Direitos fundamentais

Reforma da previdência e devido processo de elaboração normativa

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14 de fevereiro de 2020, 8h00

Mediante a promulgação pelo Congresso Nacional da Emenda Constitucional nº 103, de 2019, foi levada a efeito mais uma abrangente reforma do sistema previdenciário brasileiro, na esteira das demais reformas veiculadas, na vigência da Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF), em especial pelas Emendas Constitucionais nº 20/1998 e 41/2003.

Como se deu nos casos anteriores, a proposta de Emenda Constitucional, que deu origem diretamente a EC 103/2019, nomeadamente a PEC 06/2019, se fez preceder e acompanhar, no decorrer de sua tramitação, de ampla publicidade oficial com o intuito de, ao mesmo tempo, justificar as mudanças pretendidas, mas especialmente com o objetivo de captar a simpatia da opinião pública, mediante o recurso (não propriamente novo e raro no Brasil) a algumas comparações e/ou dados de questionável valor científico. Em suma, o discurso oficial — em parte falacioso como se verá na sequência! – largamente assumido pelos meios de comunicação, mais uma vez foi ancorado no argumento na indispensabilidade da reforma, na forma como proposta, para a saúde econômica brasileira, mas também para a supressão de privilégios injustificáveis e desigualdades, geradores de profundas iniquidades e injustiças.

Note-se que não se está aqui a pura e simplesmente refutar o entendimento de que ainda persistem, no sistema brasileiro de seguridade social — destaque aqui para a previdência —, algumas disfunções a recomendarem e mesmo exigirem correção, embora as significativas reformas já levadas a efeito desde a vigência da CF, até mesmo por serem dinâmicos os fatores que impactam, em diversas dimensões, qualquer sistema de segurança social no Mundo, todos, em maior ou menor medida, sofrendo constantes ajustes. Bastaria aqui, em caráter meramente ilustrativo, referir o fato demográfico, em especial o envelhecimento da população, ausência de recursos para o financiamento do sistema, a necessária manutenção do equilíbrio das contas públicas e competitividade da economia, problemas de justiça e equidade no âmbito da atual e para com as futuras gerações, entre outros.

Todavia, igualmente como ocorreu nas reformas anteriores, a ilegitimidade constitucional da EC 103 é em larga medida manifesta, razão pela qual já são várias as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive com larga convergência quanto aos pontos impugnados e os argumentos esgrimidos para dar sustentação às irresignações.

Do ponto de vista do controle substancial (material) da constitucionalidade da EC 103, os pontos centrais gravitam em torno da existência de violação aos limites materiais (expressos e implícitos) à reforma constitucional e/ou mesmo a inconsistência com outros princípios e regras da CF — como é o caso, em especial e aqui em caráter ilustrativo, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e de suas expressões particulares, do direito fundamental à previdência social, da proibição de confisco, da isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Mas não é este o ponto no qual se concentra a presente coluna, mas sim, o da ilegitimidade da reforma levada a efeito pela EC 103/19 por violação ao dever constitucional de um devido processo de elaboração normativa, integrante, por sua vez, do dever (e correspondente direito fundamental) a um devido processo legislativo, os quais exigem uma motivação consistente e adequada das opções tomadas pelo legislador e, no caso de leis em sentido apenas material, dos atores encarregados de sua edição. 

Com efeito, um dos elementos estruturantes de um Estado Democrático de Direito, do princípio do pluralismo político e do próprio princípio republicano, todos consagrados na condição de princípios e fundamentos no artigo 1º, caput, e artigo 1º, inciso IV, da CF, consiste na exigência de um devido processo legislativo, , que, por sua vez, implica um correspondente Direito Fundamental ao Devido Procedimento de Elaboração Normativa (DFPEN).

Os que exercem o Poder (e, em sentido amplo, vinculando todos os atores estatais, incluindo o Poder Judiciário), devem se justificar e prestar contar perante todos. Esse dever costuma ser também designado como accountability. Como lembram Gutmann e Thompson, “o princípio deliberativo da accountability requer que os representantes façam mais que tentar ganhar eleições e respeitar direitos constitucionais. Em uma democracia deliberativa os representantes devem justificar suas ações em termos morais”.[1]

Além disso, merece especial distinção a lição de Ana Paula de Barcellos, para quem, no núcleo do devido procedimento de elaboração normativa (DPEN), está o direito à obtenção de justificações.

Para melhor compreensão, vale conferir as próprias palavras da autora:

“Como já referido, o DPEN está ligado às exigências democráticas (nesse sentido é correto afirmar que ele pretende incrementar esse aspecto da qualidade da legislação), a outras previsões estruturantes do Estado brasileiro, ao direito fundamental de receber justificativas, e aos direitos fundamentais como um todo. É provável (e assim se espera, a rigor) que a apresentação de justificativas por quem quer que proponha normas, sem prejuízo de outras eventuais recomendações e das técnicas sugeridas pela legística, efetivamente incrementem a qualidade da legislação como um todo, sob diferentes perspectivas.” (grifos acrescentados)[2]

