Opinião

O pêndulo da fidelidade partidária

Autor

  • Rafael Araripe Carneiro

    é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

16 de fevereiro de 2020, 15h24

O princípio da fidelidade partidária, que consiste no dever de disciplina dos filiados às regras dos partidos políticos, teve sua a relevância iluminada pelo Supremo Tribunal Federal no ano 2007, quando a Corte decidiu que o parlamentar que deixa a agremiação sem justa causa perde o mandato eletivo. A Suprema Corte reconheceu explicitamente que o destinatário do voto viabilizador da candidatura proporcional é o partido político e que a vontade do eleitor resta fraudada pela ruptura injustificada do vínculo partidário. Desde então reduziu-se drasticamente o troca-troca partidário e o debate ideológico dentro das agremiações voltou a estar mais presente.

De lá para cá, alguns ajustes foram feitos para conciliar a disciplina partidária com a proteção de outros princípios constitucionais, como a soberania do voto popular. Em 2015, por exemplo, o STF decidiu que a desfiliação sem justa causa não resulta na perda dos mandatos obtidos por eleições majoritárias (presidente da República, senadores, governadores e prefeitos), pois nessas hipóteses o destinatário do voto é o próprio candidato. Também no ano de 2015 o legislador estabeleceu uma janela partidária sazonal que permite a mudança de partido político, sem perda de mandato eletivo, sempre ao final de cada legislatura.

Essas arrumações não afetaram o cerne da fidelidade partidária, mantendo as agremiações na centralidade da busca dos consensos políticos e racionalização dos trabalhos congressuais. Acreditava-se haver encontrado, assim, posição de equilíbrio entre fidelidade partidária e liberdade parlamentar. Nos últimos meses, porém, o Tribunal Superior Eleitoral, a quem compete conformar o conceito de justa causa para a desfiliação partidária, deparou-se com situações que podem colocar em risco os avanços conquistados. Destacam-se os casos que podem ser chamados de infidelidade ideológica em bloco e expulsões forçadas.

A infidelidade ideológica em bloco é o descumprimento de decisão partidária por um conjunto de parlamentares exclusivamente por convicções pessoais. Não decorre de mudança do programa partidário ou da falta de transparência e democracia no processo decisório interno. O grupo de parlamentares simplesmente não se sujeita à deliberação da maioria do partido e procura preservar a liberdade individual de cada qual como parlamentar. Diante da natural punição interna, busca na Justiça o reconhecimento de justa causa para a desfiliação sem perda do mandato.

Essas situações costumam ocorrer em votações de temas altamente controvertidos de grande repercussão nacional, como na recente Reforma Previdenciária. Relacionados a ela chegaram ao TSE diversos casos e caberá à Corte se debruçar sobre o tema em futuro próximo. Considerando a firme jurisprudência da Justiça Eleitoral na proteção da fidelidade partidária, não é de se esperar qualquer solução que libere indiscriminadamente os parlamentares. Afinal, é razoável exigir maior fidelidade, responsabilidade e coerência política nas deliberações mais relevantes para o país, até porque os partidos são, como o próprio nome diz, apenas parte do todo.

A hipótese da expulsão forçada ocorre quando o parlamentar, indiscutivelmente infiel, abandona totalmente a linha ideológica de agremiação pela qual se elegeu e viola reiteradamente as orientações partidárias, não restando outra opção à agremiação senão a expulsão. O Plenário do TSE, em composição antiga, decidiu que a perda do mandato somente poderia ocorrer nas hipóteses de desfiliação voluntária. A partir daí dispararam tentativas de burla à fidelidade partidária Brasil afora, com vereadores, deputados estaduais e federais forçando deliberadamente a desfiliação para poderem migrar livremente a outros partidos a depender da conveniência do momento.

Dessa forma, o tema deverá ser revisitado em breve pela Corte, sendo leading case (Pet 0600601-84.2019.600.0000, TSE, Relator Ministro Luís Roberto Barroso) o processo envolvendo o deputado federal que foi expulso do partido pelo qual se elegeu após votar mais de 80% das vezes contra as orientações da liderança partidária e ser reincidente no descumprimento de decisões de fechamento de questão. Igualmente aqui parece ser necessária solução equilibrada, que evite a perseguição interna do parlamentar, mas igualmente impeça a sua indisciplina deliberada. Se a desfiliação imotivada gera a perda do mandato por infidelidade, com maior razão se a desfiliação é resultante da própria infidelidade. Desfiliação, voluntária ou por expulsão, afeta a representatividade popular e o jogo de forças no parlamento. 

Confia-se, portanto, que o TSE definirá critérios objetivos para solucionar essas controvérsias, mantendo protegido o âmago do princípio da fidelidade partidária e sem permitir retrocessos às conquistas obtidas desde 2007. O ministro Celso de Mello, decano do Supremo, ensina que a ruptura dos vínculos de caráter partidário subverte o sentido das instituições e compromete o modelo de representação popular. Soluções perfeitas dificilmente existirão, mas é importante lembrar o que o jurista Hans Kelsen há muito lecionava: só a ilusão ou a hipocrisia pode acreditar que a democracia é possível sem os partidos políticos.

Autores

  • é sócio-fundador do Carneiros Advogados Associados, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt (Berlim), professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), coordenador do Grupo de Improbidade Administrativa do IDP e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-DF.

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