Diário de Classe

PEC que altera nomeação de ministro do STF: seria conveniência política?

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9 de fevereiro de 2020, 16h41

O Diário de Classe de hoje abre espaço para refletir e lançar algumas luzes sobre um tema que está sendo colocado como prioridade nossa – do Congresso[1], que nos representa – para o ano de 2020: a forma de composição do Supremo Tribunal Federal (modo de indicação e tempo de permanência no cargo). É a matéria que vem sendo deliberada via proposta de emenda constitucional no Senado, através das PECs: 35/2015, 59/2015 e 16/2019.

Sabemos que a regra constitucional, hoje, é a indicação feita diretamente pelo presidente da República, com posterior sabatina feita pelo Senado Federal. Uma vez ministro do STF, o cargo é vitalício. Notório saber jurídico, reputação ilibada e idade mínima (35 anos) são os critérios formais. Tudo isso faz parte de um contexto que, historicamente, privilegia a relação entre os três Poderes. Checks and balances. Foi assim que os americanos nos ensinaram.

Claro, parece fazer sentido que uma corte constitucional, originalmente com função contramajoritária, tenha sua composição formada a partir de uma decisão política de quem, em maior espectro, no âmbito nacional, representa formalmente o sistema majoritário: o presidente da República. E faz ainda mais porque inclui o Legislativo nesta dinâmica, via Senado. Esse sistema é típico de cortes constitucionais, isto é, de sistemas constitucionais nos quais as cortes de última instância – que proferem decisões judiciais no julgamento de casos como última instância recursal – são órgãos de cúpula do Poder Judiciário e não, a exemplo do que acontece na Alemanha, Tribunais Constitucionais ad hoc.

A partir disso, surge a primeira pergunta: o que se pretende mudar? Com as PEC’s, o presidente já não mais faria uma escolha direta e livre, pois passaria a estar vinculado a uma lista tríplice (formulada pelo próprio STF, pela Procuradoria-Geral da República e pela OAB[2]), sendo que os ministros escolhidos teriam mandatos (de 10 anos, vedada a recondução). Mas então vem a segunda pergunta: por que alterar esta engenharia constitucional nos é apresentado por aqueles que nos representam como tão urgente e necessário?

Sugiro duas possíveis respostas a esta segunda pergunta, a partir da transcrição de dois posicionamentos sobre a PEC:

“Isso [certo equilíbrio e pluralismo de escolhas] precisa, porém, ser institucionalizado, para que esse processo de ‘depuração’ de nomes para a escolha presidencial seja feito às claras, de forma o mais republicana possível”[3]. (senador Anastasia, Relator)

“O nosso Supremo foi criado à imagem do Supremo americano. E eu penso que temos um sistema de freios e contrapesos, porque o presidente da República indica e o Senado sabatina. Quer dizer, já temos aí uma mesclagem em termos de participação – e tem dado certo”[4]. (ministro Marco Aurélio, STF)

Instigada por esses dois pronunciamentos, sugiro pelo menos dois caminhos para abrir discussão sobre as intenções que buscam justificar a elaboração desta mudança constitucional: a) político; e b) institucional. Por um lado, fica muito claro que uma das pretensões desta alteração é limitar o poder de escolha que sempre possuiu o presidente. “Tornar mais republicano” poderia significar, neste caso, dificultar escolhas que desagradam inclinações políticas, vontades políticas. Aliás, essa questão política produz tanto ruído que não é possível saber se a emenda tem o condão de bloquear ou salvar uma possível indicação de Sergio Moro[5] pelo atual presidente, porque o artigo 3º do substitutivo tem o seguinte teor: “esta Emenda à Constituição entra em vigor no dia 1º de janeiro do primeiro ano da legislatura seguinte à sua promulgação”).

Por outro lado, parece que também há um elemento institucional envolvido. Uma espécie de tentativa de “regeneração” dos mecanismos institucionais de escolha política. Algo que, a princípio, pode soar como “aprimoramento do sistema”. Isso porque, em que pese os procedimentos para indicação dos ministros do STF historicamente venham sendo cumpridos, não, isso não vem dando certo. A prática que dá conteúdo a este desenho institucional tornou a dinâmica entre Executivo e Legislativo esvaziada, porque raramente as sabatinas acontecem de forma responsável.