O processo deliberativo, no Parlamento, deve se apoiar em informações consistentes. Quanto a esse aspecto, a Emenda Constitucional n. 95 veiculou inovação importante: os projetos de lei que criam despesas obrigatórias ou instituem renúncia de receita devem ser acompanhados de estudo de impacto orçamentário e financeiro (ADCT, art. 113). Em decorrência dos princípios republicano (artigo 1º, caput, da Constituição de 1988) e do pluralismo político (artigo 1º, IV), exigências equivalentes de consistência deixem de ser impostas à deliberação sobre outras matérias. Em especial, decisões dotadas de maior complexidade e impacto social não podem ser tomadas sem que se garanta a “confiabilidade das premissas empíricas”, ao que alude Robert Alexy, no contexto da explicitação dos elementos essenciais ao teste de proporcionalidade.[3]

No direito estrangeiro, a consistência deliberativa tem sido exigida pela Corte Constitucional da Colômbia (CCC), que possui uma série de decisões que estabelecem o “dever de deliberação mínima”. Em razão desse princípio, a CCC exige respeito ao que chamam de “princípio da consecutividade”, de acordo com o qual cada iniciativa de lei deve vir precedida de debates para se converter em lei (C-277 de 2011).

O Tribunal Constitucional Federal Alemão, por sua vez, também tem exigido que as inovações legislativas se assentem em premissas empíricas confiáveis. Isso ocorreu, por exemplo, em decisão de larga repercussão, abarcando diversos aspectos de ampla reforma do sistema de segurança social, de 09.02.2010, em que se reafirmou o direito ao mínimo existência. 

Na ocasião, o Tribunal determinou que na definição do conteúdo e alcance das prestações exigíveis por parte do cidadão (o que abarca também outras medidas como alteração de alíquotas, idade para fruição de benefícios, natureza de benefícios, etc.), o legislador está obrigado a avaliar de modo responsável e transparente, mediante um procedimento controlável e baseado em dados confiáveis e critérios de cálculo claros, a extensão concreta das prestações vinculadas ao mínimo existencial[4].

Ora, a justificação/motivação das opções legislativas (ou mesmo dos demais atores estatais), como dever e direito fundamental implícito, implica em ônus do poder público e não do cidadão, e não pode se dar de forma genérica, desacompanhada dos elementos consistentes e confiáveis indispensáveis à sua demonstração em concreto.

Outrossim, como já adiantado, a falta das razões (elementos) confiáveis e transparentes e acessíveis ao conhecimento público e controle, prejudica severamente e mesmo pode, a depender do caso, tornar inviável o exercício do controle, seja ele social, seja ele por parte do Poder Judiciário, por sua vez, provocado pela cidadania.

No caso da EC 103, a violação do DFDEN resulta evidente e assume ainda maior relevância à vista dos deveres constitucionais específicos previstos nos artigos 40 e 201, CF, incluindo a demonstração objetiva, clara e confiável, estribada em dados cientificamente consistentes, de natureza econômica/financeira/atuarial da efetiva necessidade das medidas instituídas pela reforma previdenciária, em especial quando de natureza restritiva de direitos fundamentais.

Assim, à vista das sumárias considerações tecidas, não apenas é de se alertar para o problema, que não se aplica apenas ao caso da problemática reforma previdenciária, mas sim, enfatizar que o direito a um devido processo legislativo e, nesse contexto, de um direito fundamental ao devido processo de elaboração normativa e de justificação das opções dos órgãos legiferantes, é algo que urge seja levado a sério tanto pelos atores estatais (inclusive no caso do Poder Judiciário, no exercício do seu poder/dever de controle de constitucionalidade), quanto pela sociedade civil. Do contrário, a já combalida democracia representativa (não apenas a brasileira) corre o risco de se esvaziar ainda mais, e, o que é pior, minando gradualmente a confiança na sua bondade intrínseca.

[1] GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis. Democracy and disagreement. Cambridge, Mass.; London: The Belknap Press of Harvard University Press, 1996. p. 129.

[2] BARCELLOS, Ana Paula. Direito constitucional a um devido procedimento na elaboração normativa: direito à justificativa. Tese de apresentada para o Concurso de Professor Titular da UERJ, 2015, p. 76.

[3] ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Comparison. Ratio Juris, v. 16 No. 4 December 2003. A propósito, esclarece Bustamante: “O resultado de uma ponderação é determinado por um conjunto de fatores que inclui (i) o grau de proteção de um princípio e o grau de restrição em outro; (ii) o peso abstrato dos princípios colidentes; (iii) o grau de confiabilidade (à luz dos parâmetros da ciência e do conhecimento em um dado momento) das premissas empíricas utilizadas para concluir que um determinado princípio é protegido ou restringido; (iv) o número de princípios que justificam uma ou outra decisão; e (v), na hipótese iv, a forma como interagem os princípios que se inclinam para uma determinada decisão (se seus pesos meramente se somam ou se eles se reforçam mutuamente)”. (BUSTAMANTE, Thomas. Princípios, regras e conflitos normativos: um modelo para a justificação das decisões contra legem a partir da teoria jurídica de Robert Alexy. Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 2, p. 603-628, jul./dez. 2010). Na jurisprudência do STF, o critério da confiabilidade das premissas empíricas foi empregado, por exemplo, no RE 363.889 / DF, em que se discutia, antes do início da vigência do novo CPC, a relativização da coisa julgada vis-à-vis o advento do exame de DNA.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais a prestações sociais e crise: algumas aproximações. Espaço Jurídico Journal of Law. Joaçaba, v. 16, n. 2,  jul./dez. 2015, p. 473.

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