Tribuna da Defensoria

Acordo de não persecução penal e a reincidência

Autor

  • Emerson de Paula Betta

    é defensor público titular do órgão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro junto à 2ª Vara Criminal de Nova Iguaçu e pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP.

12 de fevereiro de 2020, 9h35

A nova Lei 13.964/2019 trouxe várias e significativas modificações na esfera penal, processual penal e execução penal, dentre elas trazendo em seu artigo 3º, o qual acrescentou o art. 28-A ao Código de Processo Penal, o instituto do acordo de não persecução penal.

Entendemos não se tratar de novidade em nosso ordenamento jurídico. Isso porque, com o mesmo viés despenalizador, com o fim de evitar a judicialização do fato penal, as nefastas consequências de um processo criminal, e uma condenação com o estigma da reincidência, observa-se em nosso corpo legislativo o instituto processual da Transação Penal (art. 76 da lei 9.099/95),

O presente ensaio não tem nenhuma pretensão de analisar a fundo o novo instituto processual em si, mas sim iniciar uma análise e discussão de questão prática, que este subscritor começa a visualizar, decorrente de sua atuação como Titular do órgão da Defensoria Pública junto à 2ª Vara Criminal da Comarca de Nova Iguaçu.

A questão é saber se o instituto do acordo de não persecução penal, com a previsão de que não gerará a reincidência, tem a força de retroagir para beneficiar o investigado em relação a fatos pretéritos aos quais coubesse o acordo, expurgando os efeitos da reincidência.

Neste ponto, importante destacar que o art. 28-A, §12 do CPP, prevê que a celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constará a certidão de antecedentes criminais, logo não gerando reincidência.

Como acima frisado, a questão surgiu em visualização de ordem prática, e talvez não seja de clara visualização em início de abordagem. Então — nada obstante de na versão mais completa do trabalho (no qual colocamos jurisprudência afeta ao tema e tentamos colocar as hipóteses em que a retroatividade da norma poderá beneficiar o indivíduo, mas sem a pretensão de esgotá-las) — colocaremos aqui um exemplo prático para melhor compreensão da questão posta.

Imaginemos a hipótese de um investigado (que nominaremos de maneira fictícia como "José") pelo crime de tráfico de drogas, preso em flagrante delito na data de 23.01.2020, na qual o órgão do Ministério Público visualize a possibilidade de proposta de acordo de não persecução penal, porém se considera inviabilizado de propô-lo pela razão de verificar na folha de antecedentes criminais do investigado que este é reincidente.

Imagine-se que o fato anterior gerador da reincidência tivesse sido um furto qualificado cometido no ano de 2017, no qual o ora investigado José, à época primário, tenha sido condenado a pena privativa de liberdade de dois anos, convertida em PRD efetivamente cumprida, mas sem que se tivesse operado o período depurador de cinco anos previsto no Código Penal para extirpar a condição de reincidência.

Formalmente, teríamos uma hipótese na qual o ora investigado José poderá ver-se denunciado e processado por um delito, de modo que preenche quase todos os requisitos para o acordo de não persecução penal, fora a reincidência.

Porém, tal reincidência é decorrente de um fato anterior à nova norma. Se esta existisse à época, haveria oportunidade de se ter o acordo de não persecução proposto e de serem assim oferecidas condições (semelhantes até às que foram impostas como pena por sentença, e extintas), e que, se cumpridas, extinguiriam sua punibilidade, não gerando a REINCIDÊNCIA, nos termos da nova lei, permanecendo ele primário.

Observe-se que o fato da reincidência desta suposta hipótese anterior, em reflexo no praticamente inevitável processo penal presente, ensejará ao réu José, em caso de condenação pelo artigo 33 caput da lei 11.343/2003 (o qual, pelas circunstâncias, de início o Ministério Público aventou a possibilidade de proposta de acordo de não persecução penal, então logo teria cogitado a incidência do parágrafo 4º da lei de drogas), provocará ela (a reincidência) a impossibilidade de aplicação da referida causa de diminuição, a imposição de uma pena de no mínimo cinco anos (podendo a pena base ser majorada pela própria reincidência) e a estipulação de regime inicial de cumprimento de pena fechado, nos termos do artigo 33, parágrafos 2º e 3º do Código Penal.

Então se indaga: posta a questão nestes termos, e em hipóteses semelhantes que surjam na prática, a norma prevista no artigo 28-A do Código de Processo Penal seria dotada de ultratividade, retroagindo para beneficiar o cidadão e considerar em relação ao fato passado (gerador da reincidência) os efeitos de acordo de não persecução penal e, consideradas as especificidades do caso pretérito (tipo delituoso, pena cumprida ou extinta por indulto, ou até por prescrição executória) retirar sua reincidência, barrando as consequências prejudiciais ao réu ou apenado na esfera processual penal, penal e execução penal?

