Opinião

Comentários sobre a exigência da confissão no acordo de não persecução penal

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15 de fevereiro de 2020, 6h02

1. Considerações preliminares sobre o acordo de não persecução penal
A partir da recente vigência do pacote "anticrime", em 23 de janeiro deste ano, observou-se um desencadeamento, no âmbito jurídico, de algumas discussões sobre a aplicabilidade do instituto do acordo de não persecução penal. Ao contrário do juiz de garantias e de outros trechos do pacote "anticrime" que foram suspensos pelo Supremo Tribunal Federal[1], o citado instituto já possui aplicabilidade nos processos em curso e, em razão disso, suscita diversos debates sobre a sua materialidade e alcance.

Antes de tudo, faz-se necessário salientar que a inovação legislativa, no que tange à regulamentação do acordo de persecução penal supera a antiga discussão acerca da possível inconstitucionalidade formal das resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público que previam o instituto do acordo de não persecução penal no Brasil até 2019[2]. Além disso, a previsão de tal instituto se alinha com a pretensão da formação de um sistema de justiça criminal pautado na consensualidade.

A par das discussões sobre a desequilíbrio de forças que inevitavelmente marca a celebração de tais ajustes, fato é que, com o surgimento do artigo 28-A no Código de Processo Penal, estabeleceu-se a legitimidade ao Ministério Público para propor acordo de não persecução penal “desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” diante dos requisitos de confissão formal e circunstancial prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, mediante as determinadas condições[3].

Dentre dessa exigência legal, questões práticas inevitavelmente surgem em torno da confissão exigida para fins de celebração do acordo. Assim, o presente artigo pretende trazer algumas considerações sobre implicações dessa confissão no contexto de um acordo celebrado sem formulação de hipótese acusatória e instauração de uma ação penal. Da mesma forma, pretende discutir a própria natureza da confissão e as consequências advindas com a revogação do acordo.

A partir de tais questionamentos, sublinha-se que o presente texto não busca esgotar o debate, mas sim oferecer argumentos para uma reflexão à luz do sistema acusatório, da prevalência dos direitos fundamentais e da lógica epistêmica da produção de um conhecimento.

2. Dimensões epistêmicas da confissão no acordo de não persecução penal
Ao mesmo tempo em que a confissão é exigida para a celebração do acordo de não persecução penal, a lei processual estipula a imposição de certos deveres ao investigado — como a prestação de serviço à comunidade e pagamento de prestação pecuniária, além do perdimento de bens e reparação do dano —, segundo previsão contida nos incisos do artigo 28-A do CPP.

Percebe-se que através da imposição de deveres a partir da mera confissão formal dos fatos, o acordo de não persecução penal inaugura um novo método de arbitramento de responsabilidade que passa ao largo de uma lógica epistêmica de produção de conhecimento, já que se antecipa a conclusão acerca do mérito do processo sem a concessão de qualquer contraditório à parte acusada, até porque não há a formulação formal de uma hipótese acusatória.

Nesse ponto, cabe lembrar o processo penal, como hoje o conhecemos, se caracteriza por ser um método de adjudicação de responsabilidade penal de alguém, possuindo uma “dimensão epistêmica incontornável”[4], tendo em vista que pressupõe a necessidade de comprovação da hipótese acusatória a partir da desincumbência de certos ônus e aproveitamento de chances processuais pelas partes, sob pena da obtenção de um provimento judicial desfavorável.

Assim, a verdade sob uma perspectiva representacionista — preocupada com a correspondência entre enunciado e a realidade —, não tem lugar dentro da lógica que vige no processo penal, pois que o objeto de prova é sempre a hipótese acusatória e nunca situações históricas, portanto, “o juízo de verdadeiro ou falso não incide sobre o fato em si, mas sobre a proposição/afirmação/enunciado a respeito da existência do fato”[5].

Nesse sentido, o estudo dos objetivos, origens e natureza do processo penal faz com que fique evidenciada o quão ilusória e estapafúrdia se revela a busca da “verdade real” no cotidiano da prática jurídica — ilusão essa que muitas vezes tem o objetivo de mascarar a violação de direitos e garantias da pessoa acusada —, pois que a demonstração de qualquer fato dentro do processo é uma questão “epistemológica e não ontológica”[6].

