Embargos Culturais

James Boyd White e a concepção de justiça como exercício de tradução

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca
James Boyd White (nasceu em 1938) é um professor norte-americano, por muitos apontado como o pai-fundador do movimento Direito e Literatura. Seu livro mais importante é The Legal Imagination, onde explora fronteiras e possibilidades entre a ficção e o jurídico. Aproximou Justiça e tradução. A Justiça seria uma forma interpretativa de ideais humanos, entre eles a paixão. Por isso, sua aparente (ou real) relatividade. Não se traduz da mesma forma uma determinada expressão ou palavra. Não se decidem da mesma forma conflitos que guardam muita semelhança.

Nessa aproximação, ao invés de definir justiça, White partiu de direção inversa. Principiou por explicar o que entendia por tradução. Uma arte, no sentido não necessariamente estético de esforço de se enfrentar o impossível, porque há traduções inegavelmente impossíveis. Imagino o tradutor de Jorge Amado para o alemão. Dura tarefa. Ou os tradutores de Joyce (Ulisses) ou de Salinger (Apanhador nos Campos de Centeio) para nossa língua. Muito se perde. Ou do Padre Anchieta pensando uma gramática de tupi.

A tradução seria o confronto de tentativas de construção de pontes entre instâncias, línguas e pessoas. A tradução ocuparia espaço onde só há descontinuidades. A Justiça, nesse sentido, também seria uma busca de pontes que ligariam pontos distantes.

A tradução passa pelo reconhecimento do outro, o artífice do texto original. Para White é este o centro de toda a significação. Há exigência de reconhecimento e de descoberta. White observa metaforicamente que a tradução demanda que se reconheça a língua traduzida, bem como os limites da própria expressão, para a qual se traduz a mensagem original. A boa tradução não seria domínio, aquisição do pensamento do outro; a boa tradução seria respeito para com o pensamento alheio, vertido para a língua própria. A maior parte dos textos da tradição literária conhecemos por tradução.

Para o professor norte-americano, a tradução não seria mera operação mental, por meio da qual o tradutor se apropriaria de determinado material, recompondo-o, em sua natureza textual. A tradução é relação entre seres humanos. Evoca imagens, pensamentos e modelos de vida social.

O Direito é incluído neste último grupo, e esse é o ponto central da obra de White. O Direito é interpretação. Divide com a vida uma perene atividade de cognição. Leitura e interpretação de textos, tomando-se estes últimos em seu sentido mais lato possível, preenchem a vida. Viver de algum modo é interpretar. Respondemos aos textos que enfrentamos, com nossos próprios textos, que preparamos a partir de todos os textos com os quais contamos. Tem-se uma profusão de textos.

Tradução e integração aproximam-se. São manifestações da vida interpretativa. Para White a tarefa da tradução também educa. E o faz na medida em que se refere à necessidade de integração. Humanismo puro. A experiência da tradução é radical porque coloca em dúvida o sentido que fazemos de nós mesmos. Mas também é aprazível (felicitous) porque nos liberta momentaneamente da prisão de nossos modos de pensar e de ser. Não se traduziriam apenas textos, linguagens e culturas. Traduzimos experiências.

Traduções aproximam (e afastam) indivíduos e grupo. White reconhece a impossibilidade de compreensão completa ou de reprodução absoluta de significantes originários. A tradução pode redundar na formulação e na imposição de modelo ético e político, que informaria o direito.

A tradução permite que se honre o outro, possibilitando-se ainda a compreensão de quem esteja interpretando. A tradução lembra reação que temos para com um quadro ou para com uma música; é que não apenas olhamos ou escutamos; falamos sobre nossas experiências, na medida em que olhamos ou escutamos. Ouvir um fado, por exemplo, é uma experiência de saudade e de reconciliação com o impossível. Depende da hora. E da companhia, ou da ausência da companhia.

A tradução também reconhece nossas limitações e nossos conflitos. É fato no mundo acadêmico. Tem-se uma competição entre tradutores. Psicólogos e economistas, no exemplo de White, tomam-se por tradutores. Psicólogos querem reduzir a experiência humana à dimensão do conflito psicológico. Economistas pretendem sintetizá-la nas dimensões de troca. Quem traduz melhor? Os juristas, no outro lado, queremos reduzir a experiência à subsunção de normas. Trata-se de radicalismo, por meio do qual segmentos intelectuais pretendem tradução universal para os próprios termos nos quais transitam. Mais uma metanarrativa, diriam os pós-modernos.

O bom tradutor, continua White, é um definidor de conjunto de possibilidades éticas e intelectuais. Aproxima-se de quem se pode aprender. Com base em conceito mais empírico de traduzibilidade, White lembra que a advocacia é exercício explícito de tradução. O advogado conversa com seus clientes. Ouve histórias. Sua tarefa consiste em ajudá-lo a contar uma história. Deve narrá-la em todas as dimensões linguísticas possíveis. Deve dominar a linguagem do cliente, a linguagem do direito, das circunstâncias fáticas que o problema levanta. A conversa com o cliente é complexa. O advogado deve fazer com que seu cliente também compreenda o problema que trouxe, em seus termos normativos, descortinando possibilidades e prevendo consequências.

A quem cabe a decisão, o dono da toga, e da caneta, também cabe uma autoridade interpretativa. O juiz também é um tradutor. Traduz o conflito em forma de solução, que segue dimensão moldada pela experiência, cultura e valores que nem sempre é igual para todos os que litigam. Se todos seríamos iguais perante a lei, não se sabe se todos somos iguais perante a aplicação da lei.

Avançamos para o campo da crença nas instituições. Chega-se à fé sem certeza. A fé não exclui a dúvida, diria um crítico. A fé implica numa solução para a dúvida. A decisão judicial, assim, como um ato de fé, é palavra-chave para um problema. É tradução, pura e simples, da compreensão dos fatos da vida. Não exclui a paixão. Porque a paixão é a essência da vida. E a paixão, como tudo, é exercício de tradução, como a justiça, e suas formas de expressão. É o que intuo da mensagem de James Boyd White.

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