Direito Comparado

O dever de informar e o direito à informação (I — a perspectiva do Direito do Consumidor)

Autor

19 de fevereiro de 2020, 12h27

Spacca
Venho hoje, nesta quarta-feira (19/2), ao espaço reservado à coluna "Direito Comparado", escrita pelo Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., que, gentilmente, me cedeu a oportunidade para que eu aborde, sob a perspectiva do direito pátrio, um tema que muito me apraz, além de estar sempre presente na jurisprudência dos tribunais brasileiros: a informação, um direito e um dever.

Não obstante a informação perpasse todas as disciplinas jurídicas, traçarei, sob a perspectiva do direito consumerista, um breve panorama dessa questão, que é das mais importantes para o debate jurídico atual e da qual derivam vários plexos.

Seja por implicações na esfera da deontologia, seja por implicações jurídicas, percebeu-se, ao longo dos anos, que o desenvolvimento da liberdade, para além da autodeterminação, deveria vincular-se à responsabilidade (por atos, omissões, escolhas e riscos oriundos do exercício da liberdade). Essa sequência evolutiva deu origem à liberdade como a conhecemos na atualidade: uma liberdade já não tão irrestrita, visto que passou a estar situada sob os olhos do direito. A própria transparência, por exemplo, hoje bastante falada (não só no direito público, como também no privado), é, na prática, um resultado dessa liberdade rumo à busca da informação qualificada exigida pela lei.

E como lidar com a informação, um conceito tão vasto? Ao menos nas relações contratuais entre particulares, é preciso ter em mente que há, de um lado, os contratos de consumo e que há, de outro, os contratos de direito civil e de direito empresarial, todos com suas especificidades, inclusive quanto à intensidade da informação.

No que diz respeito ao consumidor, a informação deve ser ampla em sentido e em abrangência. Cuida-se de uma informação que não se limita ao contrato, mas, sim, abrange demais situações nas quais o consumidor demonstre interesse num produto ou serviço.

Como sabido, quem conhece o produto ou serviço oferecido (porque o produziu ou tem vínculo com o processo de fabricação ou distribuição) deverá prestar ao consumidor (que desconhece todo esse processo) informação suficiente para que este tenha liberdade de escolha diante dos bens oferecidos no mercado ou possa se prevenir quanto à eventual periculosidade ou nocividade de um produto ou serviço já adquirido. Além do mais, no fomento ao consumo e na cadeia fornecedora, o dever de informar corresponde a um ônus pró-ativo do fornecedor (seja ele um parceiro comercial ou não do consumidor). Em outras palavras: o fornecedor precisa zelar pelo cumprimento do dever de informação destinado a todos os consumidores (ou potenciais consumidores), que são naturalmente alheios à realidade que envolve a cadeia de produção e, por isso, são dignos do direito à informação.[1] Portanto, no CDC, o dever de informar não é um mero dever anexo ou parcelar, e sim um dever básico, essencial e intrínseco às relações de consumo, as quais trazem em seu bojo o direito do consumidor à informação.

São dois os principais momentos em que o fornecedor deve esmerar-se em informar o consumidor: (a) o pré-contratual: a informação que antecede ou acompanha o bem de consumo, a exemplo da publicidade e da embalagem; e (b) o contratual: a informação oferecida na formalização do ato de consumo, ou seja, no momento da contratação. Obviamente, o dever de o fornecedor informar o consumidor prossegue para o momento posterior à celebração do contrato, mas são aqueles dois momentos anteriores que definem a decisão do consumidor por adquirir ou não um produto ou serviço.

Some-se a isso o fato de que o CDC entende o consumidor a partir de uma interpretação complexa, plurívoca e dinâmica. O art. 2º do CDC dispõe que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (caput), bem como equipara ao consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo” (parágrafo único). Já o art. 17 do CDC diz que são equiparáveis a consumidor todas as vítimas do dano causado pelo fato do produto e do serviço. E o art. 29 do CDC estabelece que também se equiparam a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais. Logo, o referido Código identifica os consumidores sob um critério amplo, no qual mesmo quem não é parte na relação contratual (mas poderá vir a sê-lo) deve ser considerado consumidor para fins de proteção.