Assim, um processo penal que tenha reais compromissos com direitos fundamentais da pessoa acusada e se baseie na “pesquisa e demonstração dos fatos penalmente relevantes”[7] trabalha com uma concepção epistêmica da verdade, de acordo com a qual “a verdade de um enunciado corresponde (…) à existência de justificativas válidas para julgar-se verdadeiro um enunciado”[8].

A história nos ensina que nos primórdios do desenvolvimento de métodos de arbitramento de responsabilidade penal, essa preocupação com a categoria “verdade” simplesmente era inexistente, haja vista que, após o declínio do Império Romano do Ocidente, houve a intensificação do uso dos ordálios como métodos de resolução de todos os tipos de controvérsias. Consistiam os mesmos basicamente em “provações” físicas que eram impostas aos litigantes como forma de permitir, através da intervenção divina, a identificação da inocência ou a culpabilidade do sujeito que a ela se submetera[9].

A partir do ano de 1.215, a prática dos ordálios — com seus métodos da “prova d’água”, “caldeirão fervente”, “ferro incandescente”, dentre outros —, passa a ser paulatinamente substituída por métodos racionais de descoberta da verdade, representando uma “vitória do racionalismo sobre o misticismo, sendo, com boa razão, considerados uma etapa fundamental na história do direito probatório continental”[10].

Hoje, mais de oito séculos após o abandono do sistema de arbitramento de responsabilidades pautado pelos ordálios, “inovamos” ao adotar a imposição de deveres à pessoa investigada — como prestação de serviço e pagamento de prestação pecuniária —, sem nenhuma preocupação com a dimensão epistêmica da verdade.

Isso porque, a confissão, dentro de tal lógica, se prestaria tão somente a confirmar uma hipótese acusatória baseada em provas legalmente admitidas e desenvolvidas no decorrer de um procedimento válido, com possibilidade de intervenção das partes, porém não é isso que ocorre no acordo de não persecução penal.

3. Natureza da confissão e impossibilidade de produção de efeitos processuais
Considerando as dimensões epistêmicas de um processo penal e a caracterização da confissão como requisito para celebração do acordo de não persecução, algumas questões quanto à natureza jurídica da confissão e os limites de seus efeitos externos devem ser ponderadas, para se evitar o uso indevido dessa manifestação da pessoa investigada para fins outros que não seja a celebração do próprio acordo.

Em primeiro lugar, cabe sublinhar que a realização da “confissão” no contexto do acordo não se se dá no âmbito de um processo judicial, de modo a ser possível classificar tal ato como extrajudicial, vez em que não é realizada na presença de um juiz togado[11], podendo ser caracterizado tão somente como pressuposto de existência e requisito de validade do acordo.

Nesse sentido, sublinha-se a impossibilidade do espraiamento dos efeitos da confissão para fins outros, sob pena de transgressão a um sistema processual constituído na lógica acusatória, do contraditório, da ampla defesa e do princípio nemo tenetur se detegere (previsto no artigo 8º, parágrafo 2º, alínea “g”, do Pacto de San José da Costa Rica).

Nesse ponto, é conveniente, também, a referência ao exposto no artigo 197 do Código de Processo Penal e à própria exposição de motivos do CPP quanto ao fato de que a confissão, por si só, não constitui prova plena da culpabilidade do acusado.

Além de tais considerações, cabe ainda pensar registrar o quão incabível é a admissão da confissão realizada para fins de celebração do acordo de não persecução como elemento de prova, na medida em que tal confissão é realizada sem que o contraditório tenha sido sequer instaurado, uma vez que nenhuma acusação formal chega a ser formulada (sendo que nos casos dos processos em curso, o contraditório necessariamente é suspenso, assim como o próprio exercício da ação penal).

Portanto, impossível dissociar a confissão da lógica epistêmica do processo — que tem como objetivo a comprovação da hipótese acusatória dentro de um sistema legal de provas e sob o crivo do contraditório —, o que significa que a confissão realizada sem o exercício da ação penal (calcada sempre numa hipótese acusatória) não se presta para os fins do processo, mas tão somente como pressuposto para a celebração do acordo.

Por tal motivo, uma vez “quebradas” as condições do acordo, não há que se falar em utilização da confissão pela acusação para lastrear sua hipótese acusatória, da mesma forma que incabível a sua utilização como elemento de prova para embasar eventual decreto condenatório.

