Tribuna da Defensoria

Argumentos confirmatórios da maximização do custo x benefício

Autores

  • Luís Henrique Linhares Zouein

    é defensor público substituto do estado do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

  • Bernardo Augusto Ferreira Duarte

    é defensor Público em Pernambuco especialista em Direito Constitucional pelo IEC-PUC-MG mestre em Direito Público na PUC-MG e professor de Introdução ao Estudo do Direito e Teoria da Constituição no Izabela Hendrix.

18 de fevereiro de 2020, 8h00

Em fevereiro do ano passado, Franklyn Roger e Diogo Esteves foram muito felizes ao publicar, nesta Tribuna, um preciso diagnóstico do modelo brasileiro de assistência jurídica estatal gratuita. Na oportunidade, afirmaram que “o salaried staff model adotado pelo Brasil” melhor maximizaria “a relação custo-benefício dentro da atual estrutura social do país, oferecendo maior qualidade e quantidade de serviço jurídico-assistencial pelo mínimo de dispêndio das verbas públicas”.

Essa diagnose possui consistente alicerce empírico (pragmático e econômico), já antevisto por Franklyn Roger e Diogo Esteves, o qual, aqui, pretendemos aprofundar. Justamente por isso, a coluna acima referenciada servirá de pano de fundo para o presente artigo e outros que virão, cujo intento central será refutar os principais argumentos daqueles que se opõem à ampliação do corpo de Defensores Públicos nas mais diversas unidades da federação.

A fim de atestar o equívoco econômico e pragmático da insistente aposta em modelos paralelos e paliativos de assistência jurídica gratuita, utilizaremos, além de outros argumentos, dados advindos de três estudos econômicos, realizados na Bahia (2016), em Rondônia (2020) e em Pernambuco (2020), pelos economistas Marco Antônio Jorge e Rafael Saldanha.

Essa empreitada assume crescente relevância na atualidade, ante a nítida retomada de um discurso assustadoramente conservador e neoliberal na arena política. Em apertada síntese, essa tendência reduz a importância da força normativa da Constituição, das leis e dos precedentes judiciais, subjugando-os totalmente à força da política, guiada por argumentos superficiais e imediatistas.

Em termos práticos, isso acarreta uma mudança de eixo perigosa. Afinal, a política, colonizada pelo sistema econômico, passa a operar unicamente a partir de uma lógica distorcida de supostos custos e benefícios, olvidando, inclusive, o protagonismo (pressuposto e legitimador) da Constituição[1]. Com isso, as contingências econômicas momentâneas (utilitárias) passam a pautar, inclusive, o cumprimento da Constituição, o que enfraquece, por exemplo, a força cogente dos artigos 5º, LXXIV, e 134, ambos da CF/88, assim como a imperatividade da LC 80/94 ou das decisões proferidas pelo STF, por exemplo, no âmbito das ADIs 4.163/SP e 3.792/RS.

Nesse cenário, a ordem emanada do artigo 98 do ADCT, incluído pela EC nº 80/2014, é posta em segundo plano, porquanto condicionada à existência de “sobra orçamentária”. Assim, sobretudo em um cenário de crise fiscal, com orçamentos contingenciados, a Constituição deixa de pautar a seleção das rubricas orçamentárias, de modo que seu cumprimento passa a depender de contingências políticas. O risco aqui é enorme, porquanto essa mudança de eixo abre mais uma porta para que direitos, deveres e garantias fundamentais sejam colocados em xeque.

Por tudo isso, passa a ser central a atestação da viabilidade econômica e pragmática da ampliação de investimento na Defensoria Pública, sem que se olvide, com isso, a imprescindível necessidade de defesa do protagonismo da Constituição. Eis o desafio que estamos a propor.

Mas afinal, por que o “salaried staff model” realmente maximiza a relação custo x benefício?

O primeiro argumento de viés econômico que justifica a ampliação de investimento na Defensoria Pública é muito simples. O serviço por ela prestado é consideravelmente mais rentável para o Estado, além de quantitativa e qualitativamente superior àquele alcançado pelos modelos alternativos hoje existentes (o pro bono e o judicare, ou qualquer tipo de sistema híbrido).

A atestação desta afirmação demanda uma rápida investigação dos modelos atualmente existentes de assistência jurídica gratuita, com ênfase na análise de suas características e custos econômicos, sistêmicos e sociais.

Vejamos, nesta oportunidade, o modelo pro bono e o sistema híbrido estadunidense.

Comecemos pelo básico. É cediço que tanto a advocacia pro bono, quanto o modelo judicare depositam na advocacia privada a responsabilidade pela assistência jurídica dos cidadãos vulneráveis (em especial do ponto de vista econômico).

Desses, o modelo pro bono é o mais deficitário, conquanto, apenas aparentemente, seja o mais barato.

Em linhas gerais, sua base é puramente caritativa, o que condiciona a assistência jurídica dos vulneráveis à “mera benevolência” do profissional do Direito, sem nenhuma espécie de impositivo institucionalizado de atuação nesse sentido, nem de incentivo remuneratório estatal.

