Paradoxo da Corte

Conhecimento ex officio da simulação na jurisprudência do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

18 de fevereiro de 2020, 8h00

Verifica-se a simulação quando as partes manifestam uma vontade contrária àquela verdadeira, com intuito de aparentar um negócio jurídico que não corresponde com aquele que efetivamente almejam.

Na verdade, trata-se de uma declaração enganosa de vontade, visto que ambos os contratantes não pretendem realizar o negócio que se mostra à vista de todos, e sim produzir apenas uma situação aparente.

No vigente Código Civil, a simulação vem regida no artigo 167, que não mais a insere entre os defeitos dos atos jurídicos. A simulação encontra-se disciplinada entre as invalidades do negócio jurídico, sendo causa de nulidade, e não de anulabilidade, como era contemplada no diploma revogado.

A simulação relativa, que se difere da absoluta, ocorre quando as partes pretendem realizar determinado negócio, que emerge camuflado por outro aparente, em desacordo entre a vontade interna e a declaração.

Esta espécie de simulação resulta de dois negócios: um deles é simulado, aparente, destinado a enganar, sendo o outro dissimulado, oculto, contudo, verdadeiramente desejado. O negócio aparente, simulado, presta-se apenas a ocultar a efetiva intenção dos contratantes. A conclusão que se extrai desse tipo de simulação é a de que a validade do negócio subjacente somente ocorrerá se a lei não for contrariada ou ainda se não houver prejuízo a terceiros, desde que o negócio jurídico realizado seja válido na substância e na forma, em consonância com o disposto no já referido caput do artigo 167 do Código Civil, que tem a seguinte redação: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Segundo esclarece Sílvio de Salvo Venosa, “para admitir-se a validade ao negócio jurídico dissimulado, há necessidade de que a declaração de vontade simulada deverá conter os requisitos de forma exigidos à relação dissimulada, em consonância com os preceitos da lei civil” (Direito Civil – Parte geral, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 2018, pág. 113).

É dizer, se o ato oculto não prejudicar terceiros e tampouco atentar contra a lei, o ato que o dissimula pode perfeitamente ser afastado, assumindo a vontade perante todos a sua vertente real. Esse é o sentido da lei, expressado no indigitado artigo 167 do Código Civil.

Saliente-se ainda que, na vigência do Código Civil de 1916, a simulação configurava nulidade relativa, ou simples causa de anulabilidade, exigindo alegação pelo interessado e prova do prejuízo (artigo 152). O Código Civil de 2002, no entanto, passou a tratar a simulação como vício social, demonstrando o reconhecimento, pelo legislador, de que os malefícios do ato simulado são de tal monta que rompem as barreiras individuais dos participantes do ato, ou negócio jurídico (cf. Ricardo de Carvalho Aprigliano, A ordem pública no direito processual civil, São Paulo, Atlas, 2011, pág. 42).

Como as demais causas de nulidade, a simulação pode ser pronunciada de ofício, não sendo suscetível de confirmação nem convalesce pelo decurso do tempo (artigos 168 e 169 do Código Civil).

Posiciona-se, aliás, nesse mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, como se colhe de importante precedente da 1ª Turma, no julgamento do Recurso Especial 1.582.388/PE, relatado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, textual:

“A simulação no Código Civil de 1916 era causa de anulabilidade do ato jurídico, conforme previsão do seu art. 147, II. O atual Código Civil de 2002, considera a simulação como fator determinante de nulidade do negócio jurídico, dada a sua gravidade.

O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é de que a nulidade absoluta é insanável, podendo assim ser declarada de ofício.

Logo, se o juiz deve conhecer de ofício a nulidade absoluta, sendo a simulação causa de nulidade do negócio jurídico, sua alegação prescinde de ação própria”.