Não se está aqui defendendo a retirada do fato pretérito em si e a consideração da existência e homologação do acordo de não persecução penal em relação àquele (fato processado e alcançado pelo trânsito em julgado), mas sim de, consideradas as especificidades do caso anterior e verificando que a pena imposta e cumprida tornaria o fato (o qual, se existente a lei nova à época) viabilizador da proposta de acordo (verificado que aplicada e extinta a pena, por certo foi até um plus em relação às condições — que são menos severas que a pena — que seriam impostas no acordo), teria direito o indivíduo, a ter o aspecto material da nova norma, qual seja, a não verificação da reincidência, retroagindo para beneficiá-lo de acordo com a garantia constitucional prevista no artigo 5º XL da CF (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”), e ano artigo segundo do parágrafo único do Código Penal (“A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”). 

Questão que poderia envolver algum questionamento, mas que a doutrina e jurisprudência já de forma unânime assentaram entendimento, é saber se a lei processual pode conter aspectos diretos de, ou até reflexos no, direito material penal (normas de natureza mista), retroagindo para beneficiar o réu ou apenado para beneficiá-lo, com entendimento da existência e não só da possibilidade como da obrigatoriedade da retroatividade, diante da previsão de norma fundante de natureza constitucional que a impõe. 

A questão não é inédita, e pode ser visualizada em relação ao similar instituto processual da transação penal em vários julgados, direta ou indiretamente e até de forma mais intensa nos efeitos do reconhecimento da retroatividade do instituto, dos quais iremos apenas referenciar aqui, tendo em conta a delimitação da publicação, sem embargo de publicarmos a ementa na versão completa: STJ – HABEAS CORPUS Nº 35.545 – SP (2004/0068662-1); STJ – HABEAS CORPUS Nº 59.776 – SP (2006/0112551-8); TJRJ 0000294-65.2015.8.19.0020 – EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE; TJRJ 0022573-81.2010.8.19.0000 – HABEAS CORPUS.          

Vistos acima os argumentos e o julgado similar, até pelo ineditismo da lei, entendemos que a Lei 13.964/2019 no artigo 3º na parte que incluiu o artigo 28-A no Código de Processo Penal, deve retroagir para beneficiar o investigado, réu ou apenado, e no que aqui até o momento visualizado, desconsiderar a reincidência gerada por fatos anteriores nos quais fossem, de acordo com a lei nova, cabível o acordo de não persecução penal, o qual não prevê a consequência da reincidência decorrente da sua concretização e cumprimento.

Acreditamos ser necessário balizar as condições (requisitos) em que o crime anterior julgado possa ser efetivamente considerado ensejador de adequação à norma nova, para ter desconsiderada a reincidência dele decorrente.

E isto porque, em nossa opinião, temos que o fato passado deve guardar as características senão iguais, mas parecidas, porém fazendo a observação de que não se pode imputar ao investigado/réu/apenado as similitudes que ele não tinha o controle tanto de oferta quanto de cumprimento.

Outra observação necessária, é a de que a hipótese aqui ventilada, não trata da questão em que o Réu (já com o processo em curso) ou Apenado (com execução em curso) em sendo primário (não tendo fato penal anterior), e preencha os demais requisitos, tenham direito, pela retroatividade da norma mais benéfica, a paralisação do processo ou da execução, para aplicação e cumprimento do acordo impedindo o surgimento da reincidência.

Primeiro requisito: o primeiro requisito é de questão lógica, qual seja, ser o delito anterior e ensejador da reincidência, passível de incidência do acordo nos termos do artigo 28-A caput c/c parágrafo 1º do CPP, sendo a infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, levando em consideração para aferição da pena mínima cominada ao delito, as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

Segundo requisito: ter o investigado extinta a pena à ele imposta (seja ela PRD ou até PPL).

Em relação a este requisito, cabem algumas ponderações.

Inicialmente é de se frisar, que não pode ser eventualmente ventilado contra o investigado, o fato de a ele ter sido imposta anteriormente uma pena proveniente de sentença penal condenatória, a qual seria incompatível com o novel instituto para igualá-las considerando aquela como condição cumprida.

No aspecto de pontuar que, em relação ao fato passado o que foi aplicado foi uma Pena e não Condição, deve-se concordar, pois realmente, e de acordo com a nova lei, pelo que previsto no artigo 28-A inciso III ("prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução"), a condição a ser imposta de acordo com a nova lei, é menos gravosa e menos intensa do que a possível pena em relação a uma eventual condenação, ainda que no mínimo legal, sendo de todo modo, a pena anteriormente imposta pelo fato anterior, mais gravosa, tendo-se nela um Plus de intensidade em relação as condições agora previstas, de modo que o ora investigado, teria por assim dizer um “crédito” na aferição do caso.