Segundo o art. 6º do CDC, um dos direitos básicos do consumidor é a "informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam" (inciso III), sendo a liberdade de escolha um direito assegurado ao consumidor (inciso II). E, conforme o art. 31 do CDC, "a oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores".

Vale dizer: a escolha do consumidor somente é livre se estiver adequadamente vinculada à informação correta, acessível e satisfatória sobre produtos e serviços que os fornecedores colocam no mercado de consumo. Ao receber a  informação sobre o produto ou o serviço, o consumidor decidirá o que consumir ou não: nesse ponto, se a informação for completa, clara e eficiente, o consumidor agirá com consciência, mas se a informação for parcial, ambígua ou falsa, o direito de escolha do consumidor estará violado. Uma vez que o consumidor tem o direito à informação, o fornecedor terá, em contrapartida, o dever de informar como conduta necessária para atuar no mercado e respeitar, simultaneamente, o direito básico do consumidor de ser informado.

Essas disposições do CDC devem ser cumpridas não somente nos contratos de consumo mais comuns (em regra, de adesão), como em situações mais peculiares relacionadas ao consumidor. Isso se explica, em parte, porque o art. 4º, caput, do CDC diz que “a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (…)”. Tal art. 4º é uma norma-objetivo, porquanto indica os resultados a serem alcançados na política nacional das relações de consumo. Assim, a existência dessa norma-objetivo determina que todas as normas consumeristas devem ser interpretadas teleológica e finalisticamente, ou seja, o tipo de interpretação não fica a cargo do intérprete, mas é ditado pelo próprio Código (as normas consumeristas precisam ser interpretadas em sentido que possibilite a satisfação dos objetivos traçados pelo CDC). Nessa esteira, por exemplo, decidiu a Segunda Turma do STJ que, para que a informação seja correta, clara e precisa, será necessária a integração da Lei do Glúten (lei especial) com o CDC (lei geral), já que,  no fornecimento de alimentos e medicamentos a consumidores hipervulneráveis (no caso, intolerantes a glúten), não basta o standard mínimo da informação, sendo necessário o standard mais completo possível (uma espécie de integração da informação-conteúdo "contém glúten" com a informação-advertência de que “o glúten é prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca”).[2] Noutro exemplo, o consentimento informado na relação médico-paciente também decorre do gênero informação, devido a essa relação de consumo (ao contrário das habituais relações de massa) ter por objeto um contrato com função primordialmente extrapatrimonial e intuitu personae, o que implica, muitas vezes, uma obrigação de resultado e tangencia bens jurídicos essenciais (como a vida e a saúde):  está-se numa seara em que o profissional tem o dever de informar bastante acentuado, porque o paciente tem um interesse muito nobre em conhecer os possíveis resultados da atuação clínica passíveis de influenciar sua saúde e sua vida.[3]

Por tudo isso, considera-se enganosa a informação parcialmente falsa ou omissa a ponto de levar o consumidor a erro: o CDC não admite a informação pela metade, ambígua ou incompleta. Dessa maneira, viola o CDC o fornecedor que informa, mas não transmite efetivamente a informação, visto que o fato de a informação ser completa e verdadeira não afasta possíveis deficiências na forma como essa informação é transmitida ou compreendida pelo consumidor. Em suma, a informação deverá ser tanto mais eficaz quanto mais se desconhece o consumidor e se sabe de sua vulnerabilidade.

Existem, por fim, casos cada vez mais frequentes em que o problema não está na informação que se transmite ao consumidor, mas naquilo que o fornecedor inicial faz com as informações coletadas do consumidor (por exemplo, num contrato de adesão ou num termo de serviço), frequentemente utilizadas para fins econômicos diversos e vendidas como mercadoria a outros fornecedores. Chega-se, então, à novel disciplina da proteção de dados, na qual a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018) também tem como um de seus pilares a autodeterminação informativa (art. 2º, inc. II).