Importa ainda registrar que esta questão não se apresenta nova perante diversas cortes de Justiça de nosso país, incluindo-se, por certo, o Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, mais recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de prover, à unanimidade de votos, o Recurso Especial 1.501.640/SP, da relatoria do ministro Moura Ribeiro, decidindo, textual:

“O Tribunal de origem, ao analisar o conjunto fático-probatório dos autos, concluiu que o negócio jurídico celebrado pelas partes, consistente na celebração de contrato de mútuo com necessidade de investimento da quantia obtida em debênture de sociedade coligada, não padecia de vício de consentimento (erro ou dolo). Os negócios assim realizados não pretenderam estimular em momento algum o desenvolvimento das atividades empresariais das recorrentes, e sim camuflar a prática de negócio diverso, dissimulado por parte da instituição financeira.

Com o advento do CC/02 ficou superada a regra que constava do artigo 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. O artigo 167 do CC/02 alçou a simulação como causa de nulidade do negócio jurídico. Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra (Enunciado 294/CJF da IV Jornada de Direito Civil). Precedentes e Doutrina.

O negócio jurídico simulado é nulo e consequentemente ineficaz, ressalvado o que nele se dissimulou (artigo 167, 2ª parte, do CC/02).

O endosso do título transmitiu o vício que o inquinava, inclusive a possibilidade de declarar nulo o negócio simulado. No caso, não se cogita da vedação de opor exceções pessoais relativas ao emitente do título e ao endossante, mas, ao contrário, de vício na emissão do título, que o acompanha desde o nascedouro e não se convola com endossos sucessivos.

A inoponibilidade das exceções pessoais também não se aplica à massa falida, composta em seu aspecto objetivo pelo acervo patrimonial outrora pertencente a sociedade falida, uma vez que ela apenas sucede essa última nas relações jurídicas por ela mantidas, não sendo possível considerá-la terceira em relação a negócios celebrados pela sociedade cuja quebra foi decretada.

Considerando que o TJ-SP reconheceu a higidez do negócio jurídico (contrato de mútuo, cédulas de crédito bancário e debênture), quando deveria qualificá-los como relativamente nulos pela dissimulação aqui pronunciada, o caso é de se declarar exigível apenas a quantia que beneficiou a recorrente e outros, conforme vier a ser apurado em processo adequado já que não há certeza quanto restou em favor daqueles…”.

Esse entendimento, por sua vez, foi, em sequência (20.8.2019), explicitamente secundado pela 4ª Turma — circunstância que bem revela a posição convergente da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça —, que, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.451.971/SP, com voto condutor do ministro Raul Araújo, confirmou, igualmente, existir simulação nos negócios jurídicos análogo àquele retratado no precedente acima invocado, nos quais se exigia a formalização de “operação casada”, ao assentar que:

“O Tribunal de origem, com arrimo no acervo fático-probatório carreado aos autos, concluiu que foi comprovada a simulação (CC, artigo 167) no ajuste entre as partes, ensejando a nulidade do negócio jurídico. A pretensão de alterar tal entendimento, considerando as circunstâncias do caso concreto, demandaria o revolvimento de matéria fático-probatória, o que é inviável em sede de recurso especial, conforme preconiza a Súmula 7/STJ.

‘A inoponibilidade das exceções pessoais também não se aplica a massa falida, composta em seu aspecto objetivo pelo acervo patrimonial outrora pertencente a sociedade falida, uma vez que ela apenas sucede essa última nas relações jurídicas por ela mantidas, não sendo possível considerá-la terceira em relação a negócios celebrados pela sociedade cuja quebra foi decretada’ (REsp 1.501.640/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, 3ª Turma, julgado em 27.11.2018, DJe de 06.12.2018).

Estando a decisão recorrida em consonância com a jurisprudência desta Corte, o apelo especial encontra óbice na Súmula 83/STJ”.

Diante destes fundamentos, pode-se extrair as seguintes teses que atualmente predominam na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

(I) a simulação é causa de nulidade, podendo ser decretada ex officio, ressalvando-se, quando for possível, a higidez do negócio jurídico dissimulado;

(II) sendo reputado nulo o negócio jurídico pela simulação relativa, torna-se possível a compensação parcial do crédito aparente com a dívida aparente, para extinguir o ato simulado e dar eficácia ao ato oculto;

(III) o endosso dos títulos transmite o vício que eles contêm; e

(IV) a massa falida não é terceira, pois, sucede a empresa falida na medida dos direitos que esta possui.

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