Anuário da Justiça

"Resgate do princípio da fraternidade não significa conivência e impunidade"

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8 de fevereiro de 2020, 7h18

Spacca
Em seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 instituiu um Estado Democrático destinado a assegurar exercício de direitos e valores supremos do que define como “uma sociedade fraterna”. Para o ministro do STJ, Reynaldo Soares da Fonseca, isso eleva o princípio da fraternidade a categoria jurídica, mais do que filosófica ou religiosa. Assim, este precisa ser resgatado e efetivado, principalmente na área penal, diante da situação do sistema carcerário brasileiro.

“A construção de uma sociedade fraterna não significa uma sociedade conivente com impunidade, com o descumprimento da ordem jurídica”, explica o ministro, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2020, que tem lançamento previsto para maio.

“Construir uma sociedade fraterna é punir aquele que cometeu ilícito penal, mas cumprir o ditame do ordenamento constitucional, assegurando a ele direitos. Também como ser humano. Dentro da cadeia de progressão de penas, nós temos que retirar esse caos inconstitucional do sistema carcerário brasileiro”, ressalta.

O tema foi desenvolvido pelo ministro em doutorado pela Fadisp (Faculdade autônoma de Direito de São Paulo), com pesquisa realizada pela Universidade de Siena, na Itália. O resultado foi publicado em 2019 no livro O Princípio Constitucional da Fraternidade – Seu resgate no sistema de Justiça.

O Constitucionalismo Fraternal, como define, é há muito endossado pelo ministro, que coordena e participa de congressos e seminários sobre o tema. Uma questão relevante é como efetivá-lo no sistema de Justiça.

Para isso, defende a separação entre macrocriminalidade da criminalidade comum, dando à segunda a possibilidade de trabalhar com justiça restaurativa e comunitária, remissão de pena e modelos alternativos de encarceramento. Da mesma forma, prega que o Judiciário dê a interpretação que melhor se adeque a esses conceitos. Usa como exemplo o fato de o STJ entender que crime de porte de drogas para uso próprio não gera reincidência.

“A jurisprudência teve que raciocinar, lembrando que não se estabelece a contravenção como motivo de reincidência. Nós dissemos “não” tanto para a reincidência quanto para os maus antecedentes. Isso é humanizar a interpretação da lei federal”, afirma.

Leia abaixo entrevista:

Anuário da Justiça — O que o senhor destaca de 2019?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Na minha atuação institucional foi a discussão sobre o resgate do princípio constitucional da fraternidade dentro do sistema de Justiça, num momento como esse, tão difícil, em que impera a intolerância. Na verdade, nós vamos ter que definir o que é criminalidade comum e o que é macrocriminalidade, para que a gente possa trabalhar de formas diferentes, resgatando de imediato o conceito de justiça restaurativa. 

Anuário da Justiça — Que é o tema da tese de doutorado do senhor.
Reynaldo Soares da Fonseca —
Eu abordo a parte teórica doutrinária do resgate do princípio da fraternidade como categoria jurídica, e não de religião moral de outras ciências sociais ou humanas. Dentro do sistema de justiça, eu discuto as questões referentes à mediação e a conciliação, justiça restaurativa e um grande movimento que existe hoje na sociedade pós-moderna, que é a migração. Mais de 70 milhões de pessoas estão fora do seu habitat. Por razões geográficas, econômicas, políticas. 

Anuário da Justiça — As crises migratórias recentes para a Europa, por exemplo. 
Reynaldo Soares da Fonseca —
O Brasil tem uma experiência muito forte com o Haiti por razões geográficas, e agora com a Venezuela. A Europa também sente isso ao ponto de a França, por exemplo, que é o berço da e Revolução Francesa, precisar chegar em 2018 para que a corte constitucional francesa considerasse inconstitucional o crime de ajuda humanitária. Ajudar humanitariamente, na França, era crime. Um agricultor francês que teria ajudado um africano dentro território francês respondeu a um processo penal, e foi preciso até a corte constitucional declarar que aquela ajuda humanitária poderia até ter alguma consequência no âmbito administrativo ou cível, mas no penal, jamais. Porque o país preconizava o princípio da fraternidade, ou o princípio da solidariedade. 

Anuário da Justiça — Qual é o desafio de fazer esse resgate do princípio da fraternidade?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Resgatar o princípio da fraternidade é uma exigência constitucional. No preâmbulo, a Constituição, quando anuncia os valores da liberdade, da igualdade, da segurança e tantos outros, já anuncia a construção de uma sociedade fraterna. Em busca de soluções pacíficas para as controversas. No âmbito cível, isso já é senso comum como algo razoável. Nada melhor do que uma mesa de negociação e tentar resolver pela cultura da conciliação.