A partir desses dois caminhos suscitados, coloco alguns argumentos finais. É claro que, como mencionou Marcelo Cattoni em uma entrevista ao El País, as nomeações muitas vezes acabam atendendo a interesses político-partidários imediatos. Mas há uma questão de fundo envolvida neste assunto: por que se preocupar com a composição do STF? Por que isso é – ou deve ser – importante para nós, cidadãos? Por que, afinal, este assunto merece um Diário de Classe? A resposta que surge para mim parece bem significativa, impactando a análise dessa PEC: discutimos sobre a forma de nomeação dos ministros do STF porque nos preocupamos coma prática judicial desta instituição; porque gostaríamos de saber o que esperar do STF, especialmente em tempos de grande judicialização – massiva, mas também de assuntos sensíveis à sociedade. E porque, infelizmente, acreditamos e percebemos que essa prática judicial pode ser atravessada pelo comportamento individual (e político) de quem ocupa o cargo (não por acaso, falamos em ativismo judicial; não por acaso, Lenio Streck refere que a política, a moral e a economia figuram como predadores do direito quando determinam a tomada de decisão judicial).

E é neste aspecto que, conversando com Rafael Tomaz de Oliveira sobre o assunto, chegamos à conclusão de que, em certa medida, a PEC perde o seu sentido, porque ela propõe uma drástica alteração constitucional – jamais experimentada em outro sistema constitucional –, mas não será capaz de produzir a mudança estrutural que tanto necessitamos em nosso Judiciário (que nos faz conviver com demandas judiciais convenientemente esquecidas; com inúmeras decisões tomadas de forma monocrática; com ausência de coerência entre decisões). Ou seja, modificando os mecanismos institucionais de nomeação do próximo ministro, ainda assim corremos o risco de conviver com práticas judiciais que não espelhem democracia. Em outras palavras, ainda que aceitássemos a tese de que esta emenda seria capaz de promover algum pluralismo próprio da democracia, ela republicaniza a fórceps, de fora para dentro.

Apesar disso, também chegamos à conclusão de que, embora a presente PEC possa não parecer a melhor, baseada em bons critérios de engenharia constitucional, esta é uma discussão possível, desde que conduzida por critérios mais técnicos, procurando confrontar modelos já testados em outros sistemas constitucionais, mas, acima de tudo, levando em consideração as peculiaridades da dinâmica política brasileira. Ou seja, a reflexão sobre a forma de nomeação de ministros do STF no Brasil é um caminho aberto.

Lendo sobre este tema lembrei do episódio norte-americano conhecido como: “The switch in time that saved nine”. Quando Franklin D. Roosevelt assume a presidência, surge o New Deal, um pacote composto por diversos atos protetivos, que objetivavam recuperar o país da crise de 1929 (salário mínimo, limitação da jornada de trabalho etc.). No entanto, evocando o posicionamento firmado em Lochner versus New York, a Suprema Corte invalidou todas as medidas presidenciais. Não conseguindo governar, Roosevelt fez lobby junto ao congresso, propondo um “Court-Packing Plan”, segundo o qual, para cada juiz da Suprema Corte que tivesse mais de 70 anos, seria nomeado um juiz extra, o que faria com que a composição da Corte passasse de nove para dezesseis juízes. Dois meses depois, no julgamento do caso West Coast Hotel versus Parish (1937), que envolvia a polêmica do estabelecimento do salário mínimo, a Suprema Corte mudou seu entendimento por um voto, justice Owen J. Roberts[6].

No Brasil, gostamos muito de ler os americanos e estudar a partir de sua história constitucional. É preciso aprender com episódios esdrúxulos também; não só com aquilo que consideramos exemplos. É preciso, de um modo ou de outro, hoje mais do que nunca, refletir sobre o elo entre poder político e Suprema Corte.

[1] É assim que o Estadão veicula a notícia sobre a PEC que altera o modo de composição do STF, como prioridade do Congresso em 2020: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,congresso-coloca-pec-que-muda-escolha-para-o-stf-entre-as-prioridades-para-2020,70003183845

[2] Segundo o site do Senado Federal, o substitutivo da PEC 35/2015 alterou o rol de autoridades responsáveis pela formulação da lista tríplice (originalmente eram sete): “Em relação ao processo de escolha dos ministros, o relator manteve a opção da PEC 35 pela lista tríplice, mas reduziu as instituições que indicariam os candidatos para apenas três. Assim, um membro do Poder Judiciário seria indicado pelo Supremo Tribunal Federal; um membro do Ministério Público seria indicado pela Procuradoria-Geral da República e um jurista seria indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil”. Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/01/10/ccj-analisara-pec-que-da-fim-a-mandatos-vitalicios-de-ministros-do-stf

[3] Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/01/10/ccj-analisara-pec-que-da-fim-a-mandatos-vitalicios-de-ministros-do-stf

[4] https://exame.abril.com.br/brasil/pec-que-muda-forma-de-escolher-ministros-do-stf-enfrenta-resistencia/

[5] Por todos, Reinaldo Azevedo: https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/02/04/nao-mudei-de-posicao-a-emenda-moro-para-ministro-do-stf-e-uma-indecencia.htm

[6] TRACHTMAN, Michael G. The Supremes’ greatest hits: the 37 Supreme Court cases that most directly affect your life. Revised & updated edition. New York: Sterling Publishing Co. Inc., 2009.

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