JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Contratos de afretamento, de serviços e o Repetro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

10 de fevereiro de 2020, 10h41

Mais uma vez o famigerado voto de qualidade do Presidente de colegiados no CARF faz vítimas. Desta feita foi a Petrobras, tendo por referência uma disputa bilionária envolvendo a descaracterização de um contrato que previa afretamento (arrendamento) de embarcações combinado com a prestação de serviços relacionados à exploração e produção de petróleo e gás natural.

Spacca
O tema de fundo é bastante simples e envolve a delimitação de quanto é pago para cada objeto contratado, quando são realizadas contratações envolvendo múltiplos objetos. Vou usar um exemplo para mais fácil compreensão. Suponhamos que você contrate um pacote de serviços de manutenção para o lar, envolvendo eletricistas, encanadores, chaveiros, pedreiros e assemelhados. Será um contrato com múltiplos objetos, todos envolvendo a prestação de serviços. O complicador surge quando um desses serviços possui tributação diferenciada em face dos demais.

Mantendo o exemplo, suponhamos que os serviços de pedreiro sejam tributados pelo ISS na alíquota de 1%, enquanto os demais sejam tributados pela alíquota de 5%. Quanto será a tributação de todo o contrato, que envolve estes múltiplos serviços, a serem prestados por demanda?

Retornemos ao caso concreto. É usual a contratação de afretamento em conjunto com serviços diversos, vinculados ao mesmo objeto. Quanto deve ser atribuído ao afretamento e quanto aos serviços? Este é, em grossas linhas, o problema colocado em debate no CARF.

Nas instâncias administrativas inferiores, a discriminação de valores adotada pela Petrobrás foi considerada correta, e os valores bilionários lançados pelo Fisco Federal considerados indevidos. No Conselho Superior o caso foi revertido, com a derrota da Petrobras, fruto do voto de qualidade do Presidente da 3ª Turma, em decorrência do empate entre os julgadores.

Poderia discorrer longamente acerca da impropriedade desse voto de qualidade, mas dirijo os interessados a outro texto, que escrevi anos atrás, tratando dessa matéria. Nele considerei que, havendo empate, o contribuinte deveria ser declarado vitorioso, em face do princípio do in dubio pro reo. Afinal, não sendo possível provar a culpa do contribuinte além de qualquer dúvida razoável, ele deveria ser inocentado. Considerando a estrutura penalística do processo de cobrança fiscal, esse princípio é plenamente utilizável nessas hipóteses.

Porém existe outro aspecto a ser considerado, que diz respeito ao direito intertemporal, pois são diversas as normas de direito positivo que regulam esta discriminação de valores, quando indeterminados.

De fato, a Lei 9.481/97 prescrevia que a alíquota do imposto de renda na fonte incidente sobre os rendimentos auferidos no País, por residentes ou domiciliados no exterior, seria reduzida a zero, quando decorrente de receitas de fretes, afretamentos, aluguéis ou arrendamentos de embarcações marítimas ou fluviais ou de aeronaves estrangeiras, feitos por empresas, desde que tenham sido aprovados pelas autoridades competentes, bem assim os pagamentos de aluguel de containers, sobrestadia e outros relativos ao uso de serviços de instalações portuárias.

Posteriormente esta norma foi alterada diversas vezes, até sua redação atual, determinando que, quando ocorrer execução simultânea de contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e de contrato de prestação de serviço relacionados à exploração e produção de petróleo ou de gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, a redução a 0% da alíquota do imposto sobre a renda na fonte fica limitada à parcela relativa ao afretamento ou aluguel, calculada mediante a aplicação sobre o valor total dos contratos dos seguintes percentuais: I – 85% quanto às embarcações com sistemas flutuantes de produção ou armazenamento e descarga; II – 80% quanto às embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação e manutenção de poços; e III – 65% quanto aos demais tipos de embarcações.

Ou seja, é necessário dissecar temporalmente os contratos firmados a fim de estabelecer qual das diversas alterações normativas vigorava em cada período de vigência dos contratos, para ser possível estabelecer a discriminação legal determinada. Afinal, dar efeito retroativo às normas é algo vedado pela Constituição, que privilegia o ato jurídico perfeito. No caso, uma das parcelas cobradas se refere a 2011.

Seria possível até mesmo tratar da questão das presunções jurídicas aplicadas ao caso, pois, o que garante que o valor do afretamento é de 85% no caso concreto? Pode a lei intervir dessa forma nos contratos firmados entre partes privadas? Tenho muitas dúvidas a respeito. E ainda, as hipóteses de aplicação desse tipo de presunção jurídica devem ser restritíssimas, apenas quando houver indeterminação do objeto, e não como uma tábua rasa para aplicação geral. O fato de ser um único contrato com múltiplos objetos, ou de ser dividido em vários, para cada objeto, é absolutamente irrelevante na análise da matéria, estando dentro da liberdade de contratar que as partes envolvidas podem adotar.

Enfim, trata-se de um debate tormentoso que foi abruptamente decidido contra o contribuinte em face do instrumento autoritário do voto de qualidade.

Seguramente o assunto não está finalizado, pois todo o iter judicial será iniciado pelas partes prejudicadas. Aguardemos os próximos capítulos dessa novela.

Uma das maiores homenagens que se pode prestar a um autor é usar seus textos. Dias atrás, revisando a dissertação de um mestrando, encontrei citações feitas por ele a uma monografia  que recebeu um prêmio concedido pela Secretaria do Tesouro Nacional em 2010, fruto do trabalho de um qualificadíssimo ex-orientado meu, de mestrado e de doutorado, na Faculdade de Direito da USP. Seria um fato corriqueiro, não fossem os seguintes aspectos: o atual mestrando jamais conheceu o autor do texto e nem eu havia indicado aquele trabalho para sua consulta, e coincidência maior, minha leitura de revisão ocorreu no dia seguinte ao trágico falecimento do autor citado. Fiquei emocionado com o fato e o registro para homenagear Matheus Carneiro Assunção, qualificado acadêmico e Procurador da Fazenda Nacional, vitimado por conta de instabilidades emocionais dias atrás. Que descanse em paz.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!