Anuário da Justiça — E na área penal?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Esse é o grande dilema, porque a Constituição não discriminou cível e penal. A construção de uma sociedade fraterna não significa uma sociedade conivente com impunidade, com o descumprimento da ordem jurídica. A construção de uma sociedade fraterna não pode ter compromisso com corrupção, com lavagem de dinheiro, com crime cibernético ou com tráfico de entorpecentes. Construir uma sociedade fraterna é punir aquele que cometeu ilícito penal, mas cumprir o ditame do ordenamento constitucional, assegurando a ele direitos. Também como ser humano. Dentro da cadeia de progressão de penas nós temos que retirar esse caos inconstitucional do sistema carcerário brasileiro. 

Anuário da Justiça — E como fazer isso?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Separando o joio do trigo: a macrocriminalidade da criminalidade comum. E, ao mesmo tempo, pensando na construção de justiça restaurativa nesse grande contingente de negros, mulheres, jovens analfabetos que estão no sistema carcerário. As estatísticas são assustadoras: mais de 75% daqueles que estão no sistema carcerário são analfabetos funcionais. É possível? Qual exemplo? Nós temos 75 APACs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) no Brasil. Elas têm menos agente penitenciário e mais produção por parte dos presos para se auto sustentarem e sustentarem suas famílias. Isso é a prova de que o modelo de justiça restaurativa é possível. 

Anuário da Justiça — E como efetivar isso, exatamente?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Trabalhando de imediato com a criminalidade comum no sentido da educação, da arte e da produção. Da reinserção na comunidade, estimulando todo o mecanismo de remissão, ou seja, de compensação da pena. Por isso que saem decisões aqui determinando a remissão quando a pessoa passa no Enem, quando cumpre determinada carga horária ou que lê determinada quantidade de livros. Isso às vezes vai para a imprensa como caricatura porque algum político leu um livro e reduziu a pena, mas isso tem uma finalidade extraordinária dentro do sistema carcerário. É um analfabeto funcional que está sendo inserido dentro do tecido social aos poucos, porque ele está adquirindo conhecimento. A construção de tudo isso só se dá na medida em que há uma opção preferencial de políticas públicas. 

Anuário da Justiça — Mas não é o que acontece, ministro.
Reynaldo Soares da Fonseca —
Exato. E como nós, aqui no Superior Tribunal de Justiça, podemos nos envolver com isso? Podemos nos envolver dando a interpretação da lei de execução penal que mais se ajusta à concepção de justiça restaurativa ou de justiça comunitária. Aqui no Distrito Federal tem uma juíza, doutora Gláucia Falsarella Foley, que faz um trabalho com menores infratores e com escolas públicas exatamente na perspectiva de educação e cidadania. Não só ela, mas também a Associação dos Magistrados, os defensores públicos. Os índices de violência nas escolas em que houve o trabalho de justiça comunitária ou de educação em cidadania cai mais de 80%. Enquanto o nível de reincidência chega a 70% no geral, nas APACs chega a ser menos de 15%. 

Anuário da Justiça — Há uma ideia que indica que, quanto mais próximo do fato, mais rigoroso é o juiz. Se o STJ indica que as diretrizes são tomadas numa ótica do princípio da fraternidade, como fazer para que sejam cumpridas de pronto?
Reynaldo Soares da Fonseca —
É a cultura do diálogo. Nós não podemos convencer ninguém pela força, mas sim pela força do argumento. Se você fizer uma pesquisa, pelo menos 80% dos juízes vão dizer que estão de acordo. O problema é como implementar isso dentro do resgate do sistema de justiça. Alguns serão mais duros e dirão que na área penal não, que no cível tudo bem. No cível porque a política da mediação e da conciliação é demorada, dá trabalho, mas dá certo. Inclusive com satisfação pessoal da sociedade. A sociedade atual exige celeridade, coerência e segurança, e aí mexe com o penal. Por que a sociedade hoje não concorda com a discussão a respeito de justiça restaurativa? Porque ela está insegura. Assim, evidentemente que exige um judiciário que aperte os cintos, vamos dizer. Mas esse apertar os cintos é importante para pedagogicamente fazer com que todo mundo volte a cumprir o ordenamento jurídico. Vocês são de Brasília?

Anuário da Justiça — São Paulo
Reynaldo Soares da Fonseca —
Se vocês vivessem em Brasília há 20 anos atrás, nós tínhamos uma conduta de trânsito. De alguns anos para cá, os carros param para as pessoas atravessarem na faixa. Isso é cultura. Foi preciso que o Detran, foi preciso que a sociedade brasiliense endurecesse, obedecesse. É preciso cumprir. Eu não tenho pacto com o descumprimento de ordem, meu pacto é com o cumprimento da ordem. Agora, a gente precisa encontrar caminhos para que o violador também se reinsira dentro do contexto social. 

