Princípio do contraditório

Veja como o STJ tem admitido e julgado a prova emprestada

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16 de fevereiro de 2020, 14h37

A prova que será usada pelas partes e pelo juiz é produzida no próprio processo. No entanto, a admissão de uma prova emprestada — produzida em outro processo — pode ser justificada pela necessidade de otimização, racionalidade e eficiência da prestação jurisdicional.

O Código de Processo Civil trata, em seu artigo 372, da possibilidade de o magistrado validar o empréstimo, dispondo que "o juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório".

Para a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, "é inegável que a grande valia da prova emprestada reside na economia processual que proporciona, tendo em vista que se evita a repetição desnecessária da produção de prova de idêntico conteúdo, a qual tende a ser demasiado lenta e dispendiosa, notadamente em se tratando de provas periciais na realidade do Poder Judiciário brasileiro".

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Admissão de uma prova emprestada pode ser justificada pela necessidade de otimização, racionalidade e eficiência da prestação jurisdicional.
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Em 2014, no julgamento do EREsp 617.428, por unanimidade, a Corte Especial do STJ estabeleceu que a prova emprestada não pode se restringir a processos em que figurem partes idênticas, sob pena de se reduzir excessivamente sua aplicabilidade, sem justificativa razoável para tanto.

"Independentemente de haver identidade de partes, o contraditório é o requisito primordial para o aproveitamento da prova emprestada. Portanto, assegurado às partes o contraditório sobre a prova, isto é, o direito de se insurgir contra a prova e de refutá-la adequadamente, afigura-se válido o empréstimo", afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

Os recorrentes pediam que a prova pericial emprestada não fosse admitida, por não figurarem as mesmas partes no processo em que ela foi produzida. O pedido foi negado pelo colegiado.

Valoração da prova
A 6ª Turma empregou o mesmo entendimento ao negar provimento a o REsp 1.561.021, no qual se discutia a legitimidade de prova emprestada. Ali, o recorrente alegou que as declarações de uma testemunha não foram produzidas em ação entre as mesmas partes nem obtidas com respeito ao contraditório e ao devido processo legal.

Prevaleceu o entendimento do ministro Nefi Cordeiro, que lembrou que as provas no processo penal só exigem forma quando a lei o prevê; caso contrário, devem apenas ser submetidas às garantias do contraditório e da ampla defesa.

Ao considerar legítimo o empréstimo no caso, o ministro disse que até seria possível discutir os critérios de valoração da prova: se o depoimento teria o valor de um testemunho colhido no mesmo processo, sob o contraditório das mesmas partes; se teria o valor de um informante, ou de um documento, ou, ainda, se a prova emprestada valeria como um mero indício. "Mas válida essa prova é, não violando nenhuma norma legal, e não violando tampouco o princípio constitucional do contraditório", afirmou.

Dados fiscais
Em novembro de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 1.055.941, decidiu que é legítimo o compartilhamento de informações fiscais com o Ministério Público e outros órgãos para investigação criminal, sem autorização prévia do Poder Judiciário.

Antes, a 1ª Turma do STF já havia entendido que era possível usar as informações obtidas pelo fisco, por meio de regular procedimento administrativo fiscal, para fins de instrução processual penal.

A turma se baseou no julgamento do RE 601.314 – também com repercussão geral –, no qual o plenário do STF declarou a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, considerando dispensável a autorização judicial para que a Receita coletasse informações bancárias de contribuintes.

Seguindo a orientação, em março de 2018, a 6ª Turma do STJ alinhou a jurisprudência com a da 1ª Turma do STF e negou Habeas Corpus. No caso, o homem alegava a ilicitude de prova que ensejou a deflagração da ação penal, pois esta se originou do compartilhamento com o MP de dados bancários obtidos diretamente pela Receita Federal, sem autorização judicial.

José Alberto SCO/STJ
Ministro Sebastião Reis Jr aplicou entendimento já firmado no STF sobre compartilhamento de dados fiscais sem sem autorização judicial
José Alberto SCO/STJ

O relator do habeas corpus no STJ, ministro Sebastião Reis Júnior, aplicou o entendimento do Supremo e considerou que não houve ilicitude das provas que embasaram a denúncia.

"Assim como o sigilo é transferido, sem autorização judicial, da instituição financeira ao fisco e deste à Advocacia-Geral da União, para cobrança do crédito tributário, também o é ao Ministério Público, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos, se constate fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária", disse.

Processo administrativo
Outra posição importante da jurisprudência do STJ é a possibilidade de usar provas emprestadas de inquérito policial e de processo criminal na instrução de Processo Administrativo Disciplinar, desde que assegurados o contraditório e a ampla defesa. O entendimento está previsto na Súmula 591, aprovada em 2017 pela 1ª Seção.