Em relação a suposta incompatibilidade entre Pena e Condição, tal distinção não pode ser feita, pois a própria lei não distingue, pois se vale de uma própria pena de PRD prevista para os tipos penais passíveis do Acordo, para colocá-las como condição. E se existente o acordo a época, estariam estas a disposição do investigado para analise de aceitação como condições.

Também a nosso sentir o fato de a pena do delito anterior ter sido extinta, seja em conversão da PRD em PPL, seja por Indulto, ou até pela prescrição da pretensão executória, não pode servir de argumento a barrar a aplicação da nova lei, pois trata-se de pena efetivamente extinta, ora cumprida, ora terminada por direito reconhecido ao apenado que enquadrou-se nas hipóteses previstas no ordenamento, ora por ineficiência do Estado que não pode ser colocada em sua responsabilidade.

Deve ser ainda levado sempre em consideração que, existente a época o Acordo de Não Persecução Penal, teria o apenado a sua disposição a aceitação das condições com opção de cumpri-las e manter-se primário, sendo este viés ressocializador do instituto despenalizante, de grande (senão o principal) estímulo ao acordante para o cumprimento, diferente da pena decorrente da condenação, que ao contrário é uma aflição com nefastas consequências ao apenado, e que em nada o estimula para cumprimento, pela notória incapacidade do Estado de prover o aspecto ressocializador previsto em lei.

Terceiro requisito (negativo) — este requisito só é relevante para aferição de cabimento de futuro Acordo: desconsideração do entendimento de que um dos efeitos do próprio reconhecimento da retroatividade do Acordo ao fato anterior, mesmo que retirando a reincidência, seria a impossibilidade de um novo acordo, pela incidência da regra inserta no artigo 28-A, parágrafo 2º, III: "§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:  III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo".

Apesar de não ser um requisito para ser verificado se presente em relação ao fato anterior, decidimos destacá-lo por entendermos de relevante analise, decidindo pô-lo como sendo um requisito negativo, pois que seria de APARENTE consequência do próprio reconhecimento da retroatividade e incidência da norma, mas que nosso ver não incide em concreto, e nem poderia incidir nesta parte, pela própria Garantia Constitucional da Irretroatividade da Lei Penal maléfica ao indivíduo.

Como acima destacado, o artigo 28-A, parágrafo 2º, III, prevê não caber o Acordo de Não Persecução Penal, se o agente ter sido beneficiado por igual medida nos últimos cinco anos.

Em uma primeira e apressada analise, poderia concluir-se que, reconhecida a incidência da norma ao fato anterior e reconhecida a possibilidade do Acordo, apesar de se considerar o Investigado/Réu primário, não teria direito ele a um novo acordo, pois que esbarraria na proibição prevista no artigo 28-A, parágrafo 2º, III, CPP. Porém tal entendimento não se sustenta.

Em início, e como acima se concluí por todo o raciocínio exposto, bem como pelo exame do segundo requisito colocado, não se trata de efetivamente considerar o acordo concretizado e cumprido em relação ao delito anterior, mas sim pelo fato do delito ser passível de acordo, e ter-se cumprida/extinta a pena decorrente dele imposta, e por uma questão de similitude e até um plus em relação as condições que poderiam ter sido impostas, desconsiderar a reincidência.

Em nenhum momento está a se defender a consideração de ter-se realizado em relação ao fato pretérito o acordo de não persecução penal (até porque nenhum acordo foi realizado, porém imposta pelo estado-juiz uma pena), mas somente a desconsideração, em relação àquele fato, a reincidência.

Ainda que se entender, e com a devida vênia, por absurdo, a consideração do acordo de não persecução penal em si, em relação ao fato pretérito, a vedação contida no artigo 28-A, parágrafo 2º, III, CPP, não poderia incidir, pois seria fazê-la retroagir in pejus, em contrariedade a garantia constitucional prevista no artigo 5º, XL, CF. 

Assim entendemos serem estes os requisitos existentes em relação ao fato anterior gerador da reincidência, para fazer retroagir a lei nova mais benéfica, e retirar o efeito da reincidência em relação aos eventuais fatos futuros.

Concluímos então este breve ensaio, aduzindo sempre a observância da Ordem Constitucional ora vigente, com o primado da Dignidade da Pessoa Humana, onde impõe-se o Direito Penal de um Estado Democrático de Direito com a observância irrestrita da Legalidade e demais Garantias Constitucionais do indivíduo, dentre elas a Retroatividade da Lei Penal mais benéfica, para concluir sobre a efetiva obrigatoriedade da retirada da nefasta reincidência nos casos em que o agente tenha sido condenado por fato anterior a que a nova lei possibilite o Acordo de Não Persecução Penal, com a analise em concreto dos requisitos e da abrangência das consequências da retroação, aplicando aos casos.

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