Churning não é o crime de informação falsa no sistema financeiro
12 de fevereiro de 2020, 6h31
1. Introdução
A Justiça Federal tem processado denúncias criminais recentes sobre a suposta conduta de churning praticada por agentes autônomos de investimentos (AAI). Essa conduta é ainda desconhecida na literatura penal especializada nacional, mas já encontra condenações administrativas, cíveis e criminais, sem que exista a exatidão sobre quais são os elementos essenciais do churning.
A expressão conhecida no common law tem na sua origem o verbo inglês to churn, no sentido de sacudir, agitar o mercado, aumentando o volume de operações na bolsa de valores. Objetivo da conduta não é propriamente obter maiores ganhos ou evitar maiores perdas pelo titular da ação diante da variação do papel, mas, sim, gerar mais corretagem, sem a autorização do cliente de conta em corretora de valores que é mantido em erro.
O Direito Penal brasileiro não criminaliza especificamente a conduta em tipo penal com as suas características essenciais, o que tem direcionado as instâncias de controle a buscar tipicidade no crime de prestação de informação falsa no sistema financeiro nacional (artigo 6º da Lei 7.490/86)[1], que prevê uma pena de até seis anos de reclusão.
Os critérios e parâmetros para o reconhecimento do fenômeno do churning são indefinidos nas ciências econômica e jurídica especializada[2], gerando incerteza aos agentes de mercado e aos órgãos de controle. Existe o perigo constante de repressão penal injusta da prática empresarial de prestação do serviço de agente autônomo de investimento.
2. Elementos
Um entendimento superficial sustenta que o fenômeno dependeria exclusivamente de dois critérios matemáticos: (1) “Taxa de Giro da carteira de investimentos” (Turnover Ratio – TR) e (2) “Taxas de Custo de negociação” (Cost-equity Ratio – C/E). Segundo o entendimento, os ilícitos administrativo e penal estariam reduzidos à análise objetiva, sem verificação da relação subjetiva do autor com a conduta e o resultado e da efetiva ocorrência de um resultado proibido.
Taxa de Giro da carteira de investimentos refere-se ao número de giros realizados com a carteira do cliente, que é a comparação do seu patrimônio médio com o volume total de negócios efetuados. Um dos referenciais por vezes utilizado, ainda que com a necessidade de enquadramento do perfil do cliente em concreto, seria a comparação do investidor individual amador, que dedica parte do dia à operação, com investidores profissionais dedicados exclusivamente às operações no mercado. A tendência é de que um investidor individual opere a sua carteira particular de ações em taxa menor que a operada por fundos de ações, geridos por profissionais com dedicação exclusiva para a tarefa.
A Taxa de Custo de negociação busca identificar despesas excessivas suportadas pelo investidor. A comparação ocorre entre o total de todas as despesas da carteira do investidor com seu patrimônio médio. Este indicador representa a porcentagem mínima do capital necessária para cobrir as despesas das operações realizadas em determinado período. A eventual suspeita de churning precisaria superar o patamar de 21% ao ano do demandando do capital para cobrir as despesas.
Ocorre que os indicadores de giro de carteira e custo das operações não são absolutos, tampouco infalíveis e devem ser analisados à luz do perfil do investidor, conforme o entendimento da própria Comissão de Valores Mobiliários.[3] Os dois índices matemáticos podem aumentar em decorrência de má gestão estratégica dos papéis. Igualmente o custo das operações com referencial na oscilação do mercado precisa ser considerado.