De acordo com a jurisprudência, é possível usar interceptação telefônica emprestada de processo penal no PAD, desde que autorizada pelo juízo criminal – responsável pela preservação do sigilo de tal prova –, além de observadas as diretrizes da Lei 9.296/1996.

No MS 17.534, um dos precedentes que embasaram a súmula, o ministro Humberto Martins reconheceu a possibilidade de uso de interceptações telefônicas na forma de provas emprestadas. Ele relatou recurso de um policial rodoviário federal que teve a demissão decretada com base em provas de ação penal.

O ministro destacou que, no caso, foram observados os critérios necessários para a utilização desse tipo de prova: a devida autorização judicial e a oportunidade de o servidor contraditar o seu teor ao longo da instrução.

Cooperação internacional
O compartilhamento de provas também pode extrapolar os limites do território nacional. Ao analisar o uso de prova produzida na Suíça em processo penal no Brasil, na APn 856, a ministra Nancy Andrighi explicou que a cooperação jurídica internacional é o instrumento por meio do qual um Estado – com base em acordos bilaterais – pede ou recebe de outro Estado subsídios para instruir procedimento jurisdicional de sua competência.

Na ação penal no STJ, o acusado sustentou a ilegalidade de todas as provas produzidas contra ele, pois seriam derivadas de provas declaradas ilícitas pela Suíça, e disse que o envio delas ao Brasil só foi autorizado porque a legislação daquele país – ao contrário da brasileira – permite o uso de provas ilícitas, após um juízo de ponderação.

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DivulgaçãoMinistra Nancy Andrighi destacou importância da cooperação jurídica internacional como instrumento para pedir ou receber subsídios em processo

A relatora afirmou que o encaminhamento das provas ao Brasil somente foi admitido em razão de as provas serem legítimas, conforme o parâmetro de legalidade da Suíça. "Como a prova foi considerada admissível segundo o padrão legal suíço, não há de ser questionada a validade de seu envio aos órgãos responsáveis pela persecução penal no Brasil", afirmou.

Cartas rogatórias
Em 2017, o Brasil aderiu à Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial. Promulgado pelo Decreto 9.039/2017, o acordo facilita a colheita de provas entre o Brasil e dezenas de outros países. A convenção destaca alguns temas nos quais cada país pode apresentar reservas e declarações para adaptá-la aos termos da sua própria legislação.

Entre elas, no artigo 23, o Brasil declara que não cumprirá as cartas rogatórias que tenham sido emitidas com o propósito de obter o que é conhecido nos países do Common Law (sistema jurídico diverso do brasileiro) pela designação de pre-trial discovery of documents. Esse procedimento prévio de produção de provas é conduzido diretamente pelas partes, com nenhuma – ou quase nenhuma – intervenção judicial.

Responsável por avaliar e conceder às cartas rogatórias, compete ao STJ interpretar a aplicação do artigo 23 e estabelecer um posicionamento quanto à sua abrangência, às limitações, declarações e reservas.

Relevância da prova
Ao analisar a CR 13.559, o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, concedeu exequatur e determinou o compartilhamento de provas em poder da Procuradoria da República no Distrito Federal para instrução de ação na Justiça americana.

Em recurso, a parte investigada sustentou que a decisão afrontava o artigo 23 da Convenção de Haia, pois o pre-trial discovery of documents seria incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro.

O presidente do STJ afirmou que a ressalva feita pelo artigo 23 não configura impedimento à realização da diligência solicitada pela Justiça estrangeira. Em suas razões de decidir, o ministro destacou o parecer do Ministério Público Federal, segundo o qual essa reserva "não deve ser entendida como vedação absoluta à produção de provas no estrangeiro".

"Isso significaria negar o direito fundamental de obter a devida prestação jurisdicional. O que deve ser entendido é que a autorização para a produção da prova no estrangeiro exige maior cuidado para que, em cada caso, seja examinada a relevância e a pertinência da prova rogada, afastando assim o pedido abusivo ou meramente exploratório", afirmou o MPF.

O objetivo do artigo 23 – afirmou o parecer – não é bloquear a busca de provas no estrangeiro, mas evitar a coleta abusiva da prova, especialmente quando dirigida contra particulares.

No caso em análise, o presidente do STJ observou que "o objeto da presente carta rogatória não atenta contra a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana ou a ordem pública". Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

EREsp 617.428
REsp 1.561.021
HC 422.473
MS 17.534
APn 856
CR 13.559

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