Embargos Culturais

Umberto Eco e as confissões de um jovem romancista

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

9 de fevereiro de 2020, 8h00

Spacca
Umberto Eco (1932-2016) publicou seu primeiro romance, “O Nome da Rosa”, em 1980, quando contava com 48 anos. O livro é um sucesso. Explora muito material jurídico, a exemplo dos julgamentos nos quais a condenação é definida antes dos debates. Conhecido como teórico da linguagem, da semiótica e da literatura, Eco persistiu na ficção, deixando-nos livros instigantes, como “O Pêndulo de Foucault” e “A Ilha do Dia Anterior”, entre outros.

Eco definia-se como acadêmico por profissão e também como um romancista amador. Foi além disso expressivo crítico literário. Preocupava-se, entre outros, em definir exatamente os limites e as possibilidades da escrita, que dividia em criativa e científica, às quais creio que podemos acrescentar uma escrita burocrática. Nesse último grupo, incluiria quaisquer tipos de leis, material jurídico e administrativo.

Eco comparava o livro científico a uma narrativa de detetives. Elementar. O pesquisador deve comprovar as premissas que lançou. Eco acrescentava ainda a tradução como forma específica de escrita. Argumentou que a maioria de nós lemos Cervantes ou Tolstói ou Shakespeare em textos traduzidos. Incomodava-se com a busca de uma língua universal perfeita.

Esse empenho de classificação é recorrente na teoria literária. A literatura, em seu sentido mais comum, ficcional, envolve a narrativa, o drama e o poema. A narrativa desdobra-se em contos, novelas e romances. Trata-se da literatura de ficção, marcada por elementos de literalidade, a exemplo de metáforas, metonímias, sonoridades, ritmos, narratividades, descrição, personagens, símbolos, ambiguidades, alegorias e mitos. Há nesse campo um domínio da criatividade artística, orientado, entre outros, para o prazer, para a edificação espiritual e para a crítica da vida social. A literatura é militante.

Eco explicitou seus métodos de trabalho. Ao escrever romances frequentava, estudava e esquadrinhava os lugares que descreveria. A proximidade com a realidade topográfica deveria ser absoluta. Nesse sentido realista, lembrou-se do cineasta italiano Luciano Visconti que exigia joias verdadeiras em porta-joias, em cenas nas quais houvesse tal adereço, para que a presença dos atores fosse efetivamente real. A literatura, insistia, deveria seguir caminho análogo. Nesse passo, Eco fez referência à “Ephrasis”, que consiste em técnica literária de descrição absoluta de uma determinada imagem.

Nesse importante livro há a descrição de uma técnica que Eco denomina de “dupla codificação” e que segue um protocolo dos autores pós-modernos, ainda que essa categoria — pós-modernidade — careça hoje de sentido. Na “dupla codificação” utiliza-se uma ironia intertextual e um apelo metanarrativo.

A ironia intertextual consiste na recorrente citação direta de outros textos famosos, com identificação, ou não. Exemplifico com as passagens dos filósofos medievais ao longo do “Nome da Rosa”. O título do livro vem de passagem de Bernard de Marley, “stat rosa pristina nomine, nomina muda tenemus”, isto é, “A rosa dos tempos atrás sobrevive apenas no nome; os nomes são tudo o que temos”.

O apelo metanarrativo consiste na interpolação de reflexões que texto ou autor fazem da obra. Exemplifico com as intervenções de personagens de Shakespeare com a plateia. Frank Underwood (protagonizado por Kevin Spacey em “House of Cards”) é também exemplo dessa referência.

O escritor, segundo Eco, deve dirigir-se a um leitor imaginário, com quem deve se comunicar. Criticou escritores que dizem escrever para si mesmos. Segundo Eco, a única coisa que se pode escrever para si mesmo é uma lista de compras… A língua é um instrumento social que fixa os limites da interpretação, vinculando autor, leitor e texto.

Eco preocupa-se com a existência real de personagens. Conceitua o que denominava de OFE, isto é, objeto fisicamente existente. Até que ponto as personagens de fato existem? Segundo Eco, há quem conheça Dido, Medeia, Quixote, Madame Bovary, Holden Caufield, Jay Gatsby, Marlowe, o Inspetor Maigret e Hercule Poirot, sem ter lido Virgílio, Eurípedes, Cervantes, Flaubert, Salinger, Fitzgerald, Chandler, Simenon ou Agatha Christie. Há quem procure a farmácia onde Bloom comprava sabonete de limão em Dublin. Há quem procure o escritório de Sherlock Holmes na Baker Street em Londres. Há quem procure o balcão de Verona onde Romeu jurou amor a Julieta.

A identidade de personagens fictícios é inconfundível. Nesse sentido, segundo Eco, há também uma função epistemológica nas afirmativas fictícias; isto é, segundo Eco, o Super-Homem é Clark Kent.

Porque aproximou-se da literatura ficcional (sem se afastar da ensaística) Eco entendia que era, ainda, um “jovem romancista”, cujas impressões anotou, em forma de confissões.  Essa a razão desse livro intimista, que em quatro capítulos substancializa um conjunto denso de teoria literária. É um livro imprescindível para quem escreve ficção e para que gosta de relacionar literatura com outros campos do saber, a exemplo do direito e da economia. É também um livro indispensável para quem gostamos de pensar a literatura em seus aspectos teóricos, porque gostamos de ler, e porque na experiência da leitura construímos nossas percepções de realidade, de fantasia e de afeto.

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