membros da corte (veja aqui). Levado o caso a Plenário, contudo, restou prejudicado o Habeas Corpus em decorrência do deferimento monocrático, pelo ministro Edson Fachin, da prisão domiciliar do paciente, não sendo oportunizada ao tribunal a possibilidade de se pronunciar novamente sobre o tema.

Ademais, em setembro de 2019, o ministro Dias Toffoli determinou a distribuição de todos os Habeas Corpus impetrados contra decisões de ministros do STF, o que indica que a discussão acerca do cabimento do referido remédio constitucional nessas hipóteses será revisitada pela Corte (veja aqui).

Espera-se, com otimistas expectativas, que o Supremo Tribunal Federal, em uma próxima oportunidade, reavalie o seu posicionamento em relação ao cabimento do remédio heroico contra atos monocráticos proferidos por ministros do tribunal. É necessário que a corte cumpra seu papel elementar de guardiã da Constituição e dos direitos fundamentais. E desempenhar essa missão, sobretudo quando considerado o caótico estado do sistema carcerário brasileiro, impõe, indispensavelmente, interpretação ampla quanto ao cabimento do Habeas Corpus.

Para isso, é necessário que seja feito o devido “constrangimento epistemológico”, isto é, é preciso dizer que, em alguns casos, o STF erra. É o caso deste HC. A capacidade de olhar para decisões judiciais proferidas pela mais alta corte constitucional brasileira com o devido senso crítico é o que faz o Direito avançar.

[1] O presente artigo trata-se de versão abreviada de texto produzido em coautoria por Lenio Streck e Matheus Pimenta de Freitas e publicado no livro Decisões Controversas do STF – Direito Constitucional em Casos, o qual pode ser adquirido por meio do site <https://www.grupogen.com.br/decisoes-controversas-do-stf-direito-constitucional-em-casos>.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. Parcerias institucionais e o Conselho Nacional de Justiça: instrumento de efetivação do acesso à Justiça. In: CARNEIRO, Rafael Araripe. Novas perspectivas jurídicas: uma homenagem a Gilson Dipp. São Paulo: Trevisan Editora, 2019, pp. 46/48.

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