Opinião

Pela laicidade, Justiça dos EUA barrou ensino de design inteligente

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14 de fevereiro de 2020, 6h30

O novo presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Benedito Guimarães Aguiar Neto, segundo divulgou a imprensa, defende a abordagem educacional do criacionismo como contraponto à teoria darwiniana da evolução.

Aguiar Neto sustenta o criacionismo na forma do “argumento do desígnio”, hoje conhecido como “design inteligente”, que seria um dos argumentos clássicos na filosofia para provar a existência de Deus. Ao lado do argumento cosmológico, que remonta a Aristóteles, e do argumento ontológico de Santo Anselmo, o design inteligente baseia-se num raciocínio retroativo e teleológico: diante da perfeição, sobretudo da natureza, da assombrosa adaptação das espécies, da precisão do movimento dos astros, o defensor do design inteligente não pode deixar de entrever uma inteligência criadora. Um relógio de precisão não pode existir sem o relojoeiro que o tenha projetado. O argumento é defendido pelo personagem Cleantes nos Diálogos sobre a religião natural, do escocês David Hume. “Degraus de uma escada são claramente engendrados para que pernas humanas possam usá-los para escalar, e esta é uma inferência certa e infalível”, afirma Cleantes em meio às críticas do cético Filão.[1]

Não queremos discutir a propriedade do argumento do design, que nos parece em alguns momentos sedutor. Queremos enfatizar apenas que ele não é ciência, mas está além dela, e pode ter um caráter religioso, teológico, filosófico, mas não científico no sentido moderno do termo.

Esse é um problema dos dias atuais. Quer-se colocar todo tipo de conhecimento no mesmo patamar. Como já afirmei em outro escrito, devemos adotar uma concepção restritiva do que é científico, para não emprestarmos o status de ciência a pontos de vista ideológicos, concepções filosóficas e de moralidade.[2]

Não podemos aprofundar aqui o que é ou não científico, mas na linha do Círculo de Viena, inspirado pelos trabalhos iniciais de Ludwig Wittgenstein, ciência é somente aquilo que puder ser “verificado”, comprovado com validade intersubjetiva. E isso em geral é atributo das ciências naturais. O restante, a política, mesmo a economia, o direito, podem ser debatidos com argumentos racionais, sim, mas não gozam do mesmo estatuto epistemológico.

No caso do ensino do criacionismo nas escolas públicas, ainda que na modalidade do design inteligente, esbarraríamos no princípio da laicidade. Com efeito, nos Estados Unidos, a Suprema Corte chegou, com base nesse mesmo princípio (chamado entre eles de establishment clause), a proibir o ensino do criacionismo, reconhecendo a preponderância e a obrigatoriedade do ensino da teoria da evolução de Darwin (Epperson v. Arkansas, 1968; Edwards v. Aguilard, 1987).

Num caso envolvendo especificamente o ensino da teoria do design inteligente, que havia sido incluído no currículo das escolas de Dover, o juiz federal John E. Jones III, republicano nomeado por Bush, considerou a medida inconstitucional, também com base na laicidade, proibindo os órgãos educacionais envolvidos de “manter a política do ID [intelligent design] em qualquer escola dentro do distrito escolar de Dover, de obrigar os professores a denegrir a teoria científica da evolução e de obrigá-los a ensinar uma teoria religiosa alternativa conhecida como ID [intelligent design].” (Kitzmiller v. Dover Area School District, 2005) A decisão veio a se tornar definitiva, e o juiz sofreu ataques e ameaças por parte de setores evangélicos que teriam contribuído para sua indicação.[3]

O que muitas vezes não se diz é que a laicidade é também uma forma de proteção da religiosidade. Ela a retira do âmbito estatal, colocando-a no espaço privado, onde todas as religiões e crenças podem se desenvolver livremente, em pé de igualdade e sem ingerência das autoridades.

Pode haver também uma vantagem para a religião em ficar longe (e livre) dos estreitos limites da ciência e da razão, o que já se denominou em filosofia de fideísmo[4]. O próprio Wittgenstein, que inspirou o Círculo de Viena e sua rígida distinção entre o que é e o que não é científico, era profundamente místico. Segundo Wolfram Eilenberger, seu objetivo era subtrair as questões metafísicas das pretensões “objetivantes” da ciência. As afirmações metafísicas e religiosas extrapolam os limites do verificável, ele concluía; para o Círculo de Viena e seus discípulos, elas passavam a ser obsoletas, sem importância; para o mestre, seguiam cruciais e determinantes.[5]

Reconhecendo a importância das reflexões do professor Aguiar Neto sobre o design inteligente, pensamos, contudo, com Wittgenstein e os juízes americanos, que é fundamental separar as coisas.

[1] HUME, David. Diálogos sobre a religião natural. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 36.

[2] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Escola sem partido, verdade e democracia. In: PESSOA, Adélia Moreira; MACHADO, Carlos Augusto Alcântara; MACÊDO, José Eduardo de Santana (Orgs). O Direito em transformação. Aracaju: Evocati, 2019, pp. 283-309.

[3] Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Kitzmiller_v._Dover_Area_School_District. Acesso em 25/01/2019.

[4] Segundo Simon Blackburn, o fideísmo se mostra “pessimista sobre o papel da razão em alcançar o conhecimento das coisas divinas, enfatizando o mérito dos atos de fé.” Cf. BLACKBURN, Simon. Oxford Dictionary of Philosophy. Oxford : OUP, 2008, p. 134. (tradução nossa)

[5] WOLFRAM, Eilenberger. Le temps des magiciens. Paris: Albin Michel, 2019, p. 313.

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  • Brave

    é desembargador do TRF-3, pós-doutor pela Université de Lorraine, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Público pela Universidade de Toulouse (França).

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