Assim, caberá à defesa impugnar qualquer tentativa de leitura da confissão em sede de audiência ou em qualquer outro momento processual, podendo tal ato ser caracterizado como indevido constrangimento à pessoa acusada, já que somente a confirmação dos fatos na presença de um juiz togado, com um processo criminal em curso e uma hipótese acusatória formulada, pode ser admitida como confissão para todos os fins legais.

Em relação à chamada confissão qualificada — isto é, aquela que ocorre quando a pessoa investigada, ou acusada, confirma a hipótese acusatória, mas apresenta justificativas, discriminantes ou exculpantes, para a prática do ato —, a lei não veda a celebração do acordo em tais casos, umas vez que o CPP, em seu artigo 28-A, é expresso em consignar “tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal”.

Assim, considerando a inexistência de qualquer diferenciação estabelecida pela lei, a recusa do Ministério Público na celebração de acordo de não persecução sob a justificativa de que a confissão se caracteriza como qualificada revela-se ilegal, sobretudo, se consideramos que a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que “a confissão, mesmo que qualificada, dá ensejo à incidência da atenuante prevista no artigo 65, III, "d", do Código Penal, quando utilizada para corroborar o acervo probatório e fundamentar a condenação”(EREsp 1.416.247, relator ministro Ribeiro Dantas, julgado em 22 de junho de 2016, DJe 28 de junho de 2016)

4. Conclusão
Ao fim, nota-se que o recente acordo de não persecução penal, a despeito de suprimir a discussão acerca da inconstitucionalidade formal das resoluções do Ministério Público, suscita debates envolvendo a inconstitucionalidade material de sua previsão, haja vista as transgressões de direitos secularmente resguardados pela ordem jurídica, tais como o da não autoincriminação, ao contraditório, a ampla defesa e ao próprio sistema acusatório.

Um dos pontos mais sensíveis na celebração do acordo é exigência legal da confissão formal e circunstanciada da infração penal, uma vez que, sem o exercício da ação penal, sob o crivo do contraditório e na presença de um juiz togado, não é possível admitir que esse ato projete efeitos outros que não a viabilidade da celebração do próprio acordo.

Interessante notar que em outros acordos de não persecução penal, ainda que não denominados dessa forma, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, previstos respectivamente nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/1995, não há qualquer exigência de confissão por parte da pessoa acusada, contentando-se a lei com a mera aceitação das condições formuladas pela acusação.

Possível concluir que a atribuição de responsabilidade penal através de um método em que ao mesmo tempo que prescinde da instauração de um contraditório, também impõe a formalização de uma confissão, é a marca de um Direito autoritário que não se contenta apenas com a punição, mas também com a assunção pública e expressa da culpa, ainda que não haja sequer formulação de hipótese acusatória a ser confirmada ou rebatida.

Assim, numa perspectiva epistêmica processual, por mais que haja vozes empenhadas em apresentar o acordo de não persecução penal como um instituto moderno e inovador, que preza pela celeridade e autonomia das partes dentro um conflito penal, é possível identificar traços de um arcaico sistema jurídico que insiste em voltar à ativa com roupagem nova, mas como o mesmo primitivo compromisso de atribuição de responsabilidade independentemente da produção válida de conhecimento.

[1] Ministro Luiz Fux suspende criação de juiz das garantias por tempo indeterminado. STF Notícias. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1>.

[2] Disponível em < http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/orientacoes/documentos/orientacao-conjunta-no-3-2018-assinada-pgr-006676712018.pdf>

[3] Reparação de dano, salvo impossibilidade; renúncia a determinados bens relacionados com o delito; prestação de serviços à comunidade; prestação pecuniária.

[4] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 13.

[5] Ibid, p. 22.

[6] Ibid, 22.

[7] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 33.

[8] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. Madri: Marcia Pons, 2016. P. 101.

[9] Ibid., p. 20.

[10] Ibid. 43.

[11] Nesse ponto, Ada Pelegrinni Grinover é categórica em afirmar que “não são provas, que o juiz possa utilizar para a formação de seu convencimento, as que foram produzidas em procedimentos administrativos prévios”. (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. As Nulidades do Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 117.

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