No modelo pro bono, tampouco vislumbra-se uma exigência de extensão mínima da cobertura ou acompanhamento processual. Assim, nada impede o abandono da causa pelo advogado, conforme seu exclusivo juízo de conveniência.

Logo, não é possível afirmar que exista um direito da pessoa vulnerável a uma assistência jurídica gratuita integral, na medida em que esta fica completamente à mercê da “predisposição moral” de profissionais que abdicaram voluntariamente de parcela de seu tempo para ajudá-las.

São inúmeros os problemas desse modelo. Alguns desses problemas podem ser antevistos nas próprias características da assistência caritativa, antes alinhavadas (é facultativa, não necessariamente integral, sem imposição legal ou subsídio estatal).

Nota-se, assim, que os benefícios acarretados aos assistidos são muito tímidos e voláteis, em contrapartida a custos sociais elevados e catastróficos, porquanto nem todos os vulneráveis são alcançados pelo modelo.

Aliás, se a lógica de um (suposto) custo x benefício neoliberal estiver em foco, há de se esperar, inclusive, uma precariedade potencialmente crescente do serviço que dele emana. Afinal, se “tempo é dinheiro”, a precariedade da assistência jurídica gratuita do modelo pro bono decorre da própria tendência das economias de mercado.

Não é imaginável, nesse contexto, que um considerável número de advogados, voluntariamente, abdicará de grandes parcelas de tempo com vistas a, caritativamente, assistir pessoas vulneráveis. Tampouco é razoável supor que a oferta de serviço acompanhe a demanda, pois o sistema carece, como se disse, de incentivos financeiros ou impositivos legais. Isso é ainda mais evidente em uma sociedade de mercado, na qual a distorcida lógica do custo (meramente econômico) x benefício (que desconsidera a promoção dos direitos fundamentais) tem a pretensão de dominar todos os âmbitos da vida.

Nesse tipo de contexto, cada vez mais as pessoas são guiadas pelos valores de mercado, o que tende a degenerar virtudes cívicas como altruísmo, generosidade e solidariedade, essenciais à advocacia pro bono. Logo, há motivos suficientemente consistentes para duvidar que essa atuação seja verdadeiramente ampla e qualificada, a ponto de atender satisfatoriamente toda a demanda de pessoas que necessitam de assistência jurídica e jurisdicional gratuita.

O déficit qualitativo decorrente de falta de expertise, atuação estratégica priorizada, ou, ainda, de incentivo/interesse para o investimento de tempo nesse tipo de ação é também uma consequência a ser necessariamente considerada. Eis o argumento pragmático (consequencialista) que contraindica a adoção pura e simples desse modelo. Ele é, claramente, um modelo paliativo.

Talvez, por todas essas razões, ressalvados possíveis casos de países onde ainda não há um sistema institucionalizado de assistência jurídica gratuita, não se tem notícia da adoção exclusiva do modelo pro bono. Nem mesmo o modelo estadunidense de assistência jurídica gratuita, ao contrário do que muitos pensam, é inteiramente pro bono. Segundo interpretamos, fazendo-o com base em um artigo de Cirino Vargas[2], Defensor Público em Minas Gerais, nos Estados Unidos existe um sistema extremamente híbrido e deficitário, que mais “se aproxima” de uma mescla dos modelos judicare e pro bono. Nas palavras de Cirino:

Em 2015 tivemos a oportunidade de trabalhar lado a lado com Defensores Públicos Federais no Estado do Alabama, podendo extrair da experiência forense ricas informações a respeito do serviço de assistência jurídica gratuita norte-americano. Os dados são reveladores de um mecanismo incipiente e fragmentado de defesa pública, dotado de raros pontos de congruência, em comparação com o sistema brasileiro (expressamente consagrado na Constituição Federal, com indicação de uma instituição permanente de inclusão social).

Para esclarecer sobre o perfil da defesa pública nos Estados Unidos, entrevistamos Christine Freeman, Diretora Executiva da Defensoria Pública Federal no Estado do Alabama, que expôs em detalhes a engrenagem da assistência jurídica gratuita daquele país, com ênfase em seu problema orçamentário, âmbito de incidência do serviço e independência da entidade prestadora. As informações a seguir são provenientes, em sua maior parte, da Defensora Pública norte-americana. (…) Nos Estados Unidos a assistência jurídica gratuita no âmbito federal é prestada por entidades públicas e privadas e por profissionais liberais. Em resumo, temos o seguinte:

1) Organizações de Defensores Públicos Federais (Federal Public Defenders Organizations ou FDO’s): entidades públicas, com equipes compostas por servidores federais. O Defensor Público Federal Chefe é nomeado pela Corte de Apelação da respectiva circunscrição judiciária (ou “circuito judiciário”), para um mandato de quatro anos. A ele compete o exercício da atividade administrativa e o recrutamento de Defensores Públicos Federais. A elaboração da proposta de orçamento para as FDO’s é responsabilidade do Judiciário Federal;