A própria BSM variou nos critérios para identificação de churning desde o estudo com sugestão metodológica do Relatório de Análise 1/2011 da BSM, publicado em 30 de agosto de 2011,[4] até os estudos posteriores da CVM em 2013. A BSM publicou análise técnica externa e independente em 2017, que conclui que o Relatório de Análise 1/2011 poderia ocasionar equívocos na qualificação errônea de operações regulares como se fossem churning.[5]
De igual modo, a CVM viu-se obrigada a emitir o Ofício-Circular 5/2019-CVM/SMI[6] em 11 de outubro de 2019, diante da fragilidade e da incompletude da mera demonstração das Taxas de Giro e de Custo da Operação para a eventual constatação da ocorrência do churning. O parâmetro subjetivo relacionado à vontade do agente é reconhecido como um dos elementos essenciais. O Ofício-Circular 5/2019-CVM estabelece três requisitos obrigatórios consolidados pela jurisprudência administrativa para a configuração do ilícito administrativo:
(i) Giro excessivo da carteira de investimentos, à luz do perfil do cliente;
(ii) Controle sobre as operações cursadas em nome do investido;
(iii) Intenção de gerar receitas de corretagem ou comissões.
O conceito de crime pelas características próprias dos princípios do direito penal exige que o churning penalmente relevante tenha mais um requisito. O princípio da ofensividade (artigo 98, IX, da Constituição) e do Direito Penal do resultado (artigo 13 do Código Penal) indicam que a intervenção penal na liberdade deve ocorrer somente nos casos em que houver ofensa ao bem jurídico tutelado penalmente. Os ilícitos administrativo e penal não podem ser iguais em razão da diferença ética e repressiva de cada um. Sendo assim, é necessário que as instâncias de controle comprovem também a existência do custo excessivo nas operações que cause dano patrimonial ao cliente titular da conta operada contra a sua vontade.
Em síntese, são quatro os elementos caracterizadores do churning penalmente relevante estabelecidos pela doutrina: (1) giro excessivo da carteira de investimentos, à luz do perfil do cliente (Turnover ratio – TR)[7]; (2) controle sobre as operações cursadas em nome do investidor[8]; (3) intenção de gerar receitas de corretagem ou comissões que decorrem das operações realizadas[9] e (4) custo excessivo (cost-equity Ratio – C/E).[10]
Nestes quatro elementos, se tem respeitada a estrutura científica do conceito clássico de crime como conduta dolosa causadora de ofensa. O crime de prestação de informação falsa não alcança adequação típica ao fenômeno que tem sido habitualmente denunciado, violando substancialmente os princípios da legalidade (artigo 5º, XXXIX, da Constituição, e artigo 1º do Código Penal), da ofensividade ao bem jurídico tutelado (artigo 98, IX, da Constituição) e da culpabilidade (artigo 1º, III, da Constituição, e artigo 18, I, do Código Penal), por não atender às elementares do crime de prestação de informação falsa.
[1] Art. 6º. Induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
[2] LORENZ, Manuel, Churning, das Phänomen der kapitalmarkt- und börsenrechlichen Spesenschinderei und die Sanktionierung im Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Heidelberg: Müller, 2015, p. 38-39.
[3] Nesse sentido, PAS CVM RJ 2014/12.921; PAS CVM 24/2010 e PAS CVM 2012/480.
[4] Relatório de Análise 1/2011 da BSM, publicado no site no dia 30 de agosto de 2011.
[5] http://resenhab3.com.br/publicacao-tecnica/uma-metodologia-para-o-auxilio-na-determinacao-de-churning1/
[6] http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/oficios-circulares/smi/anexos/oc-smi-0519.pdf
[7] LORENZ, Manuel, Churning, das Phänomen der kapitalmarkt- und börsenrechlichen Spesenschinderei und die Sanktionierung im Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Heidelberg: Müller, 2015, p. 45.
[8] LORENZ, Manuel, Churning, das Phänomen der kapitalmarkt- und börsenrechlichen Spesenschinderei und die Sanktionierung im Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Heidelberg: Müller, 2015, p. 54.
[9] LORENZ, Manuel, Churning, das Phänomen der kapitalmarkt- und börsenrechlichen Spesenschinderei und die Sanktionierung im Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Heidelberg: Müller, 2015, p. 58.
[10] LORENZ, Manuel, Churning, das Phänomen der kapitalmarkt- und börsenrechlichen Spesenschinderei und die Sanktionierung im Straf- und Ordnungswidrigkeitenrecht, Heidelberg: Müller, 2015, p. 43.
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