Opinião

O pacote "anticrime" e os acordos em matéria de improbidade administrativa

Autor

  • José Roberto Mello Porto

    é defensor público do Rio de Janeiro assessor jurídico da presidência do Supremo Tribunal Federal e presidente da Comissão em Estudos em Processo Civil da OAB/RJ.

13 de fevereiro de 2020, 6h31

Spacca
A tutela coletiva — assim compreendida a modalidade de solução de conflitos coletivos — envolve diversas peculiaridades: legitimidade, coisa julgada, competência e diversos outros institutos fundamentais são revisitados para garantir a adequada proteção de direitos transindividuais ou individuais homogêneos. No amplo leque de instrumentos eleitos pelo legislador para tanto, está a ação de improbidade administrativa, cujo objeto interessa a toda a coletividade, atingida pelos atos lesivos ao erário ou a princípios da boa administração.

Tema central, que sempre despertou polêmica, é o da possibilidade de serem realizados acordos a respeito dos atos ímprobos. Se, nos direitos coletivos em geral, há a autorização da Lei da Ação Civil Pública (artigo 5º, parágrafo 6º, da Lei 7.347/85), a legislação referente à improbidade apontava para saída diversa, vedando acertamentos indistintamente (artigo 17, parágrafo 1º, da Lei 8.429/92[1]).

A propósito, é importante lembrar que a natureza do compromisso de ajustamento de conduta é controvertida: para alguns, equivaleria a um reconhecimento jurídico do pedido, para outros, a uma transação, e, para uma distinta parcela, seria uma figura suis generis, por não haver possibilidade de disposição do legitimado em relação ao direito material, mas somente quanto à sua forma de cumprimento. De todo modo, a Lei de Improbidade Administrativa dele mantinha distância.

A evolução legislativa e jurisprudencial, contudo, provocou a revisitação da questão. O advento de certos diplomas esclareceu que a impossibilidade de qualquer negociação sobre determinados bens jurídicos não atendia aos anseios jurídico-sociais, não raro postergando a pacificação de litígios por anos, em ofensa ao princípio da eficiência e da economia processual microscópica.

Cumpre mencionar, aqui, a edição da Lei Anticorrupção, que abriu a via dos acordos de leniência, a Lei de Mediação, mencionando expressamente solução consensual no interesse da administração sobre tema tratado, em paralelo, em ação de improbidade[2], e a recente remodulação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que criou o compromisso em prol do serviço público[3].

Mesmo na seara criminal, tornou-se corrente a celebração de acordos de não persecução, ainda antes de qualquer previsão legal, o que escancara a superação do dogma da indisponibilidade da ação penal. O CNMP regulamentou a figura na Resolução 181, posteriormente reformulada pela Resolução 183/2018.

Todo esse influxo de consensualidade levou o órgão controlador do Ministério Público a editar a Resolução 179/2017, a qual mencionava expressamente que o compromisso de ajustamento de conduta seria aplicável a ações de improbidade[4]. Na jurisprudência, contudo, a questão não era pacífica, havendo decisões desfavoráveis por parte do Superior Tribunal de Justiça[5].

O último capítulo dessa série foi escrito há pouco: o pacote "anticrime" (Lei 13.964/19) inseriu, na Lei de Improbidade Administrativa, a admissão de celebração de acordo de não persecução cível, com possibilidade de requerimento, pelas partes ao juiz, de suspensão do prazo de contestação, para criar ambiente favorável às tratativas[6]. É, do ponto de vista legal, uma derradeira afirmação da negociabilidade em relação às infrações tipificadas.

No entanto, dúvidas não faltam. Se o regramento aprovado pelo Legislativo soava responsivo, o veto apostado pela Presidência abriu questionamentos.

O primeiro dispositivo vetado mencionava a viabilidade do acordo no bojo da ação de improbidade[7], ao argumento de que estimularia a continuidade da demanda, pelo réu sabedor da oportunidade de consenso posterior, o que contrariaria a eficiência e o interesse público.