À medida que se passa aos contratos de direito civil e empresariais, digamos, menos “despersonalizados” e mais patrimoniais, pressupõe-se outra perspectiva do tráfego negocial, na qual há de considerar-se, inclusive, a análise econômica do direito, pois existem as expectativas dos agentes econômicos que dependem da segurança jurídica (continuidade e previsibilidade) para manterem a estrutura do mercado. Isso será, contudo, o motivo do nosso próximo diálogo, no qual daremos seguimento ao tema da informação, esse importante instrumento de cooperação para o progresso econômico e social.

Magistratura forte, cidadania respeitada!

 


[1] A Segunda Turma do STJ, no RESP 1.364.915/MG,  negou provimento ao recurso especial interposto por fornecedora que, sem informar claramente o consumidor, reduziu o volume de refrigerantes de garrafa PET de 600 ml para 500 ml. A situação agravou-se por ser uma marca conhecida há anos no mercado e, por isso, detentora da confiança dos consumidores durante décadas. Nas razões do recurso especial, a fornecedora alegou que comercializa os refrigerantes em caráter final, não sendo sua fabricante ou distribuidora, de modo que não poderia ser responsabilizada pela conduta de terceiros que, porventura, não tenham informado a redução do volume do líquido. Ademais, teria tido o cuidado de diminuir o preço do produto posto à venda ao consumidor. O acórdão da Segunda Turma do STJ ressaltou que, em tais casos, o Código de Defesa do Consumidor pune a existência do vício de quantidade do produto, como também prevê a expressa responsabilidade solidária entre todos os fornecedores da cadeia de produção e circulação, podendo qualquer um deles ser acionado isoladamente pelo consumidor, nos moldes do art. 19 do Código de Defesa do Consumidor. A acepção de “fornecedor” prevista no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor é ampla. É ampla exatamente para que um maior número de relações de consumo comporte a aplicação das normas consumeristas, pois importa mais a presença do consumidor na relação de consumo, e menos quem vem a ser contraparte fornecedora. (REsp 1364915/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/5/2013, DJe 24/5/2013).

[2] Nesse sentido: EREsp 1515895/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/09/2017, DJe 27/09/2017. Confira-se, também: “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. RÓTULO DO PRODUTO (GRANOLA) CONTENDO A INFORMAÇÃO “SEM GLÚTEN”. PROPAGANDA ENGANOSA. DOENÇA CELÍACA. I) É dever do fabricante fornecer informações corretas, claras, precisas e ostensivas no rótulo do produto (art. 6, III, 12 e 31, do CDC). II) Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o dever de indenizar exsurge como decorrência do próprio ato ilícito da publicidade enganosa, que contenha informação falsa. III) Autor, portador de doença celíaca, que adquiriu o produto (granola) fabricado pela empresa/ré, que continha a informação no seu rótulo, em destaque, “SEM GLUTEN, SEM LACTOSE”, e apenas em letras menores, miúdas, a informação “Pode conter traços de glúten”. IV) Informação da rotulagem inverídica, em violação ao direito à informação do consumidor e ao dever de informar da fabricante, e em desacordo com a Lei do Glúten (Lei n.º 10.674/2003). V) Ingestão do produto, o que desencadeou os sintomas da doença celíaca no autor. Dever de indenizar pelos danos materiais e morais. Valor da indenização pelo dano moral fixado na sentença em R$ 8.000,00, mantido, ante os parâmetros deste Tribunal. PRECEDENTES DO STJ E DO TJRS. Preliminar de intempestividade da apelação rejeitada. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (Apelação Cível, Nº 70078985306, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em: 13-12-2018).

[3] A propósito: “Consumidor – Ação de Indenização – Cirurgia bariátrica – Erro Médico – Eleição inadequada do procedimento – Operadora que elegeu procedimento mais invasivo e que causa maior desconforto ao paciente – Dano moral verificado – Hipótese em que a eleição do procedimento por videolaparoscopia poderia ter evitado o desconforto (dor) e a cicatriz – Consentimento informado insuficiente e que não informou adequadamente à paciente sobre os riscos e resultados da cirurgia, tampouco forneceu a ela a chance de optar pelos procedimentos – Dano moral fixado em R$ 15.000,00 – Recurso parcialmente provido.” (TJSP; Apelação Cível 1008582-36.2017.8.26.0564; Rel. Luiz Antonio Costa; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/05/2019; Data de Registro: 24/05/2019)

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!