2) Organizações Comunitárias de Defensores Públicos (Community Defender Organizations ou CDO’s): são entidades privadas de assistência jurídica, sem fins lucrativos, cujos membros são advogados privados que atuam em regime de dedicação exclusiva. Também desempenham suas atividades jurídicas mediante repasse de verba do Judiciário Federal e operam sob a supervisão de um Conselho de Diretores, que escolhe o Diretor Executivo da Organização, dotado de atribuições idênticas às do Defensor Público Federal Chefe e com mandato por tempo indeterminado;

3) Advogados cadastrados no “painel do CJA”: são advogados privados que atuam em caráter subsidiário, prestando assistência jurídica gratuita de forma não exclusiva. Indicados pela Corte Federal de cada Estado a partir de um cadastro prévio, atuam em circunstâncias e casos pontuais, sendo também remunerados pelo Judiciário Federal. Cada Corte Distrital dos EUA possui autonomia para estabelecer critérios específicos para recrutamento destes profissionais[3].

Essa estrutura restringe-se à prestação de uma assistência jurídica segmentada, porquanto limitada à esfera penal. Ela é totalmente dependente do Poder Judiciário, em termos orçamentários inclusive. A própria decisão a respeito da existência de vulnerabilidade cabe ao Juiz, na audiência inicial em que o acusado é informado de seus direitos, das imputações contra ele dirigidas e, ainda, a oportunidade de dizer se “deseja solicitar ao Tribunal a nomeação de defensor público, por ser carente”.

Nenhuma das entidades acima descritas é dotada de autonomia administrativa ou financeira. Seus integrantes não são assegurados pela garantia da independência funcional. Além disso, nem mesmo aqueles que integram as FDOs são concursados. Ademais, uma atuação casuística “mais combativa” pode ocasionar, inclusive, uma reclamação judicial contra o profissional.

Para piorar, esse sistema não alcança as demandas de natureza cível, porquanto a Suprema Corte estadunidense interpreta restritivamente a sexta emenda da Constituição, entendendo que ela que assegura o direito à assistência jurídica apenas aos acusados em processos criminais. Isso, contudo, segundo explica Cirino, não impede que alguns Estados americanos nomeiem advogados para a defesa de pessoas carentes, em demandas cíveis em que podem perder a liberdade.

Assim, a assistência jurídica no âmbito cível depende da atuação caritativa, advinda de “entidades sem fins lucrativos, de natureza privada ou pública”. A instituição pública que exerce a referida atividade é a Legal Services Corporation (LSC), cujo financiamento é deficitário e decrescente. Além disso, existem severas restrições à sua atuação na esfera cível:

Christine Freeman pontua que a atuação da LSC tem rendido polêmicas: o valor do repasse para financiamento da assistência jurídica civil tem oscilado para menor, em prejuízo da sua atividade e há diversas restrições referentes aos tipos de casos cíveis que podem ser patrocinados por meio de fundos da Legal Services Corporation. São exemplos de restrições impostas à atuação cível: instauração e acompanhamento de class actions e atuação em ações civis em benefício de pessoa encarcerada, como autora ou ré, assim como qualquer procedimento administrativo voltado para questionar as condições de encarceramento[4].

Portanto, a hibridez confusa do modelo estadunidense, o seu limitado âmbito de incidência, seus problemas de subfinanciamento, sua alta dependência orçamentária e estrutural do Poder Judiciário, entre outros problemas já relatados, fazem dele um sistema pragmaticamente pouco interessante. Sua relação custo x benefícios é incrivelmente baixa para as pessoas vulneráveis. Certamente, vantajosa apenas para aqueles que se beneficiam com a perpetuação da submissão de grupos historicamente excluídos da sociedade hegemônica.

Por tudo isso, tanto o modelo pro bono, na sua versão pura, quanto o modelo estadunidense, maximizam apenas os custos sociais em troca de um benefício ínfimo para os assistidos. Nem mesmo utilitária ou pragmaticamente eles fazem frente ao modelo do “salaried staff”, adotado no Brasil em relação à Defensoria Pública. Este diagnóstico também alcança o modelo judicare.

A superioridade do modelo público, tanto do ponto de vista orçamentário, quanto do ponto de vista da promoção emancipatória de direitos fundamentais, é justamente o que se pretende demonstrar com este e os demais textos que em breve serão publicados nesta Tribuna.

[1]DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira. Direito à Saúde em Tempos de Crise: entre o direito e a política. Belo Horizonte.  Arraes Editores, 2018, p. 218-238.

Autores

  • Brave

    é recém-aprovado no XXVI Concurso para Defensor Público substituto do Estado do Rio de Janeiro e pós-graduado em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

  • Brave

    é assessor jurídico na Procuradoria da República de Minas Gerais, especialista em Direito Constitucional pelo IEC-PUC-MG, mestre em Direito Público na PUC-MG e professor de Introdução ao Estudo do Direito e Teoria da Constituição no Izabela Hendrix.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!