Apesar disso, parece que o compromisso pode ser tomado em juízo, na esteira da tendência doutrinária e jurisprudencial, que aponta no sentido da maior abertura do cabimento de termo de ajustamento de conduta judicial, apto a ser tomado mesmo por associações. Ademais, o interesse público e a eficiência são prestigiados, sempre, com a mais breve solução do conflito, sendo inquestionável que o acordo durante a ação é mais econômico que a formação de título executivo judicial definitivo.

O principal problema do veto, no entanto, diz respeito ao delineamento feito pelo legislador quanto a aspectos centrais, como a legitimidade e o conteúdo da avença[8]. A motivação da vedação recai sobre a curta legitimidade estatuída, já que apenas o Ministério Público era mencionado no rechaçado dispositivo, sendo esquecida a pessoa jurídica lesada, que também possui aptidão para o ajuizamento da ação.

Poder-se-ia alegar que a retirada do comando da órbita jurídica nacional apenas confirmaria, ante as razões presidenciais, a legitimidade desses outros entes. No entanto, é de se lamentar que diversos aspectos, como os parâmetros para o acordo, as exigências de ressarcimento integral do dano e de pagamento de multa e o iter de aprovação da proposta internamente ao Ministério Público foram pilares deixados de lado.

Diante desse cenário de quase silêncio normativo, caberá à doutrina e à jurisprudência traçar critérios seguros para a tomada de compromisso, sem os quais os pretensos réus vacilarão em acordar.

Uma conclusão, apesar disso, merece prestígio, desde já: o ressarcimento do dano é condição inegociável, satisfazendo o mínimo anseio da coletividade lesada de retorno ao status quo, da maneira mais efetiva e célere, complementada por obrigações acessórias (funcionando a multa do artigo vetado como sugestão). Afinal, o afastamento das rígidas sanções legais é uma robusta benesse por parte da lei, que jamais poderá ter o condão de tornar a conduta ilícita vantajosa.

[1] Art. 17. § 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.

[2] Art. 36. No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União.

§ 4º Nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação de que trata o caput dependerá da anuência expressa do juiz da causa ou do Ministro Relator.

[3] Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo: I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; II – (VETADO); III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

[4] Art. 1º § 2º É cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado.

[5] REsp 1.217.554, relatora ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, DJe 22 de agosto de 2013; AgInt no REsp 1.654.462, relator ministro Sérgio Kukina, 1ª Turma, julgado em 7 de junho de 2018.

[6] Art. 17 § 1º As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei.

§ 10-A. Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias.

[7] Art. 17, § 2º O acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade.

Razões do veto: “A propositura legislativa, ao determinar que o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade, contraria o interesse público por ir de encontro à garantia da efetividade da transação e do alcance de melhores resultados, comprometendo a própria eficiência da norma jurídica que assegura a sua realização, uma vez que o agente infrator estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visto que disporia, por lei, de um instrumento futuro com possibilidade de transação.”

[8] Art. 17-A. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados:

I – o integral ressarcimento do dano;

II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados;

III – o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente.

§ 1º Em qualquer caso, a celebração do acordo levará em conta a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso.

§ 3º As negociações para a celebração do acordo ocorrerão entre o Ministério Público e o investigado ou demandado e o seu defensor.

§ 4º O acordo celebrado pelo órgão do Ministério Público com atribuição, no plano judicial ou extrajudicial, deve ser objeto de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil.

§ 5º Cumprido o disposto no § 4º deste artigo, o acordo será encaminhado ao juízo competente para fins de homologação.

Razões dos vetos: “A propositura legislativa, ao determinar que caberá ao Ministério Público a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa, contraria o interesse público e gera insegurança jurídica ao ser incongruente com o art. 17 da própria Lei de Improbidade Administrativa, que se mantém inalterado, o qual dispõe que a ação judicial pela prática de ato de improbidade administrativa pode ser proposta pelo Ministério Público e/ou pessoa jurídica interessada leia-se, aqui, pessoa jurídica de direito público vítima do ato de improbidade. Assim, excluir o ente público lesado da possibilidade de celebração do acordo de não persecução cível representa retrocesso da matéria, haja vista se tratar de real interessado na finalização da demanda, além de não se apresentar harmônico com o sistema jurídico vigente.”

Autores

  • Brave

    é defensor público do Rio de Janeiro, presidente da Comissão de Estudos em Processo Civil da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!