Diário de Classe

Hermenêutica e o controle de atos administrativo

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15 de fevereiro de 2020, 8h00

A complexidade das questões ligadas às funções estatais, sobretudo no que diz respeito à formulação da agenda pública, com a consequente formulação de políticas públicas, é indiscutível. Atividade tipicamente de cariz administrativo-constitucional, com prévio desenho legislativo, a concretização dessas políticas é viabilizada, não raro, inicialmente, por intermédio do recolhimento de “matéria-prima” fornecida por uma ampla base de dados e, além disso, pelo seu monitoramento, no sentido de serem observadas as consequências – positivas ou negativas -, de sua aplicação. Ocorre que tais atividades devem estar justamente adequadas aos parâmetros constitucionais, em especial a consideração acerca dos ideais do republicanismo e da democracia — do império da lei, em última instância. Por isso, sustenta-se que é necessário, para a implementação dessas políticas, e para todo o controle exercido sobre a administração pública, o devido acompanhamento por parte de órgãos democráticos, com legitimação em nível constitucional, que devem orientar as decisões construídas no poder Legislativo e Executivo para a adequação à Constituição. Dentre os vários órgãos capazes de desempenhar este papel, destacamos aqui a atuação das Cortes de Contas, que podem contribuir para a construção de políticas públicas de acordo com os princípios constitucionais.

Sob esse viés, portanto, é que se mostra necessário atentar para a contribuição que a hermenêutica jurídica tem para o papel desempenhado pelos tribunais de contas como ator importante nessa construção. Aliás, deve-se ressaltar que essa questão igualmente está ligada à relevante discussão sobre a judicialização da política e do ativismo judicial, uma vez que a produção, a execução e o acompanhamento de políticas, com consequências práticas, perpassam os campos do direito e da política. Nesse cenário é que se faz inarredável aduzir a função da autonomia do direito (veementemente defendida por Streck), que deve seguir como um filtro constitucionalmente posto às possíveis investidas advindas da seara política. Nesse contexto, esclarecedora a conclusão de Morbach[1]: “Essa é a melodia em que articulada a Crítica Hermenêutica do Direito; para entende-la, é preciso colocar-se em seu compasso. Daí por que me parece tão relevante compreender aquelas que me parecem ser as grandes noções em torno das quais gravitam todas as palavras que dão forma à obra de Streck: a primeira delas, a autonomia do direito”.

Sobre o tema da judicialização da política e do ativismo judicial, Lenio Streck — ler aqui — e Clarissa Tassinari[2] muito já escreveram sobre suas diferenças. De forma direta, Streck ensina que:

De novo, o que é ativismo judicial? Bom, é diferente da judicialização da política. No ativismo, ocorre um behaviorismo decisional. O magistrado, enfim, o judiciário coloca, no lugar dos juízos políticos do legislador, os seus próprios. Já a judicialização é contingencial. Ocorre em todos os países. A primeira é sempre ruim para a democracia (vejam o que já falava em 2009). A segunda, porque a decisão pode ser universalizável (vejam as três perguntas fundamentais da CHD que definem a diferença entre ativismo e judicialização), é suportável e até desejável. Afinal, leis inconstitucionais devem ser expungidas.

E esse pressuposto teórico deve estar presente em uma análise que pretende entender como ocorre o papel dos órgãos de controle (órgãos que não possuem membros eleitos) sobre projetos criados na seara tipicamente composta por representantes eleitos (Poder Executivo e Poder Legislativo). Dessarte, nitidamente pertinente, também aqui, para a análise desse controle sobre a execução de políticas públicas, os pressupostos atinentes à questão da legitimidade de instituições antimajoritárias, no sentido de garantidoras da Constituição, frente às decisões construídas sob o esteio da representatividade popular.

Claro que, nessa seara, não estamos trabalhando com decisões judiciais respeitante à solução de uma controvérsia jurídica específica entre litigantes. O campo de decisão em sede de políticas públicas, sobretudo em acompanhamento por parte dos tribunais de contas, ocorre numa dimensão mais ampla. Contudo, tal fato não afasta a possibilidade de trabalharmos com parâmetros, dentro de uma teoria da decisão, que busquem dar a relevância necessária para a necessidade de fundamentação constitucionalmente requerida. Nessa perspectiva, a Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida pelo jurista Lenio Streck, mostra-se como uma via adequada para a construção de respostas amparadas constitucionalmente. Isso porque, a rigor, A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) está consubstanciada no amálgama fundido na proposta de coerência e integridade de Ronald Dworkin e na hermenêutica filosófica de Gadamer, tendo como essencial a obtenção de respostas corretas no Direito, já que considera como inarredável a fundamentação e a justificação das decisões, que contribuem para decisões democraticamente construídas.

Muito ainda deve ser investigado acerca da natureza da atuação das Cortes de Contas — seus limites e possibilidades —, fato que está estritamente ligado ao conceito de democracia. As decisões desses órgãos têm impacto significativo nas ações estatais e, em última análise, repercutem na sociedade como um todo. Por isso, não é suficiente apenas uma abordagem superficial da sua natureza, mas sim um enfoque que possibilite entender melhor seu aspecto numa abordagem hermenêutica mais profunda — por isso essa aproximação com o manancial teórico referido, que privilegia a interpretação na análise.

A formatação atual do Estado brasileiro[3], plasmada na Constituição da República de 1988, reserva um espaço ao Controle Externo da administração pública que merece ser devidamente estudado. Com efeito, o olhar sobre o desenho reservado aos órgãos de controle permite entender melhor o papel dos Tribunais de Contas na construção de um Estado que tenha por fim promover os objetivos que se encontram no artigo 3º da Constituição de 1988, bem como promover a salvaguarda dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição). Nesse sentido, torna-se necessária a compreensão da natureza e dos limites das atribuições do controle externo, que é exercido pelos tribunais de contas, tendo-se como pressuposto sua adequação e sua capacidade indutora da dimensão democrática, levando-se em conta o fato de que os órgãos de controle surgem como uma necessidade de concretização dos fundamentos caros ao republicanismo.

Com efeito, embora não seja clara acerca da natureza dos tribunais de contas, a Constituição da República dispõe em diferentes artigos elementos que, conjugados, compõem o desenho dessa instituição. Em verdade, definir a sua natureza, de acordo com os elementos previstos no texto constitucional, parece um pouco como uma atividade de puzzle, em que o intérprete precisa juntar peças esparsas para construir um significado. Embora não seja a oportunidade para tal abordagem, apenas para registro é importante destacar que a pesquisa acerca da identidade dos tribunais de contas deve levar em conta razões de sua trajetória desde sua introdução no Direito brasileiro, por conta da Constituição de 1891.

Cabe salientar, ainda, duas questões relevantes acerca da matéria: Conforme Iocken, “[…] mesmo integrando o Poder Legislativo, o Tribunal de Contas não tem por missão desempenhar atividades tipicamente legislativas, uma vez que suas funções estão atreladas à fiscalização da atividade financeira do Estado”. Por outro lado, não há concordância quanto à questão acerca do desempenho de atividade jurisdicional pelos tribunais de contas. Inclusive, quanto a este ponto, Iocken [4] refere que “Há, ainda, o posicionamento de que a decisão dos Tribunais de Contas caminha numa terceira via, não sendo nem puramente administrativa nem tampouco eminentemente jurisdicional”.

Outra questão a se destacar concerne, nessa matéria, aos limites da decisão dos Tribunais de Contas tendo em vista, essencialmente, a questão que está relacionada com a discricionariedade/subjetividade das decisões. O que se pretende sublinhar, em suma, é que a decisão seja sustentada em fundamentação robusta, rigorosa, no sentido de identificarem-se formas de fugir da vontade do julgador, buscando-se uma decisão de cunho substantivo. Nesse aspecto, cabe referir o entendimento de Streck[5], quando assevera que:

A decisão (resposta) estará adequada na medida em que for respeitada, em maior grau, a autonomia do Direito (que se pressupõe produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do Direito, a partir de uma detalhada fundamentação.

A forma como se controla a administração pública, de uma forma ampla, está absolutamente ligada ao sucesso da democracia e aos ideais republicanos. Portanto, entendemos que aproximar a atuação dos órgãos de controle dos pressupostos hermenêuticos acima referidos permite fomentar que essa atuação fulcral no controle de recursos públicos e da aplicação de políticas públicas ocorra de acordo com parâmetros constitucionais fundamentalmente construídos.


[1] MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck.

[2] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[3] A respeito deste tema em particular, ver o artigo de Giancarlo Montagner Copelli – Um modo hermenêutico para desvelar o Brasil. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/diario-classe-modo-hermeneutico-desvelar-brasil

[4] IOCKEN, Sabrina Nunes, Políticas Públicas: o controle do tribunal de contas, Florianópolis: Conceito Editorial, 2014, p. 54.

[5] STRECK, L.L. Verdade e Consenso. 6.ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 654.

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