Anuário da Justiça — E como o STJ vem observando o princípio da fraternidade?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Por exemplo, o usuário de drogas. Nosso legislador não descriminalizou, continua sendo crime, mas despenalizou. Aquele que usa drogas não pode ir para a cadeia. Ele tem um tratamento médico, internação se for preciso. Por trás disso tem uma grande discussão, se é crime ou se não é. Se ele comete outro crime, este fato, a rigor, deveria ser considerado uma reincidência — específica ou não. A jurisprudência teve que raciocinar, lembrando que não se estabelece a contravenção como motivo de reincidência. Nós dissemos “não” tanto para a reincidência quanto para os maus antecedentes. Isso é humanizar a interpretação da lei federal. 

Anuário da Justiça — Se quando um juiz decide algo, ele está, de certa forma, executando uma política criminal. É preciso tê-la em mente antes de decidir?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Nós falamos aqui de políticas públicas da alçada do Executivo — e aí o exemplo maior disso é medicamentos ou a área hospitalar. Hoje a primeira seção do STJ está fixando pontos para que se concilie as necessidades da população com a proatividade do magistrado na interpretação da norma, mas sem descambar para o ativismo judicial. Isso é política pública do Poder Executivo e o controle judicial dessa política pública. O Judiciário não exerce políticas públicas? Exerce sim. Política pública de desjudicialização e de solução de conflitos pela composição. Eu estou fazendo essa distinção para que tudo seja política pública, mas para que a gente não pense que o Judiciário não desenvolve políticas públicas. 

Anuário da Justiça — E na área penal, o juiz deve observar essa política pública ao decidir?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Eu penso que sim. É a minha posição como magistrado. Tem colegas que dizem que não, que o juiz deve pensar apenas nas regras que de fixação do artigo 59 do Código Penal do ponto de vista teórico: como estabelecer a pena base, como verificar as circunstâncias do agravamento ou diminuição dessa pena. Eu tenho que examinar se aquele que ingressou no tráfico agora merece uma pena, um regime fechado ou semiaberto ou aberto, eu tenho que olhar o indivíduo, sua conduta. Mas, ao mesmo tempo, tenho que me influenciar também pelo sistema carcerário como um todo. Aquele que iniciou não deve ficar junto dos líderes de facção criminosa ou daqueles que exercem o poder contábil ou financeiro da facção para não ser contaminado. Isso é uma ação reflexo da política criminal e que me faz um juiz melhor. 

Anuário da Justiça — Ou seja, é preciso aliar os dois fatores: o lado técnico e essa observação da realidade. 
Reynaldo Soares da Fonseca —
O Direito Penal trabalha com as pessoas. Eu preciso olhar se é um menino de 18 anos, 19 anos que começou no mundo do crime agora e tem uma pena de três anos. Por que não dar o regime aberto com substituição de pena? Ou só o regime aberto? Por que eu vou agravar? Dizer que isso não interfere? Claro que tem que interferir. Nós somos seres humanos, nós acreditamos nos seres humanos. Eu dei o exemplo do usuário de drogas, que tem outra finalidade. A finalidade dele não é colocar num estabelecimento prisional, é um problema de saúde pública ou de opção como ser humano, se é que existe. 

Anuário da Justiça — Alguns estados discutem modelos de parceria público-privada para gestão dos presídios. Isso dificultaria a aplicação da justiça restaurativa?
Reynaldo Soares da Fonseca —
Esse modelo vem sendo discutido considerando as deficiências orçamentárias do próprio estado. Há determinadas áreas da sociedade que foram cristalizadas com serviços públicos essenciais. A educação convive com o ensino público e o ensino privado. A saúde também. Mas isso não significa que vai deixar de existir o ensino público ou a saúde pública. Isso eu não posso terceirizar para o particular. A partir da reforma administrativa, da Emenda Constitucional 45, nós começamos a discutir a participação público-privada em determinadas áreas do serviço público e se chegou à questão dos presídios considerando que o estado não consegue acompanhar a demanda de infratores dentro de presídios. 

Anuário da Justiça — O número de presos cresceu demais… 
Reynaldo Soares da Fonseca —
São 800 mil presos para 400 mil vagas, sendo que tem 500 mil mandados não cumpridos. Então surge a parceria público-privada como uma necessidade, uma resposta a esse quadro. Não sou um executor de políticas públicas do Executivo, mas eu tenho muitas reservas porque me parece que, em matéria de sistema carcerário, a obrigação do estado é patente como um compromisso com a sociedade. Diante do caos do sistema prisional, a gente tem que começar a aceitar essa nova realidade. Em determinadas áreas, há um pouco de dificuldade de aceitar isso. O monopólio da segurança é do estado. Não significa que eu me coloco contra, em função da